ele e o seu animal em bolha desgraçada

da tirania (a partir agora um caderno de setembro de 2004)

da juventude

não me digas que as comeste
porque ninguém,
nem a tua mãe,
te tinha dito que as lâminas
de barbear não se comem?

como se não houvesse paixão
no rato de biblioteca


quando passeia pelo buracão
de entre livros uma e outra seca
de cozer em lume brando
quando o poema já escrito
numa mesma e sempre nova até quando
vezes sem conta só finado pelo grito


que os poemas são citações
ditadas para laboratórios
onde não entram emoções

se já não há tuberculose nem sanatórios!?
!?!
?!±

que estudavas tu de “remarkable”?

de outro mundo mais claro … antigo

Amor impresso na alma, que dura depois das cinzas.

Se a minha morte de meu amor viesse que parto tão ditoso que seria o deste amor contra o que em mim vivia! Que glória, que o morrer de amor nascesse"

Na alma eu levaria onde estivesse o fogo em que me abraso e guardaria sua chama fiel côa cinza fria mesmo no túmulo onde adormecesse. Dessa outra parte da morte mais dura viverão em minha sombra meus cuidados. além do Lote a minha memória.

O doido vencerás pila formosura: com pura fé triunfará dos fados e o não ma ser, por amar, ser-me-á Francisco de Quevedo (1580-1645) glória.
IV. Barroco. José Bento)

sobre uma força acrescentada ao livro

agosto de 1992
praia
rádio nova
aresta

notas escritas para dizer depois da praia


Todos os dias o víamos chegar à praia. "À praia!" é uma maneira de dizer. A mulher que o acompnhava vinha estenderduas toalhas à beira do mar, e , por ali ficava umas horas deitada numa delas. Por vezes levantava-se e ia molhar os pés, o rosto e a cabeça. Ele nunca metia os pés na areia.
Sem dizer uma palavra, antes de entrar na areia, ele virava à esquerda e ia instalar-se numa cadeira na esplanada do barzeco que ali havia. A empregada já sabia e trazia na bandeja uma bica, um quarto de pedras e um copo.
De uma pasta velha, via-se que ele tirava uns livros e um caderno enquanto olhava distrído para o mar. Muitas vezes via-se que olhava para a mulher deitada lá ao longe. Lia a maior parte do tempo. De vez em quando, escrevinhava no caderno de capa dura, com aplicação.
Pensávamos que devia ser escritor, professor ou coisa assim.
Era assim, todos os dias, até este ano. Agora é quase assim: ele vem, vai sentar-se na esplanada, tira os livros. Mas em vez do caderno e da caneta ele põe em cima da mesa uma pequena máquina do tamanho do caderno. De vez em quando, como antes escrevia, agora bate no pequqeno teclado, com aplicação. Textos? Cálculos?
Pela empregada do bar, ficámos a saber que agora, ele usa um PowerBook.....
E não sabemos mais sobre ele. Fazemos apostas sobre o dia em que ele vai atravessar o areal e deitar-se na toalha que a mulher todos os dias para ele estende cuidadodasment.


dizer mais tarde das casas aos arquitectos

(1)
«Falemos de casas. E das doces mãos que as afagaram nos estiradores. Ainda antes dos pedreiros desenharem, pedra a pedra, as linhas dessas mão aventureiras. ¿Que outros olhos podem arriscar a luminosa dimensão do habitante futuro? Falemos de arquitectos, de uma batalha, do poder antigo dos deuses que criam as casas para cada um, segundo asua felicidade. Falemos da paião da deseordem na criação, falemos da ordem na construção. Falemos de harmonia e luz.
De uma janela nocturna e vaga, um arquitecto vê a cidade e sorri quando descobre, ao longe, a sua impressão digital.
(2)
Falemos de cass na paisagem. O poder dos deuses é esse: na paisagem espalhar uma casa aqui uma casa ali. Ao distribuir as casas se distribuem as pessoas, os animamis, as plantas, as pedras. A vida é feita das companhias, das que rastejam para o buraco da cave/caverna, das que voam para a boca redonda de um ninho na montanha da casa, das que estão na espera da luz e da sombra, das que pairam como a neblina da manhã. A vida é feita dessas linhas. Esperamos dos arquitectos essa graça de amar a paisagem, em paz com ela, em guerra com ela.
Se alguma estrutura rasga o céu, há um risco que o lápis não concluiu e há um arquitecto que se sumiu no vento. Falemos de arquitectos, falemos da arte, falemos da ciência, falemos dos construtores do mundo.

(3)
Quem desenhou a tua porta? Quem decidiu que a tua janela abre para esses lado da vida mais sossegada? Quem desenhou o passeio que te guia os passos? Quem imaginou o labirinto em que te perdes? Falamos dos arquitectos, do desenho das margens dos rios que nós somos. Se falamos de nós e da violência dos rios que galgam as margens, porque não falamos as violentas margens que nos comprimem? Porque não falarmos dos arquitectos?

O cão escolhe o sítio. Desenha as suas fronteiras de cheiro. E nós? Somos levados pela trela a percorrer o labirinto desenhado pelo outro, o arquitecto. Saibas tu identificar-te com o arquitecto feliz com cão.


dos descansos
Hoje amanheceu sem sol. O nevoeiro tomou conta de tudo.
(1)
Ainda antes de me levantar soube tudo isso pelos ouvidos. A ronca do farol não descansou enquanto não invadia o meu torpor com o seu aviso à navegação. O meu corpo ainda navegou no mar dos lençóis por mais uns minutos, até quesenti o casco bater nas pedras. Antes do naufrágio iminente, acordei realmente.
Levantei-me. Tomei um duche e vesti-me lentamente. Enquanto me vestia, ouvi um resmungo a perguntar as hooras. Respondi: Dorme! Está muito nevoeiro e está frio!
Passei à cozinha, preparei o café. Com as persianas levantadas, sentei-me à mesa da sala a bebericar o café e a olhar para o manto de nevoeiro que não me deixava ver o mar.
Depois, com alegria, disse alto: " Bom dia para mim" enquanto ligava o computador e ajeitava as folhas as folhas dos esboços por onde me guio, ao ritmo da longínqua ronda do farol.


(2)

O poeta caminha a largas passadas pela areia húmida. Não gosta da areia nos sapatos e, por isso, arrisca-se ao assalto da água.
Quando é assaltado por alguma imagem que não quer perder, baixa-se e escreve com o dedo, na areia. Depois, agarra essa areia cujidadosamente e mete-a no bolso.
Tornou-se em motivo de troça para toda a rapaziada da praia, mas ele parece nem dar por issso. Ou não se importa mesmo nada.
Quando chega a casa, tira a areia dos bolsos e espalha-a na mesa. Já lá não estão as palavras. Mas ele está a vê-las na areia, enquanto liga o computador e as transcreve letra a letra para memória do deu Macintosh. Só depois de depositar as palavras no computador é que limpa a mesa. Com cuidado, para não riscar.
Quando Agosto chegar ao fim, o seu livro "Palavras de areia e vento" está pronto para ser impresso na Laser e entreguena editora.



Abril de 1993

Memória FM
aresta




(1)
Ontem imaginei as caras do amigo de hoje.
Procuro, pelas ruas de hoje, a face.
Nasci para te procurar em todas as faces e quando te encontrar hás-de ler-me os olhos. Saberás distinguir-me entre todos os outros vultos. Mas serei eu a mostrar-te o caminho e a forma das asas que te faltampara transpor o abismo entre o que pensas que não sabes e a liberdade toda que te quero dar.
Eu procuro a tua curiosidade criativa e esplêndida. Procuro a face irrequieta - a juventude da vida por descobrir.
Tu verás em mim o pecado, sem pecado, da mação original - fonte de todo o conhecimento do bem e do mal e da humandidade. Em busca do caminho de regresso ao paraíso, agora fonte da sabedoria sem limites, encontras-me como memória, caminho, ferramenrta, interface.
Eu serei feliz contigo.



(2)
Quantas ilusões guardas no teu coração? Quantas descobertas tens por fazer?
Se não te chegam os dedos das mãos para contar as paixões que queres viver e se é preciso procurar em todas as imagens, em todos os sons, em todas as palavras a descrição para as tuas emoções então aindda estás vivo e a vida está em todas as esquinas.
Há uma ciência e uma arte para os teus gestos . À primeira dão o nome de curiosidade, prazer na novidade, investigação. À segunda chamarão criatividade, expressão artística, gosto, desejo,e busca da beleza.
E eu espero os teus dedos, ágeis instrumentos da tua inteligência. Mais que uma ferramenta e extensão da tua inteligência, eu sou uma emoção a acrescentar à tua vida.
Quantas ilusões guardas no teu coração? Quantas descobertas tens por fazer?



(3)
Quando abres a gaveta, encontras um poema, uma carta, a letra de uma canção que não quiseste esquecer, uma fotografia que tinhas esquecido, um cabelo roubado, um clip, uma folha amarrotada por uma fúria que já passou.
Quando fechas a gaveta, estás pronto para outra, que nem sabes qual é. Mas isso que interessa? Aumentos o volume doo som do video clip que não te cansas de sentir com os sentidos todos.
Há a memória das coisas feitas. E há a memória das coisas por fazer, uma memória do futuro. Que não te falte a imaginação das coisas feitas e não te falte a imaginação das coisas pque vais fazer.
Eu estou nas tuas encruzilhadas e acrescento memória e imaginação à memória da tua imaginação.
Podes aumentar o volume? Eu gosto da música e da letra - tanto como tu.



nota: das memórias perdidas não completamente. escrevi e recebi de mim o texto batido por mim. tenho a certeza que nunca ouvi esse som de porto
.

onde?

da inspecção pedagógica
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láqis na agenda das notas de alguns dias de 1989 que vamos ler e escrever de novo

à superfície da água só navegam
ideias leves
vestidas de sedas
que nós olhamo-las... distraídos
a olhar.

mas nos olhos as águas são profundas:
na sua superfície espelhada
bate o sol mais brilhante
e é vigiado o olhar mais vigilante

de certo modo olhar é abraçar
o que se está a ver
são as dúvidas que brilham quando trocar
é o que está a acontecer

rasgam-se assim as margens do rio
por onde corremos
de todos os lados olhamos
e nunca é tudo o que vemos

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a primitiva casa

em memória do poeta da aldeia


é verdade que não lembra as datas em que morreram
(como poderiam lembrar-se da data em que nasceram? se ainda não tinham nascido) nem pode recordar a nitidez das pessoas e dos locais que descreve porque não vivia no tempo em que deram as caras ou as varandas à luz do sol que os tisnava para ganharem a cor que os seus olhos viram depois ao avizinhar-se de todos eles como se fosse o estranho da família que vai a enterrar num antigo curral de porco.


sobre raimundo, o poeta


raimundo é um poeta de má mwemória. pensa-se que nasceu na região de aveiro, mais propriamente conhecido num lugar conhecido por trás-da-moita ou lagoa-chorida, na actual frenguesia de santo-andré do concelho de vagos. não se conhece a data de nascimento ao certo, mas pensa-se que morre em dezembro de todos os anos. dele se sabe que nunca quis aprender a escrever e muito a ler, mas que frequentou a escola primária pública da sua aldeia, assim como frequentou a catequese e fez a primeira comunhão. há quem diga que fez o crisma e escolheu arsélio martins para segundo nome. os seus escritos dispersos e consiiderados obras sem qualquer importância têm vindo a ser desenterrados por um obscuro professor de matemática do ensino secundário que dá pelo nome de arsélio martins. arsélio martins afirma que descobre os papéis de raimundo na estrumeira do pátio da casa onde nasceu e onde cresceu. durante vários anos, arsélio martins, um homem sem energia e sem grandes convicções, ou pelo menos pouco dado a valorizar o seu trabalho, publicou em alguns suplementos de jornais e revistas, ao sabor da sua desorganização mental, alguns dos textos que recupera da estrumeira da sua vida. muitos dos textos estão de tal modo tratados e acrescentados (até pela inserção de dados que não podem ser do conhecimento de raimundo) que não podem deixar de se considerar completamente reinventados pwlo professor de matemático. da mesma estrumeira, arsélio martins retirou a maior parte da sua cultura. sabe-se que, sendo homem de várias leituras, o actual professor obscuro começou por ler obras carregadas de ateísmo e cientismo e escritos obscuros de um seu avô, velho regressado da américa-do- -norte onde tinha permanecido durante trinta e cinco anos sem ter dado notícias. do mesmo modo leu obras de autores brasileiros que enchiam arcas que o seu pai enviava do brasil a acompanhar promessas de regresso que nunca se chegaram a cumnprir. o rasto desses volumes perde-se nas estrumeiras do seu pátio, que foi, muitos anos depois, um pátio cimentado onde se guardou um fiat 127. hoje, a confusão é total a respeito da autoria da maior parte dos escritos. ninguém pode dizer onde começa e acaba a obra de raimundo; muito do que aqui se divulga pode ser cooisa escrita por arsélio martins que, a sua imaginação doentia e supersticiosa atribui ora a raimundo ora à assombração de raimundo. seja o que for é raimundo. seja o que for, é aqui e em mais nenhuma memória.

eu em março de 1971?

(março de1971 em Leça, eu escrevi no caderno de grupo poético
- escreveu-me JCPSoares, muitos anos depois)


aquele menino maluquinho
meteu asas ao caminho
e apodreceu de livre vontade.

e assim à vista de todos
sem procurar venenos ou outros modos
de matar-se caíu podre dentro da cidade


aquela menina de agasalho
passou pelo meio do menino caído
e teve muito nojo e pena de ver um caralho
tão novo e apodrecido.

e desde o dia de tal memória
ficou maluquinha e apodreceu nesta história.

à margem da vida há vida na margem....

..... de ontem

Filhos, netos, amigos tomam conta de flhos, avós e netos retirando-os do ninho até novo pombal porque sabem que do teatro podemos receber aulas, escolas e futuro.
Deste alto futuro, agradecemos a vida que nos dão:

Simples é consultar um nome próprio do teatro e uma MARGEM
https://www.nomeproprio.pt/cH1XRpdJwg/nome-proprio/


Quem são estas pessoas colocadas à margem, e quando é que essa marginalização começa?
Na casa de partida da vida, temos todos as mesmas hipóteses ou alguns começam já em défice?
Há formas de quebrar isso? Será realmente admirável o mundo novo que construímos, com os ideais de igualdade...

despe dido

por uma vez despido despedido
de emprego que nunca foi certo
por outra vez vestido revestido
de vestido vaporoso de galinha
não sou levado em ombros empurrado
ou outra vida que não a minha
sinto-me sombra de escombros despejados
de mim numa lixeira aqui perto

Apresentação do livro "Na Hora da Mudança" de Arsélio Martins




"Na hora da mudança" de Arsélio Martins Editora: Rosa de Porcelana Editora Nesta sexta-feira, 27 de setembro às 18h no MIRA FORUM foi apresentado o livro "Na hora da mudança". É uma amostra da produção poética de Arsélio Martins, autor até aqui “disperso” em periódicos, em programas de rádio, plataformas eletrónicas e outros meios, a partir de Aveiro, a sua cidade. Este é, pois, um livro balanço, no sentido de ser uma “amostra” dos vários momentos da poesia deste autor, sem os esgotar, contudo. Mas é, simultaneamente, um livro revelação para quem apenas agora descobre este poeta. "Na hora da mudança" atesta que Arsélio Martins em nada desmerece essa tradição, panteísta, pagã, lírica, órfica e, amiúde, de interrogação do real, como diria Ramos Rosa, mas também da memória guardada e consentida, até porque memória e esquecimento são faces da mesma moeda. E, no caso presente, este é o poeta que, no seu confronto com “deus”, nos adverte: “Arriscada é a ascensão aos céus/ pelo poste ensebado”, porquanto “Todo o sagrado é obra do homem”.

porta de entrada - para sair do index onde se perdeu

entrada
entrada




a porta de entrada é a porta de saída - disse-lhe a mãe, sem apontar qualquer saída.
o filho bateu com a porta para poder perguntar: -
quem fica dentro?
hoje está um dia quente! - respondeu a mãe, deitando-se sobre a cama acabada de mudar.
fecha a porta, mãe! vem para dentro! os vizinhos estão a espreitar! - o filho falava docemente.
quando acordar, parto! ainda não sei o caminho, mas tem de haver uma saída de mim! - disse a mãe, antes de adormecer.
bateram à porta, mãe! vou abrir? - perguntou o filho, já a mãe tinha partido de si.





- quem chegou? oh meu sussurro de ar! és tu? entras tu ou saio eu?
- a minha mãe? viste a minha mãe?
- ela passou por mim, livre. disse que me esperavas. é verdade?





oh doce encantamento! os teus dedos que separam as nuvens
de fumo do meu cigarro incandescente preparam a ternura
de não mais que um gesto cego e vago passeio de ar no meu peito
enquanto uma erupção faz de mim a nascente do rio de lava
que procura a foz em ti, em teu delta - a espera ansiosa que finda.

animaçal


Tive um animal de estimação com quem valia a pena falar sem dizer uma palavra. O melhor dia antes de o perder de vista foi quando ele percebeu que eu o ia fotografar para nunca mais o perder de vista.

se sei a cor do tempo que faz

A cor do tempo que faz

Ainda se lembrava da cor do seu tempo. Quando nos encontrávamos acidentalmente ele soltava a língua para me dizer o mesmo de sempre: sei muito bem a cor do meu tempo.
Eu não sabia como continuar uma conversa que assim começava mas não me ia embora sem dizer alguma frase de circunstância para dentro, muito baixinho dentro da minha cabeça para ninguém ouvir. A minha avó tinha dito para eu dizer isso quando me visse a braços com um encontro das palavras sei muito bem a cor do meu tempo. Também me disse que não movesse a boca ao dizer, mesmo que fosse muito baixinho, alguma frase de circunstância, e eu assim fazia sempre para não ser mal interpretado que, acrescentava a minha avó, era preciso que não se ouvisse o que eu pudesse dizer.
Um dia, sem precisar de apoio para a coragem de falar em alta voz, em resposta à frase sei muito bem a cor do meu tempo informei-o calmamente morreu a minha avó que penso ter conhecido por saber como ela o considerava e o conhecia muito bem a ponto de ser ela quem me ensinou a ouvi-lo sem lhe dirigir qualquer palavra que se ouvisse quando lhe respondesse.
E ele respondeu: sei muito bem a cor do meu tempo.

vermelho do meu sangue

E neste ano, para agradar à falecida avó e aos reis magros e frugais, deparou-se com a obrigação de ser o que nasce para morrer pouco depois na cruz prevista para a sua morte. E, só tarde, percebeu que estava metido em trabalhos tais como ser chamado em cada ano  para representar o que nasce. Em resposta a um murmúrio da multidão que se juntara para a missa do galo e, já preso na cruz, ele gritou em voz baixa Se é bom?  Para mim será bom ver outro aqui no próximo ano o que levantou o galhofar da multidão até às lágrimas de tanto rir. Na festa da quaresma, porque não se fala de outra coisa, até as crianças sabem bem que é sempre o mesmo a gramar com os espirros da vaca, o frio do ninho de  natal e os pregos da cruz até à páscoa em cada ano. Só ao neto da falecida avó é que nunca disseram que ela tinha deixado uma boa maquia para garantir que, após a sua morte, em cada ano, na sua terra, o seu neto fará a tempo inteiro as vezes do cristo todo o tempo  desde o natal à páscoa.E todos os anos até à grande final no ano em que o seu amigo Judas trinque a última daquelas trinta moedas que a sua avó queria ver trincadas, uma por ano, que ganhara ao jogo de resistir a pôr no prego.

A coroa de espinhos

A coroa de espinhos Não é muito raro uma mulher  ser enfeitada ou enjeitada. E é mais raro ainda encontrar uma mulher que não use ou não tenha usado uma coroa de espinhos, pelo menos uma vez na vida. Para que os homens da vida de uma mulher sejam considerados porcos espinhos têm de dar a saber serem capazes de morrer em vida  por amor enquanto brincam com as suas vítimas ao fura orelhas  ou narinas em troca de brincos pendentes, escravas, anéis e colares de ouro. As suas vítimas são as vítimas mais amorosas que amantes e mais arranhadas que amadas. Quando isso acontece pela aldeia na quaresma de toda a gente, não há quem estranhe as feridas fáceis e faciais da vizinha sempre que esta sai a passear de braço dado com o seu namorado ou esposo e vai  enfeitada com a coroa de espinhos de um porco espinho, como um véu de quem não pode andar de cabeça ao léu.




aprende-se a entrar sem problemas no zoo

uma capa de 2008




capa de quê? de uma borrada mal colada qualquer..... e eu gosto de a ter desenhado e de a ter de volta ao ninho quando já nem eu sei........... capa de quê?

danças da manhã

  1. ela ri de tudo o que acontece


    ela ri de tudo o que acontece

    quando se aninha no meu corpo
    e ele estremece

    e, quando na brusca busca do corpo,
    o corpo adormece

    ela ri de tudo o que não acontece




  2. quando acordares estás servido


    quando acordares estás servido
    pela desquímica do teu desejo:
    o sumo de laranja, o ovo cozido
    o café da manhã , o adeus e o beijo.


    quando acordares estás de malas feitas
    e em vez da vida escolhes o emprego
    vala comum de onde espreitas
    a esquina subterrânea e o palco do cego


    toma o teu lugar, despe o cheiro,
    pendura as palavras que disseste
    no teu tempo mais inteiro


    mas se não puderes despir a glória
    da noite que viveste
    queima a farda para aquecer a memória.



  3. com as unhas abre um corredor


    com as unhas
    abre um corredor de maresia e sémen


    nas palmas das mãos
    abre os vales de um labirinto para o fio do sangue
    de modo a que eu te encontre enquanto te persigo
    e antes de acordar
    a palidez da vida.



  4. podes sempre imaginar a arquitectura


    podes sempre imaginar a arquitectura

    como uma palavrosa e teórica estrutura
    que explique como da manhã se faz a tarde

    podes sempre imaginar que não és deste mundo
    e que buscas a imperfeição que abandonaste em vida

    seduzida por um anunciante de produtos para a felicidade

    podes sempre imaginar um molde
    para as tuas idas e outro para os teus regressos

    e uma harmonia para os editais das tuas promessas.



  5. espero na manhã cinzenta


    espero na manhã cinzenta
    o sossego do jardim molhado:
    uma árvore que estremunhada estique
    os ramos e cante
    ou que uma ave presa dentro dela cante.


    quando
    a multidão das aves se calar
    uma gota de silêncio caia lentamente para o ar.



  6. sábias mãos no corpo da manhã


    sábias mãos no corpo da manhã
    sábios os dedos quando
    entram e abrem – entreabrem
    os seus lábios


    sábia a língua que fala a língua
    do corpo da manhã ao seu baixo ouvido
    sábio o sexo que ouve compreende
    explode e não se rende
    mesmo enquanto sucumbe

    assim, a lança
    que fende
    desvela uma fenda
    de luz.



  7. e a mãe do actor faz de virgem faz de conta


    e a mãe do actor faz de virgem faz de conta
    num bordado a ponto de cruz
    contracenando com uma madalena barata e tonta

    dos braços em volta, os laboriosos dedos
    procuram o calor de uma nesga da luz
    coada pelos martírios dos medos


foi publicada há muitos anos e eu não me lembrei por ter sido mas por voltar a ser ou a não ser...
© adalmeida

o labirinto do peregrino quando sobrevive um dia mais

Cada um dos pereregrinos em labirinto pensa que conhece uma saída. Desenharam-lha no mapa da fé que recebeu como herança. 
Quando, num dos corredores do labirinto, um peregrino encontra outro de fé diversa, pode puxar da metralhadora. É por isso que os corredores dos labirintos do homem estão juncados de cadáveres. 
O chão do labirinto é feito de cadáveres que, na sua rigidez e podridão, criam uma elevação de cartografia sem fé. Quando a elevação é tal que os peregrinos podem ver por cima das muralhas do labirinto, são castigados pela luz. 
Cada um, à maneira da sua fé, benze-se perante a realidade e, em vez da metralhadora, pode estender a mão. Falo dos peregrinos que se benzem de pé.
Os que só se benzem ajoelhados nunca verão por cima das muralhas. Para estes, a realidade tem o cheiro inconfundível dos seus mortos. Para estes, a saída é a redonda e abençoada boca da metralhadora capaz de fazer sobrepor o cheiro da pólvora ao cheiro dos mortos ou de tornar o cheiro inconfundível dos mortos dos outros mais forte que o cheiro dos seus mortos. 
Nos muros de Jerusalém desenhei estas palavras, nem tocadas pela fé, nem tocadas pela esperança. Queria dizer que as minhas palavras são sopradas pela razão e pela mente.
Mas, perdido no labirinto das razões, sei que não há razão sem fé não sei em quê. 

de há quanto tempo o quê e....

.... como te repetes....... repetidamente



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dei por mim
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Dei por mim a falar
para o boneco
que estava em palco
e em pânico.
Ouvi alguém dizer
ao boneco
que estava em palco
e em pânico         eu.

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escolhida a palavra
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o dia estava bom para nada

uma morrinha despejada do céu
caía mansamente na cabeça
da cidade

quem tinha deixado o chapéu
em casa nem acelerava o passo
e assobiava
as palavras que já tinha escolhido


ao chegar a casa
só me restava confessar a mim mesmo
que me esquecera
das palavras que tinha escolhido


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quando amanhece
---------------------------

amanhecem os patos
na borda da água.

entretanto
na água
uma mulher entra decidida
a depenar o primeiro
pato do dia

e, já cansado da insónia,
um filho de paito conhecido
entra na fila dos clientes
para o leilão dos chapéus.

no mesmo instante,

a multidão dos patos
lança-se à água
no ponto onde comerão

quem os espera com um saco de pão
despedaçado
minuciosamente.

entretanto, liberta, voando
a mão que lhes acenava

migalha a migalha,

gota a gota,
sangrava.

--------------------
à torre
___________________

ao longe, a torre.
não ouço, mas podia ouvir.
se não fosse surdo, ouviria o sino da torre.

não o vejo, mas sei que aquela torre não engana
e alberga um ou mais sinos.

não o vejo, nem o ouço, mas sei
que aquela é uma torre sineira.
e isso é tudo o que preciso de saber.
o resto é consequência.
a existência, a prova de vida,
o passeio do cego,
o passeio do surdo,
o passeio da rua.

em tempos, vi a minha rua
pela primavera,
pelo verão,
pelo outono
e pelo inverno.

conheço a minha rua de olhos fechados,
como a palma da minha mão.

gosto muito da minha rua.
já posso gostar sem sentido.

sem sentidos.


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vai andando, vamos andando
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sem pensar sempre sem pensar
no passo seguinte vais andando sem parar
e sempre procurando o lado correcto
do passeio e da passadeira
vamos andando e devagar e a parar
para ver o lado de onde vem o ar
ou para virar as costas ao ar
soprado ou para olhar para o chão
sagrado que nunca nos custa pisar
como se os nossos passos deixassem
uma marca que ao chão dissesse
alguma coisa nenhuma de nada

se lermos hoje o que dissemos
uns aos outros há alguns anos
com a emoção da zanga
– o desaguisado –
não paramos de nos rir da falta
de importância desse momento
maior que nada
e vamos andando sem parar mais um pouco
para cumprir uma decisão maior
que o flamingo que pensas
que avistaste ao longe antes de perguntar
se não podíamos aumentar a visão
com o smartphone ou outro binóculo para
confirmares que os flamingos
nos abandonaram este ano

e eu vou andando sem querer saber
da importância da falta
do flamingo porque eu gosto mesmo é
das pequenas garças que quando dão por mim
fazem uma nuvem como se todas tivessem sentido
medo da minha sombra passageira.

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o positivo do negativo
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Há fotografias que mostram as poses muito variadas
assumidas ao longo da vida,
leve e pesado, alegre e triste, à soldado e à civil,
sempre baixo e fácil de arrumar
em camas pequenas e em casas de pé baixo.

Muitas pessoas que conhecem o original
há muitos anos, quando o encontram,
repetem que ele está sempre na mesma
e ele habituou-se a retorquir que sabe que foi
velho desde sempre e, por isso, nem deram
pela seu actual pêlo branco
que faz de si um urso polar aqui
refugiado da alteração climática
na calote polar

O que pode haver de positivo no negativo?

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empurra a sombra
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No cimo do monte, alquebrado, sentou-se para descansar.

Foi-se a sombra da árvore que o tinha acolhido e
o sol caminhou para o pôr do sol e
perdeu-se numa escuridão tão soturna como fresca.

Deu por si a sonhar que com os pés empurrava
a sua sombra pela encosta abaixo.

Ainda não se tinha despegado da sua sombra
quando teve vontade de dois dedos de conversa
e lamentou não ter quem o ouvisse falar
da sua paz no encosto da sua terra,
da sua montanha.

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demolição
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Levantei-me para ver que nada há
que eu possa fazer para mudar de casa,
— disse a mulher que não queria mudar de casa
e continuou -— e, de certo modo,
é isso que eu quero porque me habituei
de tal modo a esta casa que chego a pensar
que ela é minha e só minha
ou eu sou dela e só dela.

O homem que não lia o seu velho jornal
tranquilamente, por estar sempre a ser interrompido
pela alta voz da mulher surda do andar
de cima, levantou a voz para dar
prova de vida, e disse
em voz a uma certa altura:

Devias ter dito
levantei-me para ver que
nada há que eu queira fazer
para mudar de casa.

A vizinha da casa ao lado
aumentou o volume do seu som
dizendo ou cantando o que era costume dizer:

Avé Maria cheia de graça o senhor
é convosco bendita
sois vós entre as mulheres
bendito é o fruto
do vosso ventre Jesus zzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz

que só se calou quando
o prédio ao lado estremeceu com um grito:
Amen.

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a luz e o tempo
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É quando vemos
a escuridão do porvir
que tentamos deixar de ver
como se não pudesse ser nossa herança,
essa escuridão.
É quando abrimos os olhos
tentando enfrentar, defrontar
e confrontar a nossa passagem
que pode acontecer vermos como eles
continuam em frente, sem saber
o que nós sentimos por tentarmos
adivinhar o que está là à frente
pelo que esteve lá à frente no nosso tempo
e ao saber como vamos ficando para trás.
Naturalmente, são como nós que fomos em frente
cheios de medo e só capazes de dar o próximo passo
em frente e entrar na,
percebemos agora,
escuridão do nosso tempo.
É quando percebemos que pode ser outra,
mais tenebrosa escuridão
a de hoje que a de ontem,
ao vê-los avançar vendo, sabemos
que eles são muito melhores que nós
e sabem mais que autorizar
a si mesmos o passo em frente.

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senhores da guerra
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Do cabelo faz um elmo de guerreiro e este,
assim triste foi denunciado pelo olhar.
Há quem consiga imaginar e imaginar-se
alegre e guerreiro simultaneamente e,
só por isso, é ainda mais triste o duelo
que trava consigo mesmo até à morte.
Não falo de piedade, quando falo dos guerreiros
na aparência alegres e a passear a idolátrica
e o esplendor para uma multidão
de crânios ocos, na verdade cada um deles oco,
sozinho e triste.
Falo só do vazio em que o elmo
encerra quem o encera antes da marcha triunfal
que é sempre uma derrota para a humanidade.

Os homens senhores da guerra acham
que todas as vítimas mortais das suas guerras
pela guerra ou das suas guerras pela paz
são danos colaterais.
E a soma dos danos colateriais só nos diz
que a humanidade é um dano colateral,
uma banalidade para os senhores da guerra
alienados da sua humanidade.

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entre o pior e o melhor
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Dizem-me que o pior ainda está por vir.
Também me dizem que é o melhor que
está ao virar da esquina.
Fiquei-me pelo meio da ponte
que liga o pior ao melhor
sem me preocupar onde era
uma coisa ou outra.
Ali permaneci por muitos anos
sem saber do melhor e sem saber do pior.
Habituei-me ao lugar onde morri
e agora é tarde para mudar de lugar.

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foi a tenpestade que baixou os braços
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Foi a tempestade que baixou os braços,
amainou finalmente
e eu tive pena dela, muita pena,
porque, pelas ruas passeiam pessoas contentes
por ela ter desistido e ter ido embora.
Todas sem saudades dela
e sem desejar vê-la de novo.

E eu que não estive com ela
quando ela se despedia
briguenta e louca.
Só hoje me deu a vontade
de dizer-lhe adeus:
” Adeus, minha bela tempestade” —
que eu namorei da janela,
— “e como foste vibrante!”

Adeus, mulher, adeus.

4/7/88
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economia do voo
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Digo-te que amanhã hei-de poisar como uma ave cansada de voar.
Digo-te hoje.

Se te digo adeus hoje sei que não posso deixar de te dizer amanhã
adeus de novo.
Cansadas as asas, poisarei no teu beiral e olhar-te-ei um instante
Só por um instante te olharei
enquanto maquinalmente aliso as minhas penas
para voltar a partir.

Partirei, depois de dar uma volta larga em frente da tua janela.
Despeço-me. Parto sem poder partir definitivamente.

Digo-te adeus. Porque hoje não sei mais que dizer
e os meus gestos têm a economia própria
de quem voa.

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umas vezes por outras
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Uma vez por outra,
via-se um senhor de fato e gravata
a passear o seu cão pela gravata:
nunca separados e, sempre de igual cor,
vestidos a rigor, um vestido como cão
e outro como cavalheiro.
Quando os viam, as pessoas perguntavam:
Quando não os vimos, onde é que eles estão?
De onde é que eles vêm?
De resto, nunca ouvi falar do cão
nem do cavalheiro a quem os via
uma vez por outra como era o meu caso.

Um dia vi, colada no vidro de uma loja
que só conhecemos fechada,
uma fotografia do cão e do cavalheiro

DESAPARECIDOS

se alguém souber do seu paradeiro,
p.f. informe Dona xmxmvmcml para o telefone ][@€£§
Infelizmente com esses dados nunca
nos foi possível chegarmos à fala
com a Dona para lhe comunicarmos
o que não sabíamos nem sabemos.

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o homem levanta-se do seu lugar
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O homem levanta-se do seu lugar e caminha até
uma porta fechada do comboio parado
no apeadeiro.
Teimosamente carrega em botões
até que a porta se abre.
Inclina-se e, pela sua mão,
entra na carruagem um velho cego
que, imediatamente apalpa com as mãos
o que divide o espaço sem tocar nas pessoas
à volta.
Com a sua bengala segue até encontrar
o lugar disponível e senta-se.
Ainda antes de ter voltado ao lugar
a meu lado o homem que vê,
já o velho cego está sentado
no lugar que escolheu e olha-nos
onde estamos no banco do extremo oposto
ao seu na carruagem.

Ouviu cuidadosamente os passos
do homem sentado ao meu lado.

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nunca será a tua vez
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disseram-te, ouvi dizer, que um dia será o teu dia
e que uma hora será a tua hora
mas também, ouvi dizer, que agora
mesmo agora teria
sido a tua vez
assim tivesses dado por ela
antes de te atirares pela janela
na tua nudez

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rugas
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ninguém me contou o que se passou.
imagino que tenha sido como eu digo,
mas eu nunca soube ao certo quem sou

ou se a memória de mim viaja comigo

as rugas podem ser rasuras a negar
o que antes se disse a respeito do que foi
uma partida por mar uma chegada pelo ar

um quarto fechado onde o incerto me mói

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duas manhãs
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À primeira não a reconheci.
À segunda, distraí-me a olhar para ela sem pensar nisso.
A certa altura, percebi que estava a embaraçá-la
e tirei os olhos dela para olhar o relógio no pulso.
Ela viu bem que eu não uso relógio de pulso
e eu percebi que ela tinha acabado comigo.
Já era tarde e não havia nada a fazer.
Ela tinha esperado por uma palavrinha
e eu nem abrira a boca.
Mais cedo, encontrei-a e ela olhou-me
com a piedade que só as manhãs passadas conhecem.

Muito mais tarde dei por uma manhã a passar
por mim e logo que abri a boca
me pus à conversa com ela.
Não pensei em apresentar-me antes
de, deslumbrado, ter começado a falar-lhe,
confesso que falava alto e para todos
repararem, sobre a beleza da manhã
com quem tinha começado a viver naquele momento.
Nunca uma manhã passou por mim com tanta pressa.
Dentro dela, ainda agora, e ouvi tocar
as doze badaladas do sino da torre
na minha cabeça a informar-me que tinha saído
da manhã que se fizera tarde.
Percebi bem tudo o que me tinha acontecido
e porque é que nada do que me acontecera
poderia repetir-se. E sentei-me.

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as novas velhas de Alex(1)
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Um dia destes este amigo de Alex,
recebeu de Alex duas notícias:
que na década de 80 do século passado
conheceste ricardo soares e com ele te travaste
de razões, particularmente em julho de 1989, que me ofereceste quatro páginas
a5 de uma folha a4 dobrada a que deste
um título pretensioso “Os milagres”:

Ao primeiro poema chamaste

O milagre de Fátima




Não há lugar melhor para chegar à fala
do que a cama dos meus amantes:
— D. Clementina falava assim para a mala,
pendurando no cabide alguns brilhantes—

Doravante não me deixarei cair
em tentação — continuou D. Clementina,
virada para o armário do pecado, pronta a sair
da casca que usava em menina.

Tirou a cruz sossegada no seu colo,
e depois de O beijar, poisou-a no peitoril.
Só então saíu do seu quarto de hotel parolo
para a caça ao pregrino de Abril.

Ao segundo poema chamaste

O milagre do caulino



Por um breve momento, 100 aldeões levantam o nariz
para o sino a rebate.
E a guarda nacional e republicana do meu país
dispara e abate.

A minha glória patriótica vem
deste facto percentual:
mais do que na China, também
se mata em Portugal.


Ao terceiro poema chamaste

O milagre de S. Bento



Governa-nos.

Penteia-se de manhã.
Veste um fato cinzento de lapelas brilhantes.
Nas faces es(ca)vacadas afivela um sorriso.
Mostra os dentes rutilantes.
Discursa o discurso.
O único que sabe. O geral.
O seu génio é uma parolice genial.

Envenena-nos.
O que ele sabe é que funciona.
Repete que não há alternativa
e a alternativa é como ele no discurso e na saliva:
Só tem 4 notas a sanfona.

Estamos governados


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as novas velhas de Alex (2)
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Este amigo de Alex recebeu de Alex recentemente, cópias electrónicas (a partir de um site do projecto Aveiro-Digital) de textos mais ou menos poéticos publicados então e resgatados pelo amigo de Alex. Poderão ser visitados por aqui, em volta do que então se chamava livro 2 – crónicas políticas que incluia 9 pequenos textos. O terceiro deles exibia-se e dava pelo nome deixo mulher e dois filhos e parto . Penso que a maior parte dos três leitores de então nunca tentou perceber o título. Estou convencido que o primeiro dos três leitores sempre soube, mas nunca falou disso a não ser consigo. Aqui fica:

... tudo o que tenho trago comigo ...


Deixo mulher e dois filhos e parto.
Sempre para o norte, parto ao princípio
da tarde guiada pela estrela polar
(que se não via).
Há mesmo quem diga que a estrela polar
em vez de me guiar, me atrai.
E que não é a primeira vez que me perco
e que os meus filhos foram
cruzamentos com a estrela polar.

Também disseram que me cruzei
com um cometa passageiro (amor de um dia)
e que só isso explica a pequena cauda
luminosa (de poeiras astrais) que os meus filhos
ostentam quando se apresentam em toda a sua nudez.
Pouca gente ou ninguém diz isso,
pois apesar de estarem convencidos
disso nunca viram as esvoaçantes e luminosas
caudas verdadeiras dos meus filhos.

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Galocha
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Cortarei a relva por cortar
como se fosse um rapaz convidado
para brincar no teu jardim de brincar
onde tu mandas nas flores como em pau mandado

que eu sou para ter acesso
ao jardim dos meus sonhos secretos
onde te canto a tua vida como se fora processo
criado sobre estrume colhido nos currais mais abjectos

na esperança mais disfarçada
de que descubras o meu jeito de maldiçào
nos cheiros espalhados ao teu ar de amaldiçoada
por ti que moras na minha alma como os piolhos na solidão

Cortarei a relva por cortar
de novo amanhã e depois de amanhã futuro
para que possas rebolar-te entre as flores que vais cheirar
sem as plantar e nem eu as semeei sendo só acaso de vento podre de maduro.

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por quem grita? por quem gritamos?
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alguém ouviu a floresta das palavras?
a mim que nada ouço, parece
que as palavras são feitas
silêncio da sílica amorfa que forra
as paredes do rio de lava que não foi mais longe
por ter arrefecido ao ar ainda longe da foz que não conheceu.

ir em frente para a foz,
inclinados para trás como quem quer cair na nascente.

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nascente da foz
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nunca me espanto com tanto quanto sei
tu fazeres de ti e eu de mim sem voz
para que os dois lados da rua que nos separa
sejam as margens afinal de um rio de mágoas

e já não há tempo para nos juntarmos a nascente
nem coragem para mergulharmos à chegada na foz

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proibida a entrada <
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proibida a entrada
a menos que nada

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quando um rio galga
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quando um rio galga

a meretíssima meretriz
que escreve para o público
umas redondilhas sobre o seu nariz

ao seu jeito de quem se assoa
ao emaranhado ninho púbico
onde se assoou meia lisboa

sabe bem a quem abraçar para aquecer
o seu mealheiro de falso pudor
debitando fel essa praga de fedor
contra a contra cultura de contra-poder

a melra usa e abusa do seu meio
como fosse ele aquela antiga virtude
que faz gala maior no vício e amiúde
do que pinga da ganância faz seu recheio

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nada a nada se desenha tudo
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afagar o papel com as pontas dos dedos
desenhar a tua luz que se refugia
por dentro da esquina mais sombria
nos meus olhos chorando-te os medos

em ti desenhar-te o corpo pelas linhas
que os meus olhos vêem e os dedos sentem
dobrando os lençóis em que te embaínhas
como espada de palavras que a mim e ti mentem

e eu fosse o meu espírito perdido de mim
em ti de papel passado

© adealmeida

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pterodactilografo
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extinto
1
estou perdido numa era
que se separou do nosso tempo
por um rasgão de monteiro

algures onde não havia mãos
e as asas ainda não escreviam

teorias nem eram ferramentas
para voar sobre papeis

que ainda nem tinham pernas
para andar

contavam-se apenas como penas
os papeis da dívida

que só pode ser divina

e por isso negociável numa nuvem
entre o céu e o inferno
entre os credores que são testasv de ferro de deus e do diabo


2.
um antigo governo nomeou
um contrato milionário
a ser pago pelo estado

visando doar
a um grande grupo financeiro
um novo banco
cuja propriedade era já
do velho povo
nação valente
e imortal
de pessoas sobrevivas
em cada momento
no território


3.
variáveis conjuntos de pessoas
tomados como uma só mole
imensa
de contribuintes
fiadores
que vão morrendo
à medida que nascem
cada vez menos
novos contribuintes
fiadores
formando a mesma mole
cada vez menos imensa
como
comentam os pterodactilógrafos
justificando assim
novas e maiores contribuições
devidas por dívidas atribuídas
por estrangeirados e estranhos
a cada uma das partículas da mole
imensa
por divisão entre todos
menos os estranhos estrangeirados
para lhes pagar
a esses estranhos
tratantes
vigilantes
e visitantes
que vêm pastar o prado
cercado
por uma vedação de arame farpado
que, para ser privado,
só sendo sustentado pela mole cada vez menos imensa
e cada vez mais intensa


4.
régio monteiro
sabe que vai ser assassinado
e enterrado para ser comido,
na derradeira morada
que é uma casa de pasto,
por necrófagos em tudo semelhantes
aos assassinantes
como ele foi
em vida
abusando de nome e assinatura
em sentenças de morte capital
à mole humana sem digna sepultura
que dá pelo nome de portugal

Que não descanse em paz ó régio monteiro!

© adealmeida
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para uma teoria da devolução pg.3
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o primeiro sinal estava nas folhas
recebidas e o último esteve nas folhas
marcadas por sinais a anunciar
o seu regresso a casa.
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as caras mais a cara do burro feliz