nos 100 anos do piolho

(...)

Não deixes entrar os americanos em casa.  Foi o que ele disse ainda não se tinha sentado na cadeira mesmo à minha frente. Com os cotovelos grudados na mesa onde o meu café tinha começado a tremelicar de medo, ele olhava-me fixamente nos olhos. Quando ele fazia isso para se sentir dono da minha mesa, eu mantinha os olhos ocupados a ler as placas das reuniões dos cursos antigos.

Graças ao meu amigo, que eu nunca tive o prazer de conhecer, decorei uma parede de placas. Não me deixes entrar os americanos em casa   - repetia. Mais baixo, reclamava: O que nós devíamos era correr com eles à bomba!   E voltava a fixar-me nos olhos, depois do elegante gesto de arrumar farripas treinadas para a intimidade reflexiva. Nestas alturas, eu deixava correr o tempo e lia placas, umas atrás de outras.

Uma eternidade de placas depois, ele falava de novo. Sabes se os americanos já chegaram?   ainda dizia antes de, finalmente, dizer o que eu esperava desde o início: Pagas-me o café?   Naquele dia, eu abri a boca e soltei a frase que ele nunca me tinha ouvido: Não tenho dinheiro. Desculpa.   Sem acreditar, levantou-se até chegar ao dobro da minha altura, virou-me as costas e saíu do Piolho para sempre ... o dia seguinte.


(...)

(depoimento pessoal pedido pelo Ciência Hoje - ora viva, Jorge Massada)

por onde eu vou

por onde eu vou vão as formigas
fazendo carreiro
quem sabe o que vai fazer ou para onde vai?
ou as coisas começaram um dia por acaso e daí
para cá cada um segue o da frente confiante
no carreiro.

para onde eu vou correm diligentes formigas

e eu.

os professores

1.
Quando são muitas as perguntas, temos de escolher algumas. Escolhemos aquelas para as quais temos respostas, mesmo sabendo que não temos respostas. Os professores são aqueles que tudo fazem para merecer uma boa pergunta, uma pergunta difícil sobre um aspecto aparentemente livre de todas as dúvidas, uma pergunta elementar.

Quem são os professores? O que fazem os professores que os distingue dos outros profissionais? Quem os emprega como professores, o que espera deles? Pode esperar tudo? Tudo, o que é tudo?

2.
A imensa maioria dos cidadãos já teve algum contacto com algum professor. Aparentemente todos sabem o que é um professor. Cada um sabe o que espera de um professor: alguma coisa entre a pessoa que nos ensinou alguma coisa ou com quem aprendemos o que pensamos não poder ter aprendido sem um professor. Alguém que nos vai esclarecendo o que é preciso saber mesmo de entre a infinidade de coisas com que contactamos por alguma via. Alguém que pode explicar algum detalhe científico, técnico e nos inicia no mundo das coisas que não conhecemos e que nos podem ser úteis agora e mais tarde. Há também quem diga que o professor nos disciplina o saber e a conduta ou que nos educa. Uma ou outra pessoa se lembra do professor que a chumbou ou a passou ou a levou a exame e participou de algum modo na construção de um diploma qualquer a garantir certas competências mais ou menos literárias.


Para a generalidade das pessoas, o professor estudou e deu a estudar, ensinou, aprendeu e deu a aprender, falou da descoberta do mundo que ajuda a descobrir. Claro que há muitos professores sob a designação de professor, mas o seu exercício é sempre reduzido a poucas "marcas".

3.
Pela minha vida de professor, passaram muitos professores, muitos modelos. Sob a minha pele de professor, já me parece que viveram muitos professores todos diferentes, ainda que para os outros apareça como um só professor. O exercício de muitas funções sociais, essas que passaram a viver na vida dos professores como em casa sua, fizeram dos professores outros professores. Do mesmo modo, a experiência de professor que reflecte (e escolhe alternativas ao adaptar-se à realidade em mudança) faz do professor passado um outro professor. O mesmo acontece por via da evolução científica e tecnológica ou por via da evolução das organizações escolares em que desenvolve a sua acção. Ou por via das mudanças nas comunidades educativas seja lá isso o que for.

Sempre que pensamos nas mudanças que sofremos, procuramo-nos no que se manteve invariante. Temos a certeza que há invariantes, não tanto pelo que sentimos, mas mais porque somos reconhecidos como professores quase do mesmo modo que há 20 ou 30 anos.

Agora que nos apoderámos da mudança como de uma forma de estar, agora que nos apoderámos da complexidade da vida que não suspeitávamos antes, procuramos uma invariante simplicidade de processos que afinal são os que nos definem quando nada parece ser o que era definitivo. O que é?

4.
O que é que persiste tanto no educador de infância, como no professor especialista disciplinarmente ou tecnicamente falando, do ensino básico, secundário ou superior? O que é que persiste apesar de todas as formações iniciais terem mudado? O que é que persistirá? Novos professores vão aparecer com formações completamente diferentes. Alguma coisa terão em comum com os professores que, com pontos de partida completamente diferentes, foram sofrendo adaptações, adequações, reconversões. O quê em comum? O que é que persiste nas mudanças?

5.
As organizações têm tendência para atribuir ao professor papéis cada vez mais diversificados a exigir cada vez mais registos para os quais não há definição precisa. Como os professores reflectem pouco sobre qual seja a sua função, a tal, facilmente se deixam enredar nas múltiplas funções, educativas ou não, que a instituição escolar tende a albergar em suprimento da falência de outros sistemas de apoio social. Dito de outro modo, se a instituição escolar se tornar mais complexa ou se auto-definir em autonomia organizacional prestadora de novos serviços, o professor pode ser o que não é até deixar de ser professor tal como é reconhecido pelos não professores? Ou já não há quem não seja professor?

6.
Como se identifica um professor? Como e o quê se avalia quando se pensa num professor? Precisamos de saber que não falamos de um número indeterminado de coisas quando falamos com decência sobre a docência.

[a página de educação; Verão de 2009]

somos, fomos, somos, seremos