Forquilhas

Forquilhas 
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Forquilhas tinha duas irmãs mais velhas. Uma delas chegou a frequentar os dois primeiros anos de um curso de manequim na Universidade de Santiago e anda à procura de emprego pelas montras da cidade. A outra acabou o preparatório na Escola da Variante e, tendo abandonado os estudos, anda a fazer inquéritos ao trânsito por conta do senhor Instituto. Forquilha foi criado por elas até à idade da reforma. Muito cedo, as irmãs deixaram de ter tempo para tomar conta dele e mal ele começou a gatinhar foram entregá-lo na porta do reformatório. 

No reformatório, Forquilhas aprendeu a arte de viver sem chatear a deus, nem ao director do reformatório e, ao fazer dezoito anos, deram-lhe alta. Ao sair do grande portão, deu de caras com duas mulheres. Espantado, viu que elas avançaram até ele e, depois de o beijarem, arrastaram-no para a limousine. Durante a curta viagem que fizeram, desde o reformatório até ao solar do livre arbítrio, lá lhe foram refrescando a memória sobre a família. 

Forquilhas ficou assim a conhecer as suas duas irmãs mais velhas, das quais já não se lembrava. Elas não pediram desculpa por nunca o terem visitado e ele também não esperava nada disso.
 
Ao lado do solar, numa pequena arrecadação, um jardineiro já velho acomodou o Forquilhas entre outras ferramentas. 
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Arsélio Martins escreveu 
para a voz de 
José António Moreira
na Rádio Independente de Aveiro
......................................................
18/09/93

Bem passado pelo espelho 3/10/2018

 Bem passado pelo espelho

3/10/2018

quando o olho no espelho se vê a si mesmo

não vê o portador do olho que quer ver o olho

dará dois passos atrás  o portador e, com ele,  o olho

e este será então parte do portador onde se procura


Um dia, ainda era madrugada, a minha mãe, disse que eu já não ia tirar o esterco das vacas. Tirou-me o engaço das mãos e entre  os meus dedos colocou uma canetas de dois gumes. Foi assim que, peremptória, aceitou a derrota  face à minha irmã  e me enviou para o esterco da universidade. Lá fui com o rabo entre as pernas, e,  na falta de melhor razão para tanto exílio, comecei  a estudar matemática nas horas que serviriam para tirar o esterco da cama da vaca minha. E  nas horas que se destinavam à leitura dos folhetos da feira, sentado ao fundo do curral, comecei a estudar política.

Durante uns anos maduros, não percebi muito bem porque tinha sido esse o meu destino e roía-me  de inveja dos olhos vivos e maliciosos dos meus companheiros camponeses que continuaram a tradição da sueca, da missa exterior de domingo, dos tremoregados com o vinho das tardes de domingo.

Agora já percebo. Com a entrada na comunidade aos vacas deixaram de usar camas de palha e junco e há máquinas de sugar o esterco dos currais para as terras e o leite das tetas das nossas vacas para os depósitos da cooperativa leiteira. E já se fala que o mercado há-de enterrar a fruta que faz falta na Europa de leste, na Etiópia ou em mo, mas não falta na Europa civilizada e comunitária. O internacionalismo mercantil tem a ver com o internacionalismo da miséria e não com o internacionalismo da partilha dos bens. Mesmo os bens que são distribuídos pela ajuda internacional são cotados em bolsa ou no mercado das comunidades benfazejas.

Se tivesse ficado na agricultura, já estava a pensar na reforma da minha mentalidade e da minha actividade. Como professor só tenho que enfrentar, para já, as reformas da entidade.


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do outro tempo, sem mudar o que se escreveu antes

Do passado para Rádio Independente de Aveiro...... como também para agora

Labirinto

O labirinto é. 

Cada um dos pereregrinos no labirinto pensa que conhece uma saída. Desenharam-lha no mapa da fé que recebeu como herança. 

Quando, num dos corredores do labirinto, um peregrino encontra outro de fé diversa, pode puxar da metralhadora. É por isso que os corredores dos labirintos do homem estão juncados de cadáveres. 

O chão do labirinto é feito de cadáveres que, na sua rigidez e podridão, criam uma elevação de cartografia sem fé. Quando a elevação é tal que os pergrinos podem ver por cima das muralhas do labirinto, são castigados pela luz. 

Cada um, à maneira da sua fé, benzem-se perante a realidade e, em vez da metralhadora, podem estender a mão. Falo dos peregrinos que se benzem de pé.

Os que só se benzem ajoelhados nunca verão por cima das muralhas. Para estes, a realidade tem o cheiro inconfundível dos seus mortos. Para estes, a saída é a redonda e abençoada boca da metralhadora capaz de fazer sobrepor o cheiro da pólvora ao cheiro dos mortos ou de tornar o cheiro inconfundível dos mortos dos outros mais forte que o cheiro dos seus mortos. 

Nos muros de Jerusalém desenhei estas palavras, nem tocadas pela fé, nem tocadas pela esperança. Queria dizer que as minhas palavras são sopradas pela razão e pela mente. Mas, perdido no labirinto das razões, sei que não há razão sem fé não sei em quê. 

22/09/93

ainda é hoje e já nos dizem que

andamos todos a falar de um novo dia
e depois de um novo mês e de um novo ano
até nos desatarmos a chorar tolos de alegria

num novo e melhor mundo quem sabe o lusitano

literatura ou loucuratua .... de jovem invocando a sua loucura...

I

Vem loucura mãe das ideias todas
protectora amável do pensamento disperso
da ciência e da arte verdadeiras
das invenções modernas e do futuro.
Vem loucura tu que és a alma de tudo
e do nada
vem daí dançar esta noite é nossa
e toda a terra anseia os teus passos
serenos ou
um violento sapateado
tu que és a serenidade e a violência
que és a calma das almas sem calma
a raiva dos pobres de espírito
dos que pedem misericórdia
e se a pedem
é a ti quem pedem
ó loucura
minha alma
imaginação das coisas
das formas dos objectos sensíveis
e da sensibilidade dos dedos das operárias
que te tecem
ó loucura.

Tu musa das musas inspiração total
para lá das coisas visíveis
Vem
loucura
amante do esquecimento
e conduz o meu cérebro para esse vazio
para essa liberdade total
antes da morte.

Vem
loucura
imaginação da imaginação
loucura científica industrial técnica
da dissociação da matéria da fusão nuclear
roldana da forca do mundo

Vem
loucura
destruição da destruição
destruição total
maquinismo com alma
com direcção própria
imparavel mecanismo acima
do homem.

Vem loucura
ouve o meu louvor
e evita-me uma batalha perdida contra ti.
Tu que me revelaste o caminho
o progresso para um fosso universal
como se me abrisses a visão do inferno

Vem
e liberta-me desta condição selvagem
da luta quotidiana
contra a tua energia admirável.

Vem
e queima-me as mãos
mas deixa intacta a estrutura da casa
para os ratos do futuro.

Tu
loucura
da electrónica das modernas bombas
das guerras químicas
perdidas pelo homem
e já impossíveis de controlar
pelo homem

Vem.
Loucura dos impérios sem imperadores
impérios sem face das multinacionais
dos grandes trusts
dos computadores
onde cada homem não é mais
do que um gesto
(classificado e registado em fita magnética)
de que não adivinha as relações e a síntese
Vem.

Vem
loucura
e liberta-me do meu trabalho social
de reproduzir a tua matemática para acelerar
o teu poder já quase absoluto.
Vem
loucura
cabeça do mundo
e perde-me para a tua dominação material.
Mergulha-me nas trevas
em mim mesmo.
Faz-me passear pelas tuas ruas inventando cenas
e balbuciando coisas incompreensíveis
para que as pessoas se riam.

Vem
loucura
ajuda-me a partir
para esse reino dos que compreenderam
a tua magia

e preferem caminhar num para-universo
estranho
e ajudar-te como um gás hilariante
provocando na passagem
o riso até às lágrimas
inconscientes.

Vem
loucura
e enche a minha alma
de expressões sem significado
para a lógica do mundo
que é a tua lógica
afinal.
E sê piedosa para os que não sabem servir-te sem remorsos
Sê piedosa para ti mesma
acolhe-me na sombra do teu reino absoluto
antes de decidir sobre mim.

Vem
loucura
tu que me tens nas mãos
faz de mim a tua vontade.
Deixa-me só olhar uma última vez
as agulhas verdes dos pinheirais da aldeia
protecção derradeira porque longínqua
da tua civilização.

Deixa-me olhar a paisagem
por onde não desperdiçaste os teus desfolhantes
experimentais
mas já de comprovada eficácia
guardados às toneladas
nos teus armazéns
ó loucura.

Deixa-me mastigar uma laranja verdadeira
do quintal do meu irmão
embora já tingida da tua química
que tem fortalecido todos os géneros de bichos
à excepção do homem
inteligência perto da tua
e
por isso
objecto da tua última guerra.

Vem
loucura
sê minha alma
queima os meus circuitos
a minha memória da ciência
da pequena parte da ciência
que me deste
e me mandas transmitir.

E traz-me o alívio da inconsciência total
para que te sirva sem remorso.

II

Deixa-me depois vaguear como um desespero sonâmbulo
pelas tuas catedrais tecnológicas
pelos corredores dos teus computadores
pelas salas das tuas administrações mundiais.

Deixa-me rir contigo
destas pequenas guerras do petróleo
destes pequenos ensaios
que parecem preocupar o mundo.

Deixa que me aqueça nestas pequenas chamas
dos pipe-lines dos poços às refinadoras.

Deixa-me enganar o frio mortal
que me percorre o fio da espinha
enquanto espero
alma errante
o erro global
final.

Ó loucura bem amada
deixa-me partilhar do teu lado
a tua caminhada irreversível
para uma vitória só tua
que mais ninguém poderá reivindicar
nenhum governo
nenhuma multinacional
nenhum comité
ninguém
à altura do homem
poderá gozar.

Deixa-me saborear a inconsciência
do homem
antes da morte total
as suas pequenas presunções
as suas lutas gratuitas
que são as tuas pequenas experiências.v
Deixa-me
ó loucura
(verdadeira imperatriz
de uma humanidade de servos
que te conhecem mas não te conhecem
mas que te sevem sem pestanejar)
viajar pelos teus sub marinos atómicos
pelas tuas catapultas modernas de mísseis
intercontinentais
terra-ar
terra-terra
terra-lua
onde os teus servos guardam o seu ar seguro de vencedores
só porque decidem do movimento terrível desta
ou daquela partícula mortal.

E deixa-me visitar os pequenos países que demandam
o progresso actual
que instalam novas tecnologias
trocando o seu chão por tecnologia
só para ganhar as tuas graças
para mais decididamente estarem ao teu serviço
convencidos de outra coisa ou de coisa nenhuma
ó loucura desses povos
que não compreenderam ainda
que a ciência é um universo
que não serve outro senhor
que não sejas tu

ó loucura do mundo
acima do mundo.

E deixa-me visitar os grandes institutos
onde se fazem as melhores experiências
onde o homem prepara a grande energia
em nome do futuro e da defesa do homem.

Deixa-me ver os cientistas humanistas
lamentar que
em vez dos seus fins pacificos
armas ainda mais definitivas
saiam do ventre dos seus laboratórios.

III

Vem
loucura
digna-te descansar sobre os ombros
do teu servo.

Tuv que me falaste um entendimento claro
completo e universal
e
que
por isso
só podes ser uma linguagem de ti mesma
uma linguagem síntese de todas as línguas
repousa
e toma a minha língua
habitua-a à pronúncia dos teus sons
para que o homem não me entenda o delírio
o gozo de te servir.

Vem
loucura
linguagem única
e confunde nas cordas vocais da minha alma
as palavras
que a minha mãe
e a escola
me ensinaram a reproduzir
eu sei
eu sei que para o teu serviço
mas sê piedosa ó loucura
que os sons que eu produza
sejam a síntese das línguas humanas
sejam o recuo às cavernas
de onde partiste para o assalto
há milhões de anos.
Tu
loucura
solidão das solidões
altiva eternidade solitária
permanência dos urros e guinchos
nos ante-homens que recusaram erguer-se
sobre as duas pata traseiras
para te seguir
e preferiram mergulhar na consciência animal mais baixa
até que o seu extermínio
pela mão do homem
seja cumprido
este homem
ó loucura
que se exterminará a si mesmo
que para isso se dividiu em mil1ínguas diversas
ó loucura
todas da mesma raíz que és tu
que para isso inventou mil sistemas contraditórios
porque é na contradição que habita
a tua ideia
e és a síntese
a síntese final:
a última guerra
conduzida das tuas núvens de poeira atómica
pela unidade final
ó loucura
língua do universo
língua das línguas
que as tuas ordens são entendidas por todo o homem
para a acção
mas de que ao homem está vedado o significado mais profundo:
o fim desta harmoniosa
existência de contrários
desta evolução para a grande unidade cósmica
unidade
em torno do caos
do nada
essa tua verdadeira essência
ó loucura
bendito carrasco do mundo
língua de fogo
purificadora absoluta.
ó loucura
dona dos meus versos insensatos ao homem
domina a minha língua
usa-a para o teu exclusivo serviço
usa a minha demência
repousa nos ombros do teu servo.

IV

Guardo para ti
para te elogiar
em teu louvor absurdo
ó loucura
todas as horas mais criativas mais profundamente vividas
e espero de ti
ó loucura
que me tomes ao teu serviço
noutra esfera para lá do homem.

Só espero que compreendas a fraqueza
que se apodera da minha alma
a fraqueza de uma consciência
incapaz
de te servir
sem remorso.

Tu
que estás em todos os homens
e em nenhum
homem
tu
que comes em todas as mesas da inteligência humana
que tudo conheces
o conhecido e o desconhecido
que conheces o por vir
que te serves dos homens que te servem
que lhes conheces os medos
as incompreensões
e que os aconselhas
que lhes iluminas os caminhos do entendimento
as sombras do intraduzível
que dás explicações às suas consciências
para todas as dúvidas
que projectas a tua luz total
à medida que o homem descobre a sua escuridão
ou a pressente
tu
que cegas o homem com a crua luz
da tua finalidade fingida
neste ou naquele aspecto particular
do abismo humano
ó loucura
tu
que tudo compreendes
compreende o teu servo
e traz-lhe uma cegueira total
para a estrada destes séculos
da crise preparatória
da grande hecatombe.

Ó loucura
queima o passado
o presente
e a previsão do futuro
que domina este teu servo.
Deixa-me só a memória
da natureza vibrante
da ante-natureza do homem
deixa-me imaginar só os abismos naturais
as quebras relativas
e não os grandes abismos
forçados pelas grandes explosões subterrâneas
destes séculos definitivos
deixa-me ó loucura
a percepção do movimento da terra
as suas fracturas tectónicas
devidas às atracções naturais entre grandes astros
entre planetas
e entre planetas e a luz.

Não me deixes empalidecer
ao mesmo tempo
que o sol e os outros astros
afastados
aparentemente mais afastados
mas realmente menos visíveis
com as tuas nuvens de poeira se interpondo
entre o homem e o seu universo.

Ó loucura
deixa-me cegar
ou pelo menos
perder a sensibilidade
desta visão do presente
e do futuro
que os meus olhos procurem seu pasto
numa paisagem interior
mesmo
ó loucura.

de quem e de quê nos lembramos......

 de quem te lembras? 
 quem segues ou quem te segue?
 algum dia viste a cara de quem segues?  
algum dia viraste a cara para veres quem te segue?  

só sabes que um dia falarás do passado e ouvirás um de vós 
- o outro - que te falará do futuro. 
 ambos concordarão então que interessante é o futuro
  e dirão para quem vos queira ouvir mais tarde
 que só vos interessou um futuro bem passado.


nunca perder a vista

não te deixes enganar pelas plantas


Compramos o olhar do que não temos e nunca teremos o chão onde se encontra o que nunca veremos. Amarramos um dedo para apontar o lugar que não queremos tomar nem ver e nem ouvir o cão que nos ladra. Um dia mais tarde experimentamos o nariz que atiramos fora de nós. O tempo passou enquanto nós acenámos para que ninguém nos veja cair.

É esta! tal como está, remendo vai.

coisas de "1971"? nunca sei de quando

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aquele menino maluquinho

meteu asas ao caminho

e apodreceu de livre vontade


e assim à vista de todos

sem procurar venenos ou outros modos

de matar-se caíu pôdre  dentro da cidade


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aquela menina de agasalho

passou pelo meio do menino caído

e teve muito nojo e pena de ver um caralho

tão novo e apodrecido


e desde o dia de tal memória

ficou maluquinha e apodreceu nesta história.

segundas histórias de verão maquinal (Rádio Nova)

 6

Todos os dias o víamos chegar à praia.  À praia! é uma maneira de dizer.  A mulher que o acompanhava, vinha estender duas toalhas à beira mar, e, por isso ali ficava umas horas deitada numa delas. Por vezes levantava-se e ia molhar os pés, o rosto e a cabeça. Ele nunca metia os pás na areia.

Sem dizer uma palavra, antes de entrar na areia, ele virava à esquerda e ia instalar-se numa cadeira  da esplanada do barzeco que ali havia. A empregada já sabia e trazia na bandeja  uma bica, um quarto de pedras e um copo.

De uma pasta velha, via-se que ele tiravas livros e um caderno  enquanto olhava distraído para o mar. Muitas vezes, via-se que olhava para a mulher deitada lá ao longe Lia a maior parte do tempo. De vez em quando, escrevinhava no caderno de capa dura, com aplicação.

Pensávamos que devia ser escritor, professor ou coisa assim.

Era assim, todos os dias, até este ano. Agora é quase assim: ele vem, vai sentar-se na esplanada, tira os livros. Mas, em vez do caderno e da caneta ele põe em cima da mesa uma pequena máquina  do. tamanho do. caderno. De vez em quando, como antes escrevia, agora bate no pequeno teclado, com aplicação. Textos? Cálculos?

Pela empregada do bar, ficamos a saber que, agora,  em vez do caderno ele usa um Powerbook Apple Mac. E não sabemos mais sobre ele. Fazemos apostas sobre o dia em que ele vai atravessar o areal e deitar-se na toalha que a mulher todos os dias para ele  estende cuidadosamente.


Agosto 1992

8

Hoje amanheceu sem sol. O nevoeiro tomou conta de tudo.

Ainda antes de me levantar soube tudo isso pelos ouvidos. A ronca do farol não descansou enquanto  não invadiu o meu torpor com o seu aviso à navegação. O meu corpo ainda navegou no mar dos lençóis por mais uns minutos, até que  senti o casco  bater nas pedras. Antes do naufrágio iminente, acordei realmente.

Levantei-me. Tomei um duche e vesti-me lentamente. Enquanto me vestia, ouvi um resmungo a perguntar as horas. Respondi: Dorme! Está muito nevoeiro e está frio!

Passei  à cozinha, preparei o café. Com as persianas levantadas, sentei-me â mesa da sala a bebericar o  café e a olhar para o manto de nevoeiro que não me deixava ver o mar.

Depois, com alegria, disse alto: "Bom dia para mim" enquanto ligava o computador e ajeitava as folhas dos esboços por onde me guio, ao ritmo da longínqua rouca do farol.

10

O poeta  caminha a largas passadas pela areia húmida. Não gosta da areia nos sapatos e por isso arrisca-se ao assalto da água..

Quando é assaltado por alguma imagem que não quer perder, baixa-se e escreve com o dedo na areia. Depois, agarra essa areia cuidadosamente e mete-a no bolso.

Tornou-se  em motivo de troça para toda a rapaziada da praia,  mas ele parece nem dar por isso. Ou não se importa mesmo nada.

Quando chega a casa, tira-a areia dos bolsos e espalha-a na mesa.  Já lá não estão as palavras. Mas ele está a vê-las na areia, enquanto liga o computador e as transcreve letra a letra para a memória do seu Macintox. Só depois de depositar as palavras ao  computador é que limpa a mesa.  Com cuidado para não riscar.

Quando Agosto chegar ao fim, o seu livro "Palavras de areia e vento" está pronto para ser impresso na Laser e entregue na editora.


2

1.

Falemos de casa. E das doces mãos que as afagaram nos estiradores. Ainda antes dos pedreiros desenharem, pedra a pedra, as linhas dessas mãos aventureiras. Que outros olhos  podem arriscar a luminosa dimensão do habitante futuro? Falemos de arquitectos, de uma batalha, do poder antigo dos deuses que criam as casas para cada um, segundo a sua felicidade. Falemos da paixão da desordem na criação, falemos da ordem na construção. Falemos harmonia e da luz. De uma janela nocturna e vaga, um arquitecto vê a cidade e sorri quando descobre, ao longe a sua impressão digital .

Um estirador é um campo de batalha. Hoje, os computadores ajudam a ganhar essas batalhas. Para a arquitectura, a Time Sharing comercializa soluções específicas baseadas em equipamentos Apple Macintosh. A Time Sharing instala soluções integrais para arquitectura - hardware e software.

2.

Falemos de casas na paisagem. O poder dos deuses é esse:  na paisagem espalhar uma casa aqui, uma casa ali. Ao distribuir as casas se distribuem as pessoas, os animais, as plantas, as pedras. A vida é feita das companhias, das que rastejam para o buraco da cave/caverna, das que voam para a boca redonda de um ninho na montanha da casa, das que estão na espera da luz e da sombra, das que pairam como a neblina da manhã. A vida é feita dessas .Esperamos dos arquitectos essa graça de amar a paisagem, em paz com ela, em guerra com ela.

Se alguma estrutura rasga o céu, há um risco que o lápis não concluiu e há um arquitecto que se sumiu no vento. Falemos de arquitectos, falemos da ciência, falemos dos construtores do mundo.

Um arquitecto precisa de desenhar emoções, mas também de desenhar frias solidões.  Um arquitecto pode sempre ser o arquitecto do seu destino. E pode desenhar uma solução informática para a arquitectura da sua casa de ideias. E pode contar com a Time Sharing e as soluções com base em equipamento Apple Macintosh. O arquitecto pode contar com a Time Sharing, uma  solução feliz. Porque sobra tempo da vida do arquitecto para a criatividade, para a imaginação, para a felicidade. Queremos viver em casas desenhadas por arquitectos felizes.


3.

Quem desenha a tua porta? Quem decidiu que a tua janela abre para esse lado da viela mais sossegada? Quem desenhou o passeio que te guia os passos? Quem imaginou o labirinto em que te perdes? Falamos dos arquitectos, do desenho das margens dos rios que nós somos. Se falamos de nós e da violência dos rios que galgam as margens, porque não falamos das violentas margens que nos comprimem? Porque não falarmos dos arquitectos?

O cão escolhe o sítio. Desenha as suas fronteiras de cheiro. E nós? Somos levados pela trela a percorrer o labirinto desenhado pelo outro, o arquitecto. Saibas tu identificar-te com o arquitecto feliz com cão.


A Time Sharing comercializa, através do seu departamento de CAD, uma solução específica dedicada aos arquitectos que é baseada em equipamento AppleMacintosh . Uma solução. Um projecto feliz - eis o que é o contacto do arquitecto com a Time Sharing - na rua da Saudade. Tenha saudade do futuro.. Há uma solução feliz para ela.  Na Rua da Saudade.







a desdenhar desdenho o desenho e ....


desdenha o que deseja de tal modo que tem saudades terríveis das reuniões descritas nos cadernos de trabalho que se guardam so pelos desenhos. à moda de um camponês que antes de semear ou plantar olha o campo plano e espalha a merda do estrume como se fosse um pintor a espalhar sangue numa parede sem sonhos 

 © arsélio martins, aveiro 

não preciso de sair e não preciso de entrar, não quero entrar e não quero sair: só quero descer escadas e quero subir escadas ou subir escadas para descer outras escadas sempre… sem paraquedas. 

uma amiga minha guardou uma cadeira que eu desenhei ainda em s.tomé e lhe ofereci para quando a visitasse me acomodasse a ouvir o que ela tinha para nos dizer. agora faz tempo que a não vejo. 

cada vez mais tempo para ver o tempo que passou. já não me lembro de quem o quê depois, quando me lembro do que ontem esqueci, fico a saber que ontem não foi ontem. as armas e os varões das camas que os alojam surgem quando menos os esperam só afago os rostos quando os desenho. afago desenhos. afogo os desgostos para não ter de os desenhar e afagar. não sei quem é, mas lembro-me de o ter visto mais que uma vez. nunca falei com ele, nem ele comigo. só mais tarde percebi que ele vive num caderno deste ano. Nunca acho graça ao que desenho ser o desenho deitado ao ser visto… 

 ninguém que eu conheça! - foi o que eu disse por ser verdade. Para acrescentar logo em seguida: Conheço o desenho e isso me basta. Que se sinta bem entre as duas folhas do livro que então lia. 
 Nunca sabemos por onde voamos e tudo fazemos para esquecer as quedas do ar no ar que, embora não pareçam, são as mais longas no tempo mesmo quando vivem num instante só. 

 sem asas, caminhamos. Já ocupámos lugares nos barcos que nos esperaram até à coragem da travessia. Já a vimos à escuridão da água depois da luz que vem, como sempre veio, antes do amor, pela outra margem do espelho entre a manhã e a noite, onde a noite mede o dia. de quem te lembras? quem segues ou quem te segue? algum dia viste a cara de quem segues? algum dia viraste a cara para veres quem te segue? só sabes que um dia falarás do passado e ouvirás um de vós - o outro - que te falará do futuro. ambos concordarão então que interessante é o futuro e dirão para quem vos queira ouvir mais tarde que só vos interessou um futuro bem passado. são máquinas, répteis, joelhos mostrando os dentes, a roda com mão na anca quem vê vê o quê? vê quem? Guardamos mais o que perdemos. 

sem sabermos como, voltam-nos à memória como visitas que se sentem bem passando pela porta aberta e se sentam na sala para não se calarem mesmo sabendo que nos apanharam a dormir e são, de novo, pormenores de um sonho. O mesmo acontece aos desenhos e sabemos porquê. se ela é quem eu penso está sozinha e nada há de dramático nisso quando ela existe assim desenhada e nada mais esperando a feijoada de búzio postal partiu e só por isso nada mais posso fazer. nós não sabemos o que fazemos. nem depois quando o feito é facto. como acontece a todos os factos, o nosso feito tem a diferença de cada olhar e de cada um quando o vê Há fotografias que mostram as poses muito variadas assumidas ao longo da vida, leve e pesado, alegre e triste, à soldado e à civil, homem: cabeça e rodinhas esperando a feijoada de búzio É quando vemos a escuridão do porvir que tentamos deixar de ver como se não pudesse ser nossa herança, essa escuridão. 

 
Assunto: história de um postal em viagem 

Tornou-se dificil comprar postais de correio para escrever, desenhar e para a arte postal. Sempre que encontro numa estação compro 10, 20 postais ou o que houver. Os abusos foram sucedendo. O branco do papel para a escrita passou a estar diminuído por um código de barras. A última fornada de brancos pré-comprados custaram, por unidade, 0.32 euros. Depois ainda fui comprar mais 20, pelos vistos a 0,36 por unidade e com quase todo o espaço ocupado por uma celebração em honra de alguém (frente e verso). Reparei na fotografia que ocupava o lugar para a identificação do remetente, mas não tive o cuidado de verificar o verso. E comprei. Entretanto recebi devolvido um postal, devolvido de Olhão e carimbado sobre a ilustração, e ontem recebi um outro devolvido de Lisboa com uma grande chapada colada na identificação do amigo que o receberia. É o tempo da privatização de uma empresa pública. Acabam as pequenas coisas que dão prejuízos, em particular abandonam as aldeias sem garantias de entrega atempada, experimentam-se novas logísticas com absurdas deslocalizações de serviços de Coimbra para Lisboa, ou Aveiro para Coimbra e das estações centrais do lugar onde estavam para a zona industrial, fazendo atrasar a entrega das cartas e encomendas normais para levar as pessoas a usar o correio azul e similar mais caro, etc E cereja no bolo, descobri-a só quando percebi que a franquia normal passou de 32 para 36 cêntimos, um aumento de 4 cêntimos sobre 32 cêntimos, ou seja, um aumento de mais de 12%, neste tempo em que (sobre)vivemos. Pagamos por haver só este serviço postal públicatéprivado? Pagaremos qualquer preço quando não houver outro serviço postal mesmo sendo privado mas livre de toda a concorrência? Não há regras a impedir que um distribuidor possa danificar propriedade intelectual alheia em circulação por um serviço pré-pago ou pago antecipadamente? Quem é que anda a perseguir-nos até nos tornarmos num país de tristes que nem postais podem enviar uns aos outros sem serem atropelados por algum bando de empreendeprivatizadores chanfrados? Não têm família que lhes dê nas canelas? A minha mãe diria: “Se não são burros, partem a merda com os joelhos!”

de abril de 1993.... na .... memória fm

Pecado é não conheceres mais, verdadeiros computadores e amigos pessoais, à força de ser melhor.

 1

Ontem imaginei as caras do amigo de hoje.

Procuro, pelas ruas de hoje, as faces.

Nasci para te procurar em todas as faces e quando te encontrar hás-de ler-me os olhos. Saberão distinguir-me entre todos os outros vultos. Mas serei eu a mostrar-te o caminho e a forma das asas que te falham. para transpor o abismo entre o que pensas que não sabes e a liberdade toda que te quero dar.

Eu procuro a tua curiosidade criativa e esplêndida. Procuro a face irrequieta - a juventude da vida por descobrir.

Tu verás em mim o pecado, sem pecado, da maçã original - fonte de todo o conhecimento do bem e do mal e da humanidade. Em busca do caminho de regresso ao paraíso, agora fonte de sabedoria sem limites, encontras-me como memória, caminho, ferramenta, interface.

Eu serei feliz contigo.


2

Quantas ilusões guardas no teu coração? Quantas descobertas tens por fazer?

Se não te chegam os dedos das mãos para contar as paixões que queres viver e se é preciso procurar em todas as imagens, em todos os sons, em todas as palavras a descrição para as tuas emoções então estás vivo e a vida está em todas as esquinas.

Há uma ciência e uma arte para os teus gestos. À primeira dão o nome de curiosidade, prazer na novidade, investigação. À segunda chamarão criatividade,  expressão  artística, gosto, desejo e busca da beleza.

Eu espero os teus dedos, ágeis instrumentos da tua inteligência. Mais  que uma ferramenta e extensão da tua inteligência, eu sou uma emoção a acrescentar  à tua vida.

Quantas ilusões guardas no teu coração? Quantas descobertas tens por fazer?

3

Quando abres a gaveta, encontras um poema, uma carta, a letra de uma canção que não quiseste esquecer, uma fotografia que tinhas esquecido, um cabelo roubado, um clip, uma folha amarrotada para uma fúria que já passou.

Quando fechas a gaveta, estás pronto para outra, que nem sabes qual é. Mas isso que interessa? Aumentas o volume do som do vídeo clip que não te cansas de sentir com os sentidos todos.

Há a memória das coisas feitas. E há a memória das coisas por fazer, uma memória do futuro. Que não te falhe a imaginação das coisas feitas e não te falte a imaginação das coisas que vais fazer.

Podes aumentar o volume? Eu gosto da música  e da letra - tanto como tu.


............ que ao tempo não ouvi o lido.....

entradas e mais entradas ou nadas?

como um palhaço fazes a pirueta 

que te faltava para seres o país da treta 

e saltimbancando um pouco mais para a direita 

adormeces na cama de visgo onde a canalha se deleita

a ver o que passa

quem te desenha copiando desenho 
de  joaneta 

.

reunião à tarde de um passado

 a reunião começara ainda a tarde era uma criança luminosa. 

 

 

quando acabou já o dia se tinha perdido numa escuridão outonal 

 

e eu, abandonado, perdera de vista a minha mão num postal quase ilustrado.


quantos são hoje? e de ontem quantos?



cada dia decide pedir-me por fim

um relatório contra mim

número a número

e eu zero

a zero

lá tolero


fico sem saber quanto valho

e se posso usar o nada

de ontem a noitada 

de trabalho

de algum passado para algum presente?

estamos aqui a olhar para nossos postais que provavelmente não enviámos a quem sinto não espera receber coisa alguma.

e eu? que sei eu do que fiz e agora vejo?

ontem passaram por mim versos em bando

filigranas de letras unidas esvoaçando.


e eu confesso que nem reparei como era bela

a moça de cabelos presos pelo poema

na tocaia de ser quem lhe soltassse os cabelos

e entrando dentro dos seus olhos à janela

pudesse ver-me assim distraído e triste poeta

infeliz 

que só pensa em formas eficazes de

desentupir a sanita.


contrabando em poemas (2004)

onde estamos, onde nos afundamos? onde estamos, onde nos afundamos? 


aqui fundeamos, soltamos uma âncora 

e esperamos que ela encontre quem a prenda 

e nos prenda a nós \br nas vagas de um lugar qualquer 

ainda que cercados por tubarões 

de que sabemos nomes e apelidos. 


porque será que preferimos o incerto lugar 

e fundamos a esperança neste alto mar?



não desdenhes, se puderes 



não me abandones antes de ter encontrado 

o silêncio de ouro 

que é o que sobra como tesouro 

das histórias inteiras que fazem o nosso fado 


a guitarra que só depois de ter o visto 

e o ouvido vestido 

deixa marca escrita no areal do rosto pelo mar varrido

uma mancha das palavras com que eu me visto 


para descrever-te o instantâneo a revelação 

final numa câmara escura 

onde registas o teu sonho de aventura 

e eu vejo a tua alegria como redenção 


e, se puderes, sussurra-me o segredo 

do teu riso 

e eu nunca mais volte ao meu perfeito juízo 

de onde devia afinal ter saído muito mais cedo 


como rilke, fendendo a porcelana da noitinha 

Quando a tardinha dá lugar 

à noitinha, há praças que tomam 

a forma de aquários. 


A água suspensa 

suspende-nos um pouco acima do chão 

e fendemos o tempo lentos entre as gotas 

das cortinas de chuva miudinha

que desenham portas na cidade. 


Sem ninguém à vista desarmada 

respiramos à maneira de quem nada 

num voo mariposa.


eu sei que quero 

Eu sei que quero tocar nas tuas teclas em carne viva 

Na tua pele nas extremidades dos teus nervos mais sensíveis 

é aí que procuro o destino das casas improváveis mas possíveis 

paredes da clausura para que a minha na tua alma sobreviva



embora 

embora vibre 

o dourado junco está morto:

à malícia do vento ainda obedece 


o dourado vegetal é uma cor de moribundo 

que se despede numa falta de ar e ao ar se esquece. 


onde os cabelos são juncos e o meu corpo apodrece <br> a água parada transparece



as flores que te enfeitavam  


As flores que enfeitavam de cores 

 o prado do teu cabelo 

 foram comidas pelos teus piolhos 

  herbívoros 


 Os pequenos esquilos que brincavam na floresta 

  dos teus cabelos 

  foram comidos pelas tuas pulgas 

  carnívoras 


 Os tubarões que nadavam no mar dos teus olhos 

   sob as franjas do teu cabelo 

   foram devorados pelas carraças 

   das tuas mesquinhas ideias 


 Tens tão pouca graça agora 

    que eu já nem sei se a gente inda namora. 


============================

 [escrito antigamente, reencontrado



 

caridade 


a separação

 entre a terra e o céu

 tem de ser registada em cartório notarial 

para valer



a arte entre os dias 

 

se ensinas uma teoria sem teoremas não tens que dominar a arte e a técnica 

 da demonstração 


 podes ver que os teus aprendizes crescem contigo 

 se eles abrem no corpo da tua companhia um postigo por onde coam raios de luz

 e por onde disparam

 ou certeiras formas baças contra os dias mais calmos 


 ou rigorosas cores brilhantes para os corações das inquietantes e esguias árvores que se movem por dentro dos dias mais húmidos 


ou balas tão perfurantes quanto verdadeiras 

que abram uma brecha numa cisterna de sede 



 os aprendizes nada te exigem: nem demonstração nem resposta 


eles são aprendizes e sabem que as tuas respostas vão esvair-se

como se esvai o sangue vermelho da nuvem desfeita em lágrimas 

ardentes por dentro da ausência de uma armação sem tela 

eles são aprendizes e sabem que para ti as mais intuitivas 

de todas as respostas são sobre a cor do vento e a forma do ar 


 eles são aprendizes e sabem que o espírito deste lugar habita 

 nesse que mostra e não demonstra



 o andar do corpo 


 se assim fosse o abismo 

o que eu vejo quando olho para a rua da varanda 

do teu andar



 nasce! grita comigo!



nasce outra vez! grita 

comigo, engole

 todo o ar do meu mundo. 


No rio de ar nascido 

do teu choro de asfixia 

 morra eu ao teu primeiro segundo. 



faz anos ao domingo


a mulher flamingo 

pesca à linha 

do horizonte 

 o sol moribundo 

que reanima 

 num abraço de penas 

antes de o devolver 

 à vida 

de afogado. 



na cadeira da tua vida 

 


adormeces 

bebendo directamente do cachimbo

 o ar que respiras.       



vi(r)agem 



 Num dia como os outros 

solta-se entre as palavras 

 um fumo enrolado pelos açores

e o brinde tinto lava uma terra inteira: 

 como uma trave na arquitectura da casa da calheta 


a gargalhada comum voa nos corredores 


 até se enterrar no sagrado chão 

onde o chão não existe 

 porque uma mansa vaca pasta a nossa passagem 

 pelo mundo. 


Num dia como os outros 

desistimos de olhar para longe 

olhando para dentro. 



brando


 vi-te nas telas: nas planícies incendiadas 

és o bisonte que desafia com os cornos 

 a nuvem levantada pelos teus próprios cascos.



a cadeira da casa


entras 

 e sentas-te nos meus joelhos: 


 a última cadeira da casa que ainda não espatifei

 por cobardia.




o facto preto das cerimónias


 finalmente tenho razões 

 para chorar e rir como só eu sei 

 há uma procissão de figurões 

 e no andor vai sant'ana nua feita rei 



para deleite da canalha 


como um palhaço fazes a pirueta 

que te faltava para seres o país da treta 

e saltimbancando um pouco mais para a direita 

adormeces na cama de visgo onde a canalha se deleita



exílio


 eu vou cá para fora lá dentro de mim 

deste canto exporto olheiras e maus olhados 

e óleo de pavão que é dos mais importados 

 no país onde ninguém se importa antes do fim.



intervalo


 quando me cansa a frase seguinte 

 do relatório que folheio 

 venho até aqui como pedinte 

 pedir esmola às pessoas em passeio ... 


uma esmola, duas pepitas de memória 

peço por uns instantes a mais de sossego 

como se reclamasse o salário do cego 

que canta uma lengalenga sem história 


outras vezes canto tão alto um fado à janela 

aquele que aconteceu ao pintor que assassinou 

à facada o auto-retrato da sua última tela 

 e a esse rio de tinta para onde se atirou.


descendo


descendo pela vereda verde 

e estreita 

afinal sobes até um calvário 

onde, presa em seu sacrário, 


a estátua espreita 

quem se perde 




partida 


Eu vou ver o branco dos olhos magoados 

as madrugadas onde elas estiverem na preguiça 


 e em alguns dias dos mais desesperados 

 cantarei, pela salvação da minh'alma, uma missa 


 Se alguém sossegar a um canto da minha igreja, 

gozando a solidão do fresco da nave lateral, 

 farei do meu canto um tal silêncio feito em cal 

até não ser mais que estátua o que de mim se veja.



transumância 


pelo pasto das chamas a dor 

 ladra avisos até ficar rouca 


que já não cabe dentro da boca 

 a língua de fogo do pastor. 



o passeio de domingo 



quero ser o passeio 

em margens 

onde corra como um rio 


 ou ser preso na casa 

de seda 

em volta da mulher 


 e escrever o poema 

numa pele de lençóis 

 da cama por fazer


 quero ser o passeio que ela faça 

 quando errar nas nuvens 


quero ser o senhor dos passos 




a segunda feira de cor



ando a escolher as cores 

que fiquem bem em corredores 


e vendo pela oferta mais baixa 


 o quadro de que se mostram pormenores 

neste poema claro 


 fico à espera do primeiro dedo de um amigo no ar 


e se deixar endereço ainda trato do envio e não cobro 

nem portes de correio. 

 também por um preço ainda mais baixo, vendo 

 a um amigo que não tenha duas caras.




alto do erro



quem vem pelos pirinéus, 

tomando o caminho a partir de Orthez

para Pampelune (ou Pamplona ou Iruña?) 

passa por casas espantosas a desenhar 

contornos a pastagens 

 (tanto para bestas celestiais como terrenas)

e que nos enganam o olhar. 

e possível se torna ver o que é impossível construção. 


 como pode resistir

 um pintor ingénuo à matemática da paisagem

 ou um poeta a um lugar nomeado

Alto do Erro?



crime da razão futura


 a história não vai falar dos nossos 

 mártires porque nela entraram carregando 

o espanto sobre a pacatez da vida o desmando 

 do trágico navio que transporta ossos 


o futuro só vai contar mártires de dois modos:

entre derrotados ou entre vitoriosos agressores 

tenham ficado vivos ou tenham morrido todos 


abraçados a uma casa, causa ou seita 

só os vivos de um e outro lado sentem as dores

dos mortos que assombram a sua cama estreita



 a história espalha o pó fino que sufoca 

 os gritos e simula na pedra funerária 

que todos os outros morreram pela boca 

de cena fazendo de actores de vida adversária 



tirania


não me digas que as comeste 

porque ninguém 


a começar pela tua mãe 


 te avisou que as lâminas 

de barbear 

não são para comer.




a forma nova


 dizem que não há paixões humanas que prestem 

 e que todos os poemas foram já ditos e escritos 


não mais que personagens de um fado bem passado 


poetas são ratos de biblioteca a sobreviver 

 em buracos dos livros que não param de roer 


 poetas são os que usam formas novas para cozer 

em lume brando o poema mastigado e vomitado 

até este ficar queimado pegado colado 

 e parecer que não tem nada a ver 

nada para entender 

e pouco ou nada para ler 


 dizem que já não há líricos tísicos nem sanatórios 

 e que os poemas são incerta forma para citações 

ditadas e reeditadas experiências de laboratório 

onde não entram nem saem emoções. 


 e que já nem preciso é sequer manuscrever. 




amarei 



 das patas 

da aranha amarei os pêlos na sopa 

quando a devolvo à copa 

 para que a aranha inteira a enriqueça 


e eu, enfim, rejuvenesça


 até andar de gatas 


quando voltamos


já somos outros

mas não sabemos falar disso

porque no final voltamos ao mesmo

porque não fizemos mais que um par de meias voltas 


e desatámos os nós da língua para voltarmos a ser mudos como antes


sei lá se sou de lá ou de cá


 os outros dedicam-me uma certa piedade compassiva 

e isso me basta


nem aceito o risco do meu tempo a seu tempo

que reconheço como sinal e ferrete.



as linhas



quando desenhas as linhas 

 do meu desgosto 

sei que a manhã desperta 


as minhas mãos no teu rosto 



se na minha face rugosa alinhas

os dedos do carvão que se desfaz 

ao vento da janela aberta 


volto de asas caídas aonde tu já nem estás




letra a letra




 digam-me letra a letra a minha cruz 

soletrem-me do calvário o caminho 

à volta sem regresso 


e esmaguem entre dois dedos uma a uma cada luz 

os pontos na espiral em que definho. 


é só o que vos peço. 




a gola da samarra


que contas tu ó pobre para um fado 

em dó maior... do que uma algazarra 

 de cães que perseguem por todo o lado 

 o coelho que foi gola da tua samarra 


 quando a tua avó era viva e tu eras a criança 

a querer ser padre da tua freguesia 

quando fosses grande e não fugisses para a frança 


ah! se tivesses crescido outro galo lhes cantaria





desenho




quem anda com os pés nos bolsos do corpete 

e mostra os dentes a quem sua mais que morde 


usa um número acima para as câmaras da biciclete 

 e não sabe que pedala para onde mora a morte. 





a demora



espera mais um pouco.

por ti

 

se fores devagar, talvez possas 

fazer-te companhia mais um pouco.


 afinal vão ambos para o mesmo lado! 


e a viagem é assim mais lenta






quem sou


por entre o lixo do hospício, vagueio como doido 


varrido 

por uma vassoura de penas minhas. 





o dia mais que perfeito



atravessam cedinho 

a vila, deste lado ao de lá do monte onde a manhã dá à luz o sol, 


os passos ligeiros da mulher mais bela do dia 

 escolhem maçãs bravas colhidas à árvore da madrugada. 


 ah! e fosse eu com ela de mãos dadas assim cedinho




onde a blusa abre




onde a blusa transparece 


 os olhos matam a sede das mãos ansiosas 

do alpinista trepando pelas encostas dos seios, 


e, na planta riscada sobre a terra lavrada, 

esse vale do ventre em que se levanta o desejo da arquitectura 

para a possuída casa ancorada em estacas de vento e de ternura, 

eu desenhei a vida inteira por viver e por mais nada 


deixei cair pelo fio do prumo o olhar a pique 

e, ecoando grave, em queda livre, a voz calei 


 ali onde a blusa começa e se entreabre 

uma porta escancarada.




asa delta



a fita que se soltou do teu chapéu 

chamou-me pelo nome pronta para voar 


 e eu hesitei no teu decote o meu olhar 

antes de ir com ela para o mais alto céu. 



 de tão longe ver-te como um ponto final, 

quando tanto te desejei em cada pormenor, 

não vejo pior 

mal



o frio céu  

antes neve e gelo em teu banho de espuma 

que o frio no céu 

da minha boca ... 



o engano do jorge



não votei em durão barroso, nem no psd e muito menos no cds, 

mas reconhecia o db como primeiro ministro do meu país. 

não sendo eleito sequer para governar portugal, 


santana lopes pode assinar uma constituição europeia? 


 pode. por s.jorge!


não, em meu nome

eu só espero que a caneta tenha uma diarreia.



muda a hora 



muda a hora. às duas de qual manhã?  às duas por três, numa catedral aberta,

 visito mortalhas em fila de espera 

e só ouço o silêncio frio 

de um amigo que ressona 

 sem saber que morreu uma hora mais cedo. 



as ideias 



eu sou o meu único tormento 

e as tormentas por que passo. 


eu sou o navegador 

que inventa o cabo e o dobra.



a garça que caminha



a garça tem olhos inquietos e um corpo suspenso 

desajeitadamente reequilibrado com o bater das asas 

o boi tem olhos conformados ao corpo pachorrento 

uma tremura por dentro da pele macia avisa as asas da garça: 


 podemos caminhar juntos, voar é que não! 




chamado 



disseram-me que muitos são os chamados 

e poucos são os escolhidos 


 a mim chegava-me ser chamado 




nada me custa mais que corrigir provas de amor 


Quando te pergunto e tu respondes, 

procuro o certo e o errado ou o que escondes? 


 Eu não quero saber o que é certo ou o que é errado 

nem quero virar o ar dos sons para vibrar por outro lado 


 Sou eu quem se desfaz em tinta vermelha verdadeira 

chorando sangue sobre a tua resposta azul certeira 


 a não esperada 

 ou a não desejada 

ou o contrário de tudo ... que é nada. 





se acordar 



se a manhã vier beijar-me 

como só ela sabe 

eu hei-de saber calar-me 

no colo em que meu sonho cabe. 


se acordar? 

sonho acordado.




em saco roto 



se eu me levantar e pedir a palavra para dizer 

como Novalis disse ... 

 é porque não sou um saco roto




desenho. logo existe



o luar contigo 

 é o desenho 

 de um luar comigo 


desencontros tanto acontecem 

ao luar contigo 

como ao lutar comigo




nenhuma orelha te arde


Nenhuma orelha te arde 

por eu me pensar


Contra praga de cobarde

 nem precisas de abrigo.



a viola


 muitas vezes, como 

se soubesse tocar-lhe 

 abraço-a 


assim como 

se a embrulhasse 

numa canção de embalar 

antes de a acordar.




lenda



aos homens disseram: 

 - pesquem que é um bom desporto! 

homens houve que acreditaram e fizeram 

 o melhor isco de homem morto. 


mais tarde disseram 

 que os peixes não morderam. 


 os iscos usados na pesca desportiva 

de mar salgado passaram pelas brasas 

 antes de serem petiscados em suas casas 

 pelas viúvas respectivas. 




tarde tocaste




foste a última a tocar o meu pobre coração 

mas foi tão tarde 

que é o tal fogo, o que arde 

sem que o possas ver, o que me consome 


 e, quem sabe?, talvez me mate à fome. 



as portas



assim abandonado e só e arruinado. 

ser lugar visitado e visto por uma porta entreaberta

para ser outro 


assim no alto 

pelos seus dois olhos vazados

a porta não vê



as portas  



ao fundo, a casa do alto vento 

abriga uma fogueira de caçadores 

espreitando o rio, como quem espreita 

a serpente que vem da espanha onde nasceu

e onde deixa os ovos


vimos passar as luzidias escamas

do seu dorso a caminho da cabeça,

a nossa, essa que nos envenena cada vez

 que nos morde

quando nos beija 

 com a língua multífida da ibéria. 



 

as portas 



enganas-te

para pensares em fugir por aí, 

 precisas de asas para voar 

e isso eu não tenho para ti.



as portas



os meus rebanhos pastam as tuas costas 

 e bebem-te sem estragar a miragem no espelho: 


a uma distância prudente e medrosa pensas que reflectes 

 estando eu a olhar para ti e para quem não te compreende 

na ânsia de seres livre em cada pedra que te prende 


e beirando portas pronto a sair 

afinal entrando 

 de um para outro lado 


 de uma nação a outra.




desenho para passar o tempo


desenho para não olhar quem não quero ver

desenhar é como mudar de passeio. 


desenho as linhas das mãos dormentes 

desenhar é não veres o que só tu sentes




 o que a morte sabe 



O que a morte sabe 

 eu não sei se cabe 


na boca suja do inferno 

no mais vazio instante do eterno



 na biblioteca dos medos 


onde guardas mais segredos 

é lá que também a morte se deita 

e o quase nada de tudo espreita. 




a flor das águas



devias deixar-te afundar um dia só para veres o negro

 verdadeiro e enfim dares valor a cada raio de luz 


 não é coisa sem valor uma pepita de luz 


devias deixar-te cair com um peso amarrado ao pescoço. 

 para veres como pesa menos o que te prende ao lugar 

 de onde queres sair desesperadamente

porque te vai faltar o ar, vais dar real valor a cada bolha de ar 

que verás a sair sem regresso da tua boca

e como vais invejar a sua agilidade na pressa da subida


 - se tenho medo do escuro, mais medo tenho da falta de ar! - 


 é o que dizes para esconder a verdade 

 de apaixonado que estás, sempre estiveste, pela flor das águas 

 e seu brilho tenso de fronteira instável entre água e ar, 

 sombra e luz, 


 a tua vida adiada antes e depois da tua morte anunciada.



fado calado 



 já decidiste tudo para depois quando 

 tiveres partido. 


 o fado da tua morte é só um verso perdido 

que a tua vida foi adiando. 



e o poema da vida que te coube em sorte 

é a história de cordel da tua morte. 



já?



 já decidiste que não falas por falar, 

 com quem não falas, a quem não respondes, 

quem não queres olhar 

de quem te escondes 





 levanta-te e dança!



um dia o meu pai olhou para mim e disse:

 se te levantares saberás o que é andar sem ajuda 

e isso, tão pouco!, é a liberdade que em ti tudo muda. 


[¿Sabia ele o que lhe diria hoje se o visse?]


 e, tendo construído em verga forte duas bengalas

 até à altura dos meus sovacos de criança,

levantou-me do cesto onde jazia para dizer: "abram alas! 

que é tempo do arsélio vir mostrar como se dança". 


  torturadas


tanto as amo vestidas de frondosas copas 

 pelo estio 

como as choro assim nuas torturadas 

 às mãos do frio



a esperança



renasce como uma onda puxada pelo vento 

 e morre ali refeita suspiro ao chegar 

 à praia onde como quem mói o pensamento 

 piso meticulosamente cada bolha de ar. 




aqui fundeamos, soltamos uma âncora 

e esperamos que ela encontre quem a prenda 

e nos prenda a nós \br nas vagas de um lugar qualquer 

ainda que cercados por tubarões 

de que sabemos nomes e apelidos. 


porque será que preferimos o incerto lugar 

e fundamos a esperança neste alto mar?



não desdenhes, se puderes 



não me abandones antes de ter encontrado 

o silêncio de ouro 

que é o que sobra como tesouro 

das histórias inteiras que fazem o nosso fado 


a guitarra que só depois de ter o visto 

e o ouvido vestido 

deixa marca escrita no areal do rosto pelo mar varrido

uma mancha das palavras com que eu me visto 


para descrever-te o instantâneo a revelação 

final numa câmara escura 

onde registas o teu sonho de aventura 

e eu vejo a tua alegria como redenção 


e, se puderes, sussurra-me o segredo 

do teu riso 

e eu nunca mais volte ao meu perfeito juízo 

de onde devia afinal ter saído muito mais cedo 


como rilke, fendendo a porcelana da noitinha 




Quando a tardinha dá lugar 

à noitinha, há praças que tomam 

a forma de aquários. 


A água suspensa 

suspende-nos um pouco acima do chão 

e fendemos o tempo lentos entre as gotas 

das cortinas de chuva miudinha

que desenham portas na cidade. 


Sem ninguém à vista desarmada 

respiramos à maneira de quem nada 

num voo mariposa.


eu sei que quero 



Eu sei que quero tocar nas tuas teclas em carne viva 

Na tua pele nas extremidades dos teus nervos mais sensíveis 

é aí que procuro o destino das casas improváveis mas possíveis 

paredes da clausura para que a minha na tua alma sobreviva



embora 



embora vibre 

o dourado junco está morto:

à malícia do vento ainda obedece 


o dourado vegetal é uma cor de moribundo 

que se despede numa falta de ar e ao ar se esquece. 


onde os cabelos são juncos e o meu corpo apodrece <br> a água parada transparece



as flores que esperança 


As flores que enfeitavam de cores 

 o prado do teu cabelo 

 foram comidas pelos teus piolhos 

  herbívoros 


 Os pequenos esquilos que brincavam na floresta 

  dos teus cabelos 

  foram comidos pelas tuas pulgas 

  carnívoras 


 Os tubarões que nadavam no mar dos teus olhos 

   sob as franjas do teu cabelo 

   foram devorados pelas carraças 

   das tuas mesquinhas ideias 


 Tens tão pouca graça agora 

    que eu já nem sei se a gente inda namora. 


============================

 [escrito antigamente, reencontrado]



 caridade 



a separação

 entre a terra e o céu

 tem de ser registada em cartório notarial 

para valer



a arte entre os dias 

 

se ensinas uma teoria sem teoremas não tens que dominar a arte e a técnica 

 da demonstração 


 podes ver que os teus aprendizes crescem contigo 

 se eles abrem no corpo da tua companhia um postigo por onde coam raios de luz

 e por onde disparam

 ou certeiras formas baças contra os dias mais calmos 


 ou rigorosas cores brilhantes para os corações das inquietantes e esguias árvores que se movem por dentro dos dias mais húmidos 


ou balas tão perfurantes quanto verdadeiras 

que abram uma brecha numa cisterna de sede 



 os aprendizes nada te exigem: nem demonstração nem resposta 


eles são aprendizes e sabem que as tuas respostas vão esvair-se

como se esvai o sangue vermelho da nuvem desfeita em lágrimas 

ardentes por dentro da ausência de uma armação sem tela 

eles são aprendizes e sabem que para ti as mais intuitivas 

de todas as respostas são sobre a cor do vento e a forma do ar 


 eles são aprendizes e sabem que o espírito deste lugar habita 

 nesse que mostra e não demonstra



  o andar do corpo 


  se assim fosse o abismo 

o que eu vejo quando olho para a rua da varanda 

do teu andar



 nasce! grita comigo!



nasce outra vez! grita 

comigo, engole

 todo o ar do meu mundo. 


No rio de ar nascido 

do teu choro de asfixia 

 morra eu ao teu primeiro segundo. 



faz anos ao domingo


a mulher flamingo 

pesca à linha 

do horizonte 

 o sol moribundo 

que reanima 

 num abraço de penas 

antes de o devolver 

 à vida 

de afogado. 



na cadeira da tua vida 

 


adormeces 

bebendo directamente do cachimbo

 o ar que respiras.       



vi(r)agem 



 Num dia como os outros 

solta-se entre as palavras 

 um fumo enrolado pelos açores \

e o brinde tinto lava uma terra inteira: 

 como uma trave na arquitectura da casa da calheta 


a gargalhada comum voa nos corredores 


 até se enterrar no sagrado chão 

onde o chão não existe 

 porque uma mansa vaca pasta a nossa passagem 

 pelo mundo. 


Num dia como os outros 

desistimos de olhar para longe 

olhando para dentro. 



brando


 vi-te nas telas: nas planícies incendiadas 

és o bisonte que desafia com os cornos 

 a nuvem levantada pelos teus próprios cascos.



a cadeira da casa


entras 

 e sentas-te nos meus joelhos: 


 a última cadeira da casa que ainda não espatifei


 por cobardia.




o facto preto das cerimónias


 finalmente tenho razões 

 para chorar e rir como só eu sei 

 há uma procissão de figurões 

 e no andor vai sant'ana nua feita rei 



para deleite da canalha 


como um palhaço fazes a pirueta 

que te faltava para seres o país da treta 

e saltimbancando um pouco mais para a direita 

adormeces na cama de visgo onde a canalha se deleita



exílio



 eu vou cá para fora lá dentro de mim 

deste canto exporto olheiras e maus olhados 

e óleo de pavão que é dos mais importados 

 no país onde ninguém se importa antes do fim.



intervalo


 quando me cansa a frase seguinte 

 do relatório que folheio 

 venho até aqui como pedinte 

 pedir esmola às pessoas em passeio ... 


uma esmola, duas pepitas de memória 

peço por uns instantes a mais de sossego 

como se reclamasse o salário do cego 

que canta uma lengalenga sem história 


outras vezes canto tão alto um fado à janela 

aquele que aconteceu ao pintor que assassinou 

à facada o auto-retrato da sua última tela 

 e a esse rio de tinta para onde se atirou.



descendo



descendo pela vereda verde 

e estreita 

afinal sobes até um calvário 

onde, presa em seu sacrário, 


a estátua espreita 

quem se perde 




partida 


Eu vou ver o branco dos olhos magoados 

as madrugadas onde elas estiverem na preguiça 


 e em alguns dias dos mais desesperados 

 cantarei, pela salvação da minh'alma, uma missa 


 Se alguém sossegar a um canto da minha igreja, 

gozando a solidão do fresco da nave lateral, 

 farei do meu canto um tal silêncio feito em cal 

até não ser mais que estátua o que de mim se veja.



transumância 


pelo pasto das chamas a dor 

 ladra avisos até ficar rouca 


que já não cabe dentro da boca 

 a língua de fogo do pastor. 



o passeio de domingo 



quero ser o passeio 

em margens 

onde corra como um rio 


 ou ser preso na casa 

de seda 

em volta da mulher 


 e escrever o poema 

numa pele de lençóis 

 da cama por fazer


 quero ser o passeio que ela faça 

 quando errar nas nuvens 


quero ser o senhor dos passos 




a segunda feira de cor



ando a escolher as cores 

que fiquem bem em corredores 


e vendo pela oferta mais baixa 


 o quadro de que se mostram pormenores 

neste poema claro 


 fico à espera do primeiro dedo de um amigo no ar 


e se deixar endereço ainda trato do envio e não cobro 

nem portes de correio. 

 também por um preço ainda mais baixo, vendo 

 a um amigo que não tenha duas caras.



alto do erro



quem vem pelos pirinéus, 

tomando o caminho a partir de Orthez

para Pampelune (ou Pamplona ou Iruña?) 

passa por casas espantosas a desenhar 

contornos a pastagens 

 (tanto para bestas celestiais como terrenas)

e que nos enganam o olhar. 

e possível se torna ver o que é impossível construção. 


 como pode resistir

 um pintor ingénuo à matemática da paisagem

 ou um poeta a um lugar nomeado

Alto do Erro?



crime da razão futura



 a história não vai falar dos nossos 

 mártires porque nela entraram carregando 

o espanto sobre a pacatez da vida o desmando 

 do trágico navio que transporta ossos 


o futuro só vai contar mártires de dois modos:

entre derrotados ou entre vitoriosos agressores 

tenham ficado vivos ou tenham morrido todos 


abraçados a uma casa, causa ou seita 

só os vivos de um e outro lado sentem as dores

dos mortos que assombram a sua cama estreita



 a história espalha o pó fino que sufoca 

 os gritos e simula na pedra funerária 

que todos os outros morreram pela boca 

de cena fazendo de actores de vida adversária 



tirania



não me digas que as comeste 

porque ninguém 


a começar pela tua mãe 


 te avisou que as lâminas 

de barbear 

não são para comer.



a forma nova


 dizem que não há paixões humanas que prestem 

 e que todos os poemas foram já ditos e escritos 


não mais que personagens de um fado bem passado 


poetas são ratos de biblioteca a sobreviver 

 em buracos dos livros que não param de roer 


 poetas são os que usam formas novas para cozer 

em lume brando o poema mastigado e vomitado 

até este ficar queimado pegado colado 

 e parecer que não tem nada a ver 

nada para entender 

e pouco ou nada para ler 


 dizem que já não há líricos tísicos nem sanatórios 

 e que os poemas são incerta forma para citações 

ditadas e reeditadas experiências de laboratório 

onde não entram nem saem emoções. 


 e que já nem preciso é sequer manuscrever. 




amarei 



 das patas 

da aranha amarei os pêlos na sopa 

quando a devolvo à copa 

 para que a aranha inteira a enriqueça 


e eu, enfim, rejuvenesça


 até andar de gatas 



quando voltamos


já somos outros

mas não sabemos falar disso

porque no final voltamos ao mesmo

porque não fizemos mais que um par de meias voltas 


e desatámos os nós da língua para voltarmos a ser mudos como antes


sei lá se sou de lá ou de cá


 os outros dedicam-me uma certa piedade compassiva 

e isso me basta


nem aceito o risco do meu tempo a seu tempo

que reconheço como sinal e ferrete.



as linhas



quando desenhas as linhas 

 do meu desgosto 

sei que a manhã desperta 


as minhas mãos no teu rosto 



se na minha face rugosa alinhas

os dedos do carvão que se desfaz 

ao vento da janela aberta 


volto de asas caídas aonde tu já nem estás




letra a letra




 digam-me letra a letra a minha cruz 

soletrem-me do calvário o caminho 

à volta sem regresso 


e esmaguem entre dois dedos uma a uma cada luz 

os pontos na espiral em que definho. 


é só o que vos peço. 




a gola da samarra


que contas tu ó pobre para um fado 

em dó maior... do que uma algazarra 

 de cães que perseguem por todo o lado 

 o coelho que foi gola da tua samarra 


 quando a tua avó era viva e tu eras a criança 

a querer ser padre da tua freguesia 

quando fosses grande e não fugisses para a frança 


ah! se tivesses crescido outro galo lhes cantaria





desenho




quem anda com os pés nos bolsos do corpete 

e mostra os dentes a quem sua mais que morde 


usa um número acima para as câmaras da biciclete 

 e não sabe que pedala para onde mora a morte. 





a demora



espera mais um pouco.

por ti

 

se fores devagar, talvez possas 

fazer-te companhia mais um pouco.


 afinal vão ambos para o mesmo lado! 


e a viagem é assim mais lenta






\it quem sou


por entre o lixo do hospício, vagueio como doido 


varrido 

por uma vassoura de penas minhas. 





\it o dia mais que perfeito



atravessam cedinho 

a vila, deste lado ao de lá do monte onde a manhã dá à luz o sol, 


os passos ligeiros da mulher mais bela do dia 

 escolhem maçãs bravas colhidas à árvore da madrugada. 


 ah! e fosse eu com ela de mãos dadas assim cedinho




\it onde a blusa abre




onde a blusa transparece 


 os olhos matam a sede das mãos ansiosas 

do alpinista trepando pelas encostas dos seios, 


e, na planta riscada sobre a terra lavrada, 

esse vale do ventre em que se levanta o desejo da arquitectura 

para a possuída casa ancorada em estacas de vento e de ternura, 

eu desenhei a vida inteira por viver e por mais nada 


deixei cair pelo fio do prumo o olhar a pique 

e, ecoando grave, em queda livre, a voz calei 


 ali onde a blusa começa e se entreabre 

uma porta escancarada.




\it asa delta



a fita que se soltou do teu chapéu 

chamou-me pelo nome pronta para voar 


 e eu hesitei no teu decote o meu olhar 

antes de ir com ela para o mais alto céu. 



 de tão longe ver-te como um ponto final, 

quando tanto te desejei em cada pormenor, 

não vejo pior 

mal



o frio céu  

antes neve e gelo em teu banho de espuma 

que o frio no céu 

da minha boca ... 



\it o engano do jorge



não votei em durão barroso, nem no psd e muito menos no cds, 

mas reconhecia o db como primeiro ministro do meu país. 

não sendo eleito sequer para governar portugal, 


santana lopes pode assinar uma constituição europeia? 


 pode. por s.jorge!


não, em meu nome

eu só espero que a caneta tenha uma diarreia.



\it muda a hora 



muda a hora. às duas de qual manhã?  às duas por três, numa catedral aberta,

 visito mortalhas em fila de espera 

e só ouço o silêncio frio 

de um amigo que ressona 

 sem saber que morreu uma hora mais cedo. 



\it as ideias 



eu sou o meu único tormento 

e as tormentas por que passo. 


eu sou o navegador 

que inventa o cabo e o dobra.



\it a garça que caminha



a garça tem olhos inquietos e um corpo suspenso 

desajeitadamente reequilibrado com o bater das asas 

o boi tem olhos conformados ao corpo pachorrento 

uma tremura por dentro da pele macia avisa as asas da garça: 


 podemos caminhar juntos, voar é que não! 




\it chamado 



disseram-me que muitos são os chamados 

e poucos são os escolhidos 


 a mim chegava-me ser chamado 




\it nada me custa mais que corrigir provas de amor 


Quando te pergunto e tu respondes, 

procuro o certo e o errado ou o que escondes? 


 Eu não quero saber o que é certo ou o que é errado 

nem quero virar o ar dos sons para vibrar por outro lado 


 Sou eu quem se desfaz em tinta vermelha verdadeira 

chorando sangue sobre a tua resposta azul certeira 


 a não esperada 

 ou a não desejada 

ou o contrário de tudo ... que é nada. 





\it se acordar 



se a manhã vier beijar-me 

como só ela sabe 

eu hei-de saber calar-me 

no colo em que meu sonho cabe. 


se acordar? 

sonho acordado.




\it em saco roto 



se eu me levantar e pedir a palavra para dizer 

como Novalis disse ... 

 é porque não sou um saco roto




\it desenho. logo existe



o luar contigo 

 é o desenho 

 de um luar comigo 


desencontros tanto acontecem 

ao luar contigo 

como ao lutar comigo




\it nenhuma orelha te arde


Nenhuma orelha te arde 

por eu me pensar


Contra praga de cobarde

 nem precisas de abrigo.



\it a viola


 muitas vezes, como 

se soubesse tocar-lhe 

 abraço-a 


assim como 

se a embrulhasse 

numa canção de embalar 

antes de a acordar.




\it lenda



aos homens disseram: 

 - pesquem que é um bom desporto! 

homens houve que acreditaram e fizeram 

 o melhor isco de homem morto. 


mais tarde disseram 

 que os peixes não morderam. 


 os iscos usados na pesca desportiva 

de mar salgado passaram pelas brasas 

 antes de serem petiscados em suas casas 

 pelas viúvas respectivas. 





\it tarde tocaste




foste a última a tocar o meu pobre coração 

mas foi tão tarde 

que é o tal fogo, o que arde 

sem que o possas ver, o que me consome 


 e, quem sabe?, talvez me mate à fome. 



\it as portas



assim abandonado e só e arruinado. 

ser lugar visitado e visto por uma porta entreaberta

para ser outro 


assim no alto 

pelos seus dois olhos vazados

a porta não vê




\it as portas  




ao fundo, a casa do alto vento 

abriga uma fogueira de caçadores 

espreitando o rio, como quem espreita 

a serpente que vem da espanha onde nasceu

e onde deixa os ovos


vimos passar as luzidias escamas

do seu dorso a caminho da cabeça,

a nossa, essa que nos envenena cada vez

 que nos morde

quando nos beija 

 com a língua multífida da ibéria. 



 

\it as portas 



enganas-te

para pensares em fugir por aí, 

 precisas de asas para voar 

e isso eu não tenho para ti.



\it as portas



os meus rebanhos pastam as tuas costas 

 e bebem-te sem estragar a miragem no espelho: 


a uma distância prudente e medrosa pensas que reflectes 

 estando eu a olhar para ti e para quem não te compreende 

na ânsia de seres livre em cada pedra que te prende 


e beirando portas pronto a sair 

afinal entrando 

 de um para outro lado 


 de uma nação a outra.




\it desenho para passar o tempo


desenho para não olhar quem não quero ver

desenhar é como mudar de passeio. 


desenho as linhas das mãos dormentes 

desenhar é não veres o que só tu sentes




 \it o que a morte sabe 



O que a morte sabe 

 eu não sei se cabe 


na boca suja do inferno 

no mais vazio instante do eterno



 na biblioteca dos medos 


onde guardas mais segredos 

é lá que também a morte se deita 

e o quase nada de tudo espreita. 




\it a flor das águas



devias deixar-te afundar um dia só para veres o negro

 verdadeiro e enfim dares valor a cada raio de luz 


 não é coisa sem valor uma pepita de luz 


devias deixar-te cair com um peso amarrado ao pescoço. 

 para veres como pesa menos o que te prende ao lugar 

 de onde queres sair desesperadamente

porque te vai faltar o ar, vais dar real valor a cada bolha de ar 

que verás a sair sem regresso da tua boca

e como vais invejar a sua agilidade na pressa da subida


 - se tenho medo do escuro, mais medo tenho da falta de ar! - 


 é o que dizes para esconder a verdade 

 de apaixonado que estás, sempre estiveste, pela flor das águas 

 e seu brilho tenso de fronteira instável entre água e ar, 

 sombra e luz, 


 a tua vida adiada antes e depois da tua morte anunciada.



\it fado calado 



 já decidiste tudo para depois quando 

 tiveres partido. 


 o fado da tua morte é só um verso perdido 

que a tua vida foi adiando. 



e o poema da vida que te coube em sorte 

é a história de cordel da tua morte. 



\it já?



 já decidiste que não falas por falar, 

 com quem não falas, a quem não respondes, 

quem não queres olhar 

de quem te escondes 





 

\it levanta-te e dança!



um dia o meu pai olhou para mim e disse:

 se te levantares saberás o que é andar sem ajuda 

e isso, tão pouco!, é a liberdade que em ti tudo muda. 


[¿Sabia ele o que lhe diria hoje se o visse?]


 e, tendo construído em verga forte duas bengalas

 até à altura dos meus sovacos de criança,

levantou-me do cesto onde jazia para dizer: "abram alas! 

que é tempo do arsélio vir mostrar como se dança". 


 \it torturadas


tanto as amo vestidas de frondosas copas 

 pelo estio 

como as choro assim nuas torturadas 

 às mãos do frio



\it a esperança



renasce como uma onda puxada pelo vento 

 e morre ali refeita suspiro ao chegar 

 à praia onde como quem mói o pensamento 

 piso meticulosamente cada bolha de ar. 


a árvore em que tropeçamos