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a descoberta de São Tomé de não ver nem ler................. para crer...


perdidos de 1980:


lendo
o que não entendo
não vendo.
Só vendo.

…a coisa é séria por etapas


  1. A coisa é séria -
    Diz o homem debruçado
    num buraco do cais.
    A água verde azeitona
    é também a cor dos seus olhos.
    Na sua face líquida de lágrimas
    nadam destroços de alma.

  2. Tocaram a campainha.

    (Ouvi a campainha
    Quem é? Quem é?
    Sou eu, talvez me tenha enganado doutor,
    mas não se esqueça de dizer
    à dona maria da luz
    o que acabo de lhe dizer.)



  3. Tinha enlouquecido.

    Antes quando se via
    Ao espelho da baía
    e as lágrimas se confundiam
    nas águas, pensava
    em estudar direito
    numa universidade europeia.


  4. Quando me sentava na escadaria

    Sentado na escadaria
    olhava-me espelhado
    no alcatrão luzidio
    e era como se houvesse mar e baía
    lá ao fundo da escadaria
    ao chegar ao lodo.


  5. Nada à superfície

    Nadam à superfície
    pelas ruas do cais
    os destroços do meu rosto
    e as minha sombras
    passam sonâmbulas
    pelas portas


  6. Sonâmbulas

    Sonâmbulas fazem vénias
    e desculpe desculpe doutor
    mas não se esqueça de dizer
    à dona maria da luz
    o que acabo de lhe dizer.


  7. Está bem?

    Está bem. Fique descansado
    que a mim nada custa dizer

    nada a ninguém.




…sede fiéis



Reconhecei oh dogmáticos sinceramente que a urgência
Com que manejais a ansiedade
Vos ilude mas vos prepara para a eternidade

Cercai-vos de muralhas altas
Ainda mais altas que o voo dos pardais
Para que não vos acordem mais

Cercai-vos de ilusões e escrevei-as em lindas frases
Como se fossem novas e decisivos mandamentos
Para que não preciseis de mais pensamentos

Adorai-vos, exaltai do vosso legítimo orgulho
Vós que vos descobristes aliás com barulho
Que a cabeça do povo é o vosso bandulho

Fortalecei a vossa crença, benzei-a
Pedi ao vosso CC cume altíssimo sabedoria
Que escreva em letras de fogo a liturgia

Expulsai o vosso seio, da vossa prenda
Tudo o que seja sinal de desavença
E até à última geração os sinais de descrença.

Sede fiéis.



… ilha desencantada



Aqui quando faz bom tempo podemos ir pescar
À linha
o céu está quieto e brilhante como o mar
pescamos o sol pela tardinha

Aqui às vezes deparamos com deus
Atrás de uma escrivaninha
Cumprimentamos: como vai? Como vão os seus?
E já ele se escondeu numa entrelinha.



Aqui há um sossego quente no ar
Um silêncio quebrado um assobio
Nas águas paradas e doces do mar
Nada de costas um navio


Vivemos numa ilha do vento
Uma vassoura enorme
Varre de norte a sul incansável
A areia levantada do seu túmulo


A areia morta passeia pelo ar
E fustiga quem se aventura
Pelos corredores da ilha
Entre as casas de pálpebras fechadas.



…Crepúsculo



                                    Nós, os velhos
Amamos das noites os crepúsculos
As alvoradas veem-nos de joelhos
Com dores de ferrugem nas dobras dos músculos

                                     Nós os antigos
Preferimos a angústia amarela
Do sol morto      e odiamos a janela
Preferimos o mundo reduzido dos postigos
                                    Nós
Preferimos a completa noite
O invisível caído como um açoite
Enquanto ficamos mais sós
                                    Nós



… círculos




Habituavam-se as aves à gaiola
E os peixes coloridos aos aquários

Habituavam-se os pedintes à esmola
E os operários aos salários.

Habitavam bairros inteiros
Figuras destacáveis de cartão
Que quitavam a solidão
Com gratuitos fogareiros
Desenhados a carvão.

Pela madrugada nevoenta dos escarros
rodavam pelas circulares do destino
Autocarros
Desatino ao desatino

Quando as sirenes fabris uivavam
Os autocarros tropeçavam
Às portas por onde entravam
Sem rosto pernas mortas
De operários de desgosto.

E tudo se repetia
Maquinalmente
Cada dia mais mais se esfria
A máquina da gente.



……de solidão




Há homens que o não são
Que são bolsas de pedras na mão
pontaria feita à humanidade

São uma manada de cães ladrando aos homens
que o são
Açulados por febres de classe alta
Atiçados pela inteligência que lhes falta
pelo medo cão.

Nas grandes capitais dos homens que o não são
Que deixaram de ser o que não é programado
Para a sua condição
Descem ao mundo povoado.

Para que os reconheçam trazem sorriso rebuçado
Desprezo programado
Olfacto apurado
E cueiro de alma desinfectado.

São pagos a ouro
E têm na algum tesouro
Que tudo merecem até um bom agoiro
Porque sem eles coitado do moiro
Coitado do preto coitada da preta
Que não saberia dar aos filho em chupeta
Em vez do leite da teta
Nem usaria inoxidável a grilheta.

Veem do benelux
Com os respectivos lux-sabonetes
Trazem suas bebidas e comidas de luxo

Em latas assépticas trazem salmonetes
E chicletes

Vêm de paris
E de Lisboa
Senhores do seu nariz
“numa boa”
Vêm
O pior é que vêm.


aniadversário de professor

  • Qual é a sua opinião sobre o regulamento?

    - Levanto-me para gritar, para cantar;
    à luz reflectida na baía levanto uma flor como emblema.
    Proponho antes outro tema:
    em vez do regulamento, a alegria.
  • Senhor Professor, não lhe pedi alternativa
    para esta discussão,
    só lhe pedi uma crítica construtiva
    para o regulamento da organização.


    - Que me desculpe o camarada,
    mas eu, de regulamentos sei nada.
    Mas ainda assim, proponho
    que do regimento com força de lei,
    faça parte o direito de gozar a vida
    e a arte das carícias do vento
    e que seja incentivado o deslizar
    do pensamento
    que ele se possa dispersar
    numa flor, no silêncio e na voz deste poema;
    que se possa e deva conversar
    para descanso, por alegria, e sem tema.

  • Senhor professor, está a desviar-nos do assunto da agenda.

    - Eu só quero conversar,
    “serrar presunto”
    que a minha conversa faz parte da lenda:
    Quando nasceu o primeiro homem e começou
    a falar por falar inventou nesse exercício fútil
    o lobisomem para ter uma sombra para ser
    par. A felicidade é o homem e o seu
    lobo, é a propriedade e o roubo, é a luta de
    línguas contrárias e uma unidade de ideias
    adversárias.
    O avô do homem era um lérias:
    Deus conversava sozinho, até sozinho
    inventava na ponta da língua o caminho das
    coisas mais sérias. Diz a lenda das escrituras
    que Deus andava à solta pelo céu e a
    terra era a sua aventura, uma ideia livre que lhe
    caiu do chapéu.
    E diz, outra vez a escritura,
    que foi o homem quem
    inventou a censura.
  • Senhor Professor, peço-lhe que tenha paciência
    e chamo-lhe a atenção:
    aqui somos homens de ciência
    e queremos regulamentar tudo e até a paixão.


    - Que seja reconhecido o direito ao erro,
    até desse erro em que cai a ciência de, em nome do homem,
    lhe cavar o enterro
    para, em seguida, lhe pedir paciência.
    Eu só quero conversar sobre a liberdade do ar.
    Eu só me quero resgatar
    do tempo de tanto tempo que perdi a organizar
    em nome da felicidade e da natureza
    que algumas coisas há
    que já só há em ficheiro:
    como o ar, como a volúpia, como a beleza…
    Eu só quero despejar da alma as palavras ao ar e ficar a vê-las voar.

  • Senhor Professor, mais uma vez lhe digo que não lhe permito…

    - Que do seu regulamento, meu amigo, eu faça
    um mito.
    Mas deixe-me desenvolver outra mitologia,
    falar como quem fala para o seu
    umbigo, sem me preocupar com signos, com
    semiologia; deixá-las só elas as palavras
    compreender o que digo. Falo por falar
    com as palavras que me não deixam calar.

  • Senhor Professor, estamos a perder tempo e isto não é um passatempo.

    - Eu sei que sou um contratempo; a minha
    paisagem é um quadro pintado de azul claro,
    de verde , de cores frias…

  • Senhor Professor, dou o nosso encontro por acabado que não estamos para aturar as suas manias.
    Eu farei o regulamento necessário que dele depende o meu salário.


    - Obrigado, obrigado por esta prenda de aniversário de ficar a saber...




… da noite



Dorme meu amor

Embrulha-te na escuridão,
Protectora da noite, nela imersa

Pelo meu lado, agarro-me a um clarão
e rasgo-me em vários para uma conversa.


Dorme meu amor

Crisálida de noite liberdade
Pela manhã ao sol brilhante borboleta de ar

Pelo meu lado esfaqueio a cidade
Rua a rua veia a veia para me sangrar..

(ás vezes conto as batalhas perdidas
As ganhas contam-se pelos dedos
Assinalá-los-ás por épocas por vidas
Por amores por sonhos por medos)

Mas dorme meu amor

Tranquila a esperança é amanhã
Hoje foi só uma dura passagem
pelo meu lado urdo uma via sacra em teia de lã
a quente, bordada na minha alma a vida via viagem

(ás vezes canto pelas esquinas
Uma desdita maior do que a minha
Pelo mesmo preço ainda canto duas sinas
A minha bem triste e a da pobrezinha)

Dorme meu amor
Nas dobras da noite da solidão
Da minha ausência

Pelo meu lado carrego os erros numa canção
Numa vibração da voz um cristal de demência.

Dorme meu amor dorme
Meu amor melhor meu sonho eu feminino
Não te arrepies quando regresso neste destino
De mim sobrou só este poema conforme.



S. Tomé, princípio de 1980

© Arsélio Martins, professor só... logo após.....

pelos olhos dos dedos

já não sei há quantos anos estava eu em Elvas e aceitei mais um que fui