desenho, logo existe



desenho, logo existe



azedas?


Nesta época do ano, olho para os caules verdes encimados por flores amarelas brilhantes e vem-me a memória da infância em que mastigava caules amargos da borda dos caminhos, como agora se mastigam pastilhas elásticas. Presos nos jardins murados da escola, milhões de caules iguais aos da minha infância levantam-se e quem os corta e mastiga é a máquina de cortar relva, à falta de dentes e apetite do suco vegetal amargo. As voltas que a vida dá. Como se chamará essa planta?


Oxalis europaca, família das aleluias/Oxalidáceas - diz H.F. Será?

olho para o céu, vejo braços

astronomia

2009 é o Ano Inernacional da Astronomia (ver http://www.astronomia2009.org/). Em toda a parte se celebra a ciência que nos demos e damos uns aos outros, a partir de maravilhas que vemos e adivinhamos. Há uma celebração do nosso planeta e, a partir dele, de todos os astros que a humanidade não desiste de procurar. Há uma celebração da humanidade no olhar para dentro da sua acção aparentemente perpétua em busca do que nos escapa, mas também nos explica. Todos os dias criticamos a nossa acção humana que destrói, todos os dias nos maravilhamos com a nossa acção que constrói as pontes para fora de nós e nos deixa ver os outros astros que só podemos adivinhar e imaginar quais pintores de sonhos. E, na ciência, celebramos o que de melhor somos na compreensão do que não podemos atingir com as nossas magníficas mãos, despidas de tecnologia, mas podemos comprender com a inteligência despida de preconceitos e ancorada no conhecimento que herdámos. Por isso, celebramos todos os que olharam para os céus em busca da verdade por saber e sofreram horrores para nos darem a visão das coisas que não são conformes aos sentidos ou às crenças dominantes. O que as escolas ensinam, sem mistérios, é o resultado de um lento desenvolvimento, de uma luta milenar, de uma busca tão mais humana quanto nos parece sem sentido e sem utilidade para cada geração. O Ano Internacional da Astronomia aí está, não para nos fazer esquecer a crise e a obra nefasta de parte da humanidade, mas para lembrar a todos que há esperança sem fim e há esperança até nos confins do universo limitado que nos vem desde o princípio dos séculos humanos e nenhuma crise humana (e foram tantas!) foi capaz de travar a meio do caminho.

Aveiro tem um céu especial que deve ser olhado em si mesmo por todos os que se maravilham com o que ao longe podem ver e podem compreender, nas suas relações, pela via da ciência. É altura de chamar a atenção dos jovens para os modelos matemáticos que nos fornecem explicação para o funcionamento actual das coisas no universo, tal como as vamos conhecendo, e nos alertam para tudo o que, com base nos modelos, pode acontecer com elevada probabilidade.
Cada um de nós aparece e, um momento depois, desaparece deixando um rasto de memórias e não mais que isso. Assim pode acontecer com a humanidade inteira.

O céu por escalar é um impulso. Olhemos para o céu. E olhemos por ele, amorosamente. O céu não pode esperar.

[o aveiro; 13/03/2009]

piano


The Piano from Arthur Molenaar on Vimeo.

pela mão do Pedro Aniceto ou de um cão com pulgas reflexivo

o tempo

a temperatura da primavera subiu ligeira as suas escadas, a meio parou e sentou-se ajeitando a saia e soltando os cabelos com gestos precisos. um trânsito de pétalas carnudas, brancas e rosadas, pedia uma lentidão consentida a quem passava: quem por ali passava, tardava em passar.

e eu, sem pensar, estacionei o camião na rua de cima. depois desci as escadas e deixei que o meu corpo adormecesse. as flores tomaram o meu lugar enquanto eu perdia a forma de existir para os outros,

não ganhei para o susto. ganhei consciência do peso dos que passavam sem dar por mim.

a conta calada

José Sócrates vestiu o (ul)traje da solidão obcessiva. Como se um partido pudesse deixar-se substituir por uma pessoa. Identifica-se e determina-se por oposição, rejeita-se por oposição. Cego e surdo vive num deserto. Há uma multidão de mãos de apoiantes sem cabeça e ideias a erguerem-se para ele como esperança no poder, parece que o levantam aos céus de um filme épico, não sendo eles mais que migalhas ou grãos de uma areia movediça que tudo consome. Há uma multidão que o rejeita como solução e ele não vê mais que uma campanha de rostos encapuçados por negros presságios de desgraça. Todos os dias recebe os mesmos avisos por altifalantes estrangeiros como ecos dos avisos que cá dentro compoem uma paisagem assim não, e ele afasta com gestos impacientes esses sinais voadores e a mosca que não se deixa apanhar e zumbe em vários comprimentos de onda. Já não discrimina o que cada um dos outros diz e tudo reduz a uma mancha sonora de desaprovação insensata. Prega no deserto a maioria absoluta como a criança espeta pregos na areia da praia, só que a criança sabe que prego que se espeta é prego que se desprega para recomeçar sempre do mesmo modo, até que o regresso a casa limpe o rasto do jogo. Mesmo que venha a obter uma maioria absoluta de mãos que pregam como ecos dele, ela só servirá para o reduzir a si mesmo ou a nada. O poder ensurdece e cega. A partir de certa altura, passeará de uma sala para outra por sombrios corredores do poder, movido a ar comprimido numa atmosfera de ar condicionado. O pior que lhe pode acontecer é ser cercado por criaturas de ar resignado que colhem os votos populares como se fossem um só: ele. Ele verbaliza uma razão trágica quando declara que governa, não quem representa, antes, quem é escolhido ou ungido, e, por isso, pede uma maioria absoluta para ser ele o primeiro ministro. E nós já sentimos como isso é verdade.

Por amor das pessoas, de Sócrates, da cidade e dos cidadãos, elevamos a voz contra a resignação e em apelo ao julgamento crítico. Em modo de oração democrática, humildemente, declaramos a nossa esperança nos que tudo ouvem, discutem e levam em conta para criar opinião própria e, em consequência, agir livremente em votações, livres e não condicionadas por fantasmas que confundem a saída da crise com a porta da casa do poder atravessar paredes...

[o aveiro; 6/03/2009]

março

os cães rosnam aos cheiros aéreos e as cadelas vagueiam
pelo relvado provocando fúrias
grandiosas ou grandiloquentes como quiserem
os professores que ensinem a melhor forma
para dizer estas coisas a animais

pachorrentos que olham sem ver
o apetite do açougueiro
que os pesa com o olhar

e lamenta a morte dos cães nos canis municipais
em terras onde os talhantes honrados não vendem carne de cão
publicamente

de nada

O guerreiro empunhou a lança.
Estranhou a curva da lança que lhe fez lembrar um podão que usava para cortar ramos de videira e esgalhar as pontas dos vimes. Não se lembrava de ter visto outra lança assim curva como aquela. Quem teria sido o podão de ferreiro para fazer aquele trabalho?
Demorou tempo demais a pensar enquanto os cavalos se aproximavam do acampamento. Quando recuperou da distracção reparou na tensão dolorosa dos seus músculos retesados e deu ordem para libertar a lança presa ao seu espanto.
Viu como ela partiu e com maior espanto a viu voltar. Até que deixou de ver.