asilo

lá fui vivendo enquanto as mais vulgares
palavras entretanto expulsas dos versos
pediam asilo em línguas estrangeiras

canto da véspera

não projectei o plano do passado e não projecto o plano do futuro:
sobrevivo num separador plano de presente
qual brinquedo macambúzio

em vez do canto do tempo ouço
a tempestade longínqua
vinda da véspera como um tremor

nos alicerces

ela sabe.

o homem empurra uma carroça carregada com estrume. a mulher inda ao longe e já saúda em alta voz ti manel ti manel como vai? para onde leva a sua vida? o homem responde em voz baixa levo a vida a enterrar. e a mulher sem o ouvir sempre acrescenta pois ti manel faz bem em enterrar o seu esterco. o homem murmura mal ela sabe que eu estou mesmo a mudar de casa e eu mais o que a carroça leva é tudo o que tenho e cabe na cova que antes abri no lagoaceiro mal ela sabe. já a par com a carroça a mulher faz-se ouvir para só ele ouvir a nossa vida é uma merda manel. ela sabe.

durante a tarde

agora toma a minha mão direita na tua mão esquerda
e dá-lhe o puxão que ela aguarda ou deseja:

rasga-a de mim pelo pulso
rente à pulseira e algema
que a prende a ti

de memória



  1. fala-me de preciosas pedras de cristais de sal nas lágrimas da alegria
    de um dos meus dias que seja recordação de alguma noite tua
    uma luz devastada
    e crua



  2. se pudesses ver e ouvir
    se pudesses falar
    ou desenhar ao menos um gesto no ar
    e eu sentisse que na tua memória
    de olhos fechados
    um dedo teu realmente
    me reconhecera

    como quando a tua noite
    era o meu dia



  3. sou velho demais para perguntar



  4. esquecido de tudo lembro-me da tua voz
    e de ouvir-te falar de pedras preciosas ou de cristais de sal em lágrimas de alegria

    e um ou outro detalhe uma porta de ferro uma grande chave ferrugenta um livro escrito em braille a mão que tacteia a fala por golfadas de urgência

pelos olhos dos dedos

já não sei há quantos anos estava eu em Elvas e aceitei mais um que fui