canto da véspera

não projectei o plano do passado e não projecto o plano do futuro:
sobrevivo num separador plano de presente
qual brinquedo macambúzio

em vez do canto do tempo ouço
a tempestade longínqua
vinda da véspera como um tremor

nos alicerces

ela sabe.

o homem empurra uma carroça carregada com estrume. a mulher inda ao longe e já saúda em alta voz ti manel ti manel como vai? para onde leva a sua vida? o homem responde em voz baixa levo a vida a enterrar. e a mulher sem o ouvir sempre acrescenta pois ti manel faz bem em enterrar o seu esterco. o homem murmura mal ela sabe que eu estou mesmo a mudar de casa e eu mais o que a carroça leva é tudo o que tenho e cabe na cova que antes abri no lagoaceiro mal ela sabe. já a par com a carroça a mulher faz-se ouvir para só ele ouvir a nossa vida é uma merda manel. ela sabe.

durante a tarde

agora toma a minha mão direita na tua mão esquerda
e dá-lhe o puxão que ela aguarda ou deseja:

rasga-a de mim pelo pulso
rente à pulseira e algema
que a prende a ti

de memória



  1. fala-me de preciosas pedras de cristais de sal nas lágrimas da alegria
    de um dos meus dias que seja recordação de alguma noite tua
    uma luz devastada
    e crua



  2. se pudesses ver e ouvir
    se pudesses falar
    ou desenhar ao menos um gesto no ar
    e eu sentisse que na tua memória
    de olhos fechados
    um dedo teu realmente
    me reconhecera

    como quando a tua noite
    era o meu dia



  3. sou velho demais para perguntar



  4. esquecido de tudo lembro-me da tua voz
    e de ouvir-te falar de pedras preciosas ou de cristais de sal em lágrimas de alegria

    e um ou outro detalhe uma porta de ferro uma grande chave ferrugenta um livro escrito em braille a mão que tacteia a fala por golfadas de urgência

escutar, olhar e... parar?

Nós sabemos que as escutas sofisticadas são importantes na detecção, perseguição da grande criminalidade económica (e organizada) e da corrupção. Sob autorização de um juíz, à guarda de investigadores tutelados por um juíz que é então garante dos direitos individuais, da honra das pessoas envolvidas, etc.
Todos sabem que este sistema só pode funcionar se for rápido e eficaz pelos efeitos. Todos sabemos já que a melhor forma que o crime tem para combater as escutas é esvaziar os sacos de escutas na praça, misturando a vida privada de uns com a vida criminosa de outros, fazendo com que os crimes apareçam equiparados a conversas da treta.
E, desse modo, torpedear o trabalho da justiça, enredar tudo na teia recursiva que as aranhas do direito tecem. Tudo ao monte é o esconderijo ideal de cada crime. E a vulgaridade? Como é que se pára? Onde pairam os direitos e as garantias dos simples? E o julgamento seguido de prisão efectiva dos criminosos? Quantos andam por aí? Quantos são? Ninguém sabe, apesar de todas campanhas ninguém sabe e toda a gente sabe ou pensa que sabe, prendendo este ou aquele com a imaginação de quem não gosta e libertando outros e aqueloutros com a imaginação de quem gosta. Como é que se trava para parar e pensar?

Há quem diga que isto é preciso. De outro modo não se denunciam os crimes. Há mesmo quem defenda os julgamentos da opinião pública. Conhecem alguém que tenha sido condenado por algum crime julgado na praça pública? Uma parte destes criminosos vive de aparecer e ser citado muitas vezes e não do secretismo antigo.O secretismo de hoje é alguma coisa mais do nível do sincretismo global.


SINCRETISMO. Significa, originariamente, união dos cretenses contra o inimigo comum, porque habitualmente estavam desunidos. No século XVII, porém, pensando que o temo procedia do verbo misturar, passou ele a significar mescla de doutrinas derivadas de diversa proveniência: católica, luterana, calvinista. A partir daí, o conceito alargou-se a toda a forma de mistura – por justaposição, composição, sobreposição ou fusão – de doutrinas, de ritos, de imagens, de símbolos. (1)

(1) ENCICLOPÉDIA LUSO-BRASILEIRA DE CULTURA. Lisboa: Verbo, [s. d. p.]