a vida antes

Antes de se levantar, ele dá um beijo em cada mulher e em cada filho que ainda dorme naquela cama enorme que é a sala coberta de colchões improvisados. Com cuidado, para que ninguém acorde. Quando se levanta do seu lugar de cama, vai à cozinha, ali mesmo ao lado, comer a côdea e falar em voz baixa à mulher que se levanta antes dele e lhe prepara um café silencioso e a lancheira de uns restos que ela sempre consegue subtrair à fome da manada. Ela conta-lhe as duas ou três coisa que vale a pena contar e que não o entristecem mais do que a vida que tem. Não clama e não reclama. Ele diz "até logo" e ela segue-o até à porta para evitar que a porta ao bater acorde as crianças. Ele e ela sabem que quem dorme não tem a mesma fome que eles sentem por estarem acordados ainda é noite.

a vida

Ele levanta-se sempre muito cedo. Ainda antes de mergulhar a sua sede ma manteiga derretida do pequeno almoço, levanta os olhos para o tecto e suspira. Ali, mesmo ao lado, do outro lado de um tabique, o seu vizinho também se levanta e, ainda antes de começar a tossir e a assobiar para que toda a casa (a dele e a dos outros) fique acordada e enojada, ele tem tempo para se espreguiçar e tentar um enorme bocejo. Saem simultaneamente das suas casas como se tivessem combinado. Para uma varanda colectiva, onde trocarão de papéis: ele boceja e o seu vizinho suspira. Estão agora prontos para ir até á fábrica onde trabalham lado a lado. Nunca trocaram uma palavra que se saiba. Ao fim do dia, regressam a suas casas simultaneamente. É assim todos os dias.

saltar o muro

um dia em que te demoraste distraída
na porta de entrada
abri para  ti  
uma porta de saída



e nunca mais te vi.

Volto a Aveiro por um bocadinho.





Eu vivo em Aveiro, entre Santiago e Santo André. De vez em quando,  salto até terras de Santo Amaro que por lá tenho irmãe. Também visito S. Cristôvão a acompanhar uma sua devota que comigo partilha a chave de uma casa.Visito os lugares e nunca os seus santos.  Visito árvores. Visito estátuas. Visito bibliotecas.

Quando me dá para visitar o lugar onde vivo sobe-me o sangue à cabeça. E rogo aos meus santos que, em podendo, filmem com seus olhos de ver a deus as ruas mais e menos esburacadas e para os passeios que não existem e para os passeios que existem. E munidos das mais belas imagens da minha vida, projectem em face de autarcas a memória do que viram.

Ouçam como gritam no seu júbilo:  Vimos, ouvimos e lemos. E não podemos ignorar o milagre! Como foi possível nunca termos visto tão magníficos buracos nas nossas ruas? E ouçam as suas promessas: Se nunca por essa ruas passámos,  até elas vamos! E gritaremos, como grita a neta deste santo, ao ritmo caótico dos saltos pneumáticos do carro: Estrada maluca carro maroto! E saltem e soltem as suas gargalhadas  tais como as infantis gargalhadas da santa joana quando viaja entre a chave e o mário sacramento.

Gostar de viver em Aveiro não nos faz esquecer  que somos governados localmente por planeadores e chefes  infantis que acreditam em milagres e só abrem os olhos por milagre e se comprazem com os buracos e a sua opacidade entres os mais opacos.


De qualquer modo, tenho de congratular o tino e  as crianças que brincam nas câmaras de ar pelo calcetamento de um passeio sem par na rua que homenageia um autarca enquanto descemos para um hotel de luxo que dá para uma lagoa abandonada à sua sorte de criada pelo deus da extração de barro de há cem anos. Tudo ali mesmo ao pé da Câmara, do Centro Cultural, etc ...  Ajoelhei-me a rogar a Santa Luzia que os ajude a ver através dos opacos vidros fumados e das pálpebras coladas pelo rimel e pela ramela. Talvez baste abrir janelas. Sei lá.

O ano foi salvo pelas pedrinhas de um bocadinho do meu caminho daqui até  à estação dos caminhos de ferro. Qualquer que seja o caminho que tome, imaginar o que devia ser o caminho… até dói. Está melhor, mas  só um bocadinho.

moldura e família


as caras mais a cara do burro feliz