materpater
Surdo de Jesus linha nascido num dia aziago.
Seu pai, Margarida de Campos Lodosos, tivera uma zanga com sua mãe, Márcio Sax Alto e Borgonha, momentos antes de esta ter dado à luz. A violenta discussão tinha origem na oportunidade do nascimento do mais tarde baptizado Surdo de Jesus. De facto, Margarida de Campos Lodosos entendia, e não deixou de o dizer a Márcio, sua mulher, que se deveria adiar o nascimento até dai a seis meses, mais pelo calor. Márcio contrapôs que não era bom ter um filho de quinze meses, além de que já andava cansada de o transportar e, ele ou ela, andava batendo à porta da pele cada vez mais insistentemente, avisando que ansiava pela luz. Não podia ser. Ela, Márcio, já tinha decidido dar à luz. E seja o que Deus quiser! - rematou Márcio. Margarida gritou-lhe que, se o bébé fosse dado à luz durante aquele dia, não era ele que se consideraria pai, até porque se lembrava muito bem de ter regressado, fazia agora dois anos, da Arménia onde tinha estado a fazer escavações durante seis dias. Márcio não se conteve sem lhe dizer: Antes assim, que ser filho de uma múmia!
Margarida tinha saído de casa, batendo com a porta. Estrondosamente! - disseram os vizinhos. Passados minutos, Márcio dera à luz uma linda menina. Tinham-lhe posto o nome de Surdo, por ser muito parecída com o pai e porque tinha dado provas de não ter ouvido a violenta discussão que precedera o seu nascimento. O pediatra tinha garantido que Surdo não guardara qualquer traumatismo das dramáticas circunstâncias do nascimento e, à parte aquele ar apalermado, era uma criança saudável e apta a fazer qualquer guerra da Crimeia que entretanto alguém decidisse desencadear, para dar sentido às crianças nascidas na época. Dessa primeira consulta a respeito da saúde de Surdo, datam os primeiros arrufos entre a mãe de Surdo e o pediatra espeleólogo. Nunca se confirmou o caso de Márcio, mãe extremosa de Surdo, com o pediatra Arturia Espinhosa de Jesus. Mas as más línguas atribuem o apelido de Jesus de Surdo ao facto, nunca provado, de haver uma antiga ligação entre Márcio e o pediatra.
Até aos sete anos, Surdo de Jesus cresceu rodeada de todos os carinhos maternos mas sem ter conhecido pai. Margarida de Campas Lodosos escavava agora uns campos de arroz na Tailândia, procurando vestígios da passagem dos americanos pela guerra do Vietname. Essa intervenção americana era referida em diversos filmes de épocas remotas, mas suspeitava-se que tal não passaria de ficção. Quando Margarida voltou a casa, num interregno do seu trabalho de arqueólogo, já Surdo andava de capacete. Só devido a esse facto e porque Surdo chegava e partia velozmente na sua motorizada é que Margarida nunca pôde verificar as tremendas parecenças que tinha com a filha enjeitada.
Surdo não deu grande importância àquele velho que estava em sua casa. Não sabemos se foi por causa do capacete que não ouviu as explicações patéticas da mãe, ou se era verdade aquilo que toda a gente sabia - que Surdo era surda. Márcio teceu duas mantas para o acampamento de Margarida, enquanto este bebia chá e mascava sem parar alguns chicletes que tinha desenterrado na escavação da Tailândia onde afinal sempre encontrara vestígios de desertores americanos e russos. Um dia Margarida de Campos Lodosos voltou a partir, agora para o Afeganistão, onde esperava encontrar vestígios de russos e com certeza de americanos.
Quando Surdo viu a fotografia de Margarida, tirada na cerimónia de entrega dos troféus da primeira eliminatória de arqueólogos, percebeu que aquele devia ser o seu pai. Surdo, surda a todos os apelos, pegou na pá e na picareta e foi desenterrar o seu pai e o seu passado. Encontrou-o a comer mariscos na cratera de uma bomba atómica aberta a trinta quilómetros do atol de Máláviáda, entre duas indígenas jovens, as irmãos Momo.
A tentação do atalho
A Morgadinha dos Canaviais põe com muita frequência um travesseiro debaixo da cabeça do meu amigo Paulo Gamelas. Paulo Gamelas queixa-se com igual frequência que a Morgadinha lhe dá sono e pede ao seu professor que o dispense da companhia de tão fastidiosa criatura que o persegue em caminhos de leituras que não desejou. Chegou ajurar que não adormeceria a ver a Morgadinha na Televisão, apesar de ela ser o que tinha adivinhado, aquela que aconchega o travesseiro a quem, sem qualquer respeito, lhe diz na cara que ela só inspira fastio e bocejo. Mas o professor de leituras não esteve pelos ajustes e proferiu a sentença cruel: toda a leitura exige um esforço e nada do que se aprende vale a pena se não tiver por base algum sacrifício. E concluiu, para o angustiado Paulo, que só mais tarde é que ele compreenderia a importância desta leitura e só então lhe agradeceria por não o ter poupado.
Paulo ficou completamente arrumado com este último argumento, porque não sabe nada do futuro e fica estupidamente gelado quando alguém se apresenta a dizer-lhe que vai perceber no futuro a utilidade dos seus aborrecimentos de hoje. A Morgadinha ouve todas estas discussões e sorri para o professor de leituras, enquanto pisca o seu olho mais cúmplice, que é também o seu olho mais inocente, para o Paulo Gamelas. Convence-o, de piscadela em piscadela, a segui-la até à página 101, para uma folga de comendadores, conselheiros, brasileiros, irmão, primos falsos, boticário naturopata e apaixonado doentio. Só então, com o Paulo Gamelas sentado num bucólico muro coberto do musgo que já fez de musgo noutras cenas, como a do presépio, é que a Morgadinha lhe conta o que se passou nos Canaviais. Foi com a voz reduzida a um murmúrio que ela concluiu a história, dizendo: Se eu tivesse contado isto ao Júlio, o romance teria sido outro. Paulo Gamelas promete à Morgadinha que a vai acompanhar até ao fim do livro. De vez em quando, volta a jurar-lhe que da sua boca ninguém saberá a verdade e ela beija-o e ensina-lhe um atalho para cortar umas quantas páginas. Paulo Gamelas nunca encontrou o fim do livro. Pela mão da Morgadinha foi ter sempre aos canaviais. E homem de palavra, nunca respondeu às perguntas do professor de leituras sobre a Morgadinha. Para não se descair, preferiu sempre manter um silêncio obstinado sobre o livro. No fim do período, o professor de leituras escandalizou o Conselho de Turma. Propôs-se dar zero ao Paulo Gamelas. Felizmente que a Morgadinha insistiu na defesa do Paulo e o Conselho optou por atribuir uma nota que permitisse a recuperação noutras leituras, tendo em vista o seu aproveitamento global nas diversas disciplinas. Acordado, Paulo Gamelas levantou-se. Estranhou a almofada e alguns restos de folhas de cana secas presos à camisola. Levantou o livro do chão. Mais uma vez tinha-se fechado ao cair. Dirigiu-se à estante, poisou o livro e pegou no resumo da obra. Pensou num dos atalhos do sonho e sorriu.
Em louvor da citação
Quem me ensinou a nadar? - perguntava insistentemente a cantora. E respondia: Foi, foi o peixinho do mar.
Maria Felizbela não ouvia. Absorta, procurava lembrar-se da citação apropriada para confirmar aquela ideia que ia encher uma página A4 da sua tese. Acabou por desistir e fez o que era costume quando não encontrava a citação. Escreveu qualquer coisa como: "Como disse um autor famoso (ninguém vai admitir que não sabe quem disse) o treino não é mais do que uma das vertentes do ensino. De facto, o professor deve, após ter introduzido um determinado conceito ou uma nova técnica, apresentar alguns exercícios que sirvam para treinar a nova aquisição e para a consolidar."
E acrescentaria:
"Mas é preciso combater a ideia errada que alguns professores têm de confundir "treino" com a aprendizagem centrada no aluno, em contraposição ao ensino esse centrado no professor. O treino não é, por si só, aprendizagem, nem é a outra única face do ensino."
Maria Felizbela escreve coisas destas todos os dias. Habitualmente, nem precisa de escrever estas frases.
De um modo geral, a sua prosa resume-se a escolher algumas partículas apropriadas para ligar duas citações de autores conhecidos e a numerar convenientemente as citações.
O seu trabalho é transcrever as citações que guarda num ficheiro que manipula com alguma languidez nas tardes de sábado.
Não havendo a profissão de "transcritor", optou-se por atribuir a Maria Felizbela, antiga professora, a profissão de investigadora de ciências da educação ou talvez por formadora de formadores, ou talvez qualquer outra coisa.
Também não interessa o nome. O que interessa é que é um emprego. E como é suposto que pensa profundamente, ninguém lhe pode exigir muito mais. Quando dava aulas aos miúdos e àqueles adolescentes insuportáveis a vida era uma canseira.
Agora tem consciência que trabalha muitas horas por dia. Sempre a pensar como é que se dão essas aulas e a investigar a melhor maneira de dar essas aulas.
Aos professores no activo dirá: "Façam assim, assim e assim. Devem evitar levantar a mão direita quando a ideia a exprimir se formou na bochecha esquerda"
Os professores adoram os investigadores que tanto se preocupam com o magistério e que publicam as melhores receitas coleccionadas depois de copiadas em variegadas obras.
Maria Felizbela é feliz, porque ajuda os outros. Ela está convencida da imprescindibilidade do seu trabalho. Muito raramente se lembra que não conseguiu fazer aquilo que pretende investigar.
Maria Felizbela é bela, porque tem um sorriso sossegado por trinta citações. Maria Felizbela é Maria que é nome de portuguesa: As portuguesas usam muito esse nome, continuaram a usá-lo mesmo depois de terem passado de moda os brincos de filigrana e os cordões de trinta voltas.
Maria é nome de mulher séria e pode também ser nome de "pedagoga". As pedagogas não têm culpa. O nome não tem culpa. Maria Felizbela também não. Aliás, sempre se disse que quem não sabe, ensina. Então porque não levantar o dito e dizer o outro e mais moderno modo do dito: Quem não sabe ensinar, ensina a ensinar.
Não, não é verdade que Maria Felizbela tenha consciência que o seu trabalho de citar não tem utilidade. Até porque tem. O professor que, coitado não tem dinheiro para comprar o livro estrangeiro, nem pachorra para o procurar na biblioteca, gastará o seu dinheiro numa colecção de resumos bem portuguesa. O trabalho de Maria Felizbela é gratificante, de facto. Até é patriótico. Maria Felizbela tem andado a pensar em copiar as suas fichas de leitura para o computador. Vai ser mais fácil copiar as citações de uma obra para outra e ninguém vai olhar para ela como ultrapassada pelas novas tecnologias. Já no tempo em que dava aulas, usava muitos meios audio-visuais para não ter que estudar. Lia as citações que projectava. Nunca percebeu porque é que os alunos não ficavam maravilhados com a sua sabedoria. Era verdade que não sabia muito bem o que andava a ensinar, mas sabia fazer as transparências e sabia lê-las.
Foi assim que aprendeu a arte.
Maria Felizbela ouve a música: Quem me ensinou a nadar? - perguntou a cantora.
E ela respondeu: Foi, foi o peixinho do mar!, cantando para si, feliz e bela.
Levantou-se. Com ternura, Maria Felizbela beijou o ficheiro.
Textos escritos por Arsélio Martins
para a voz de José António Moreira
na Rádio Independente de Aveiro:
para alguém ouvir e fazer parte de um projecto de colecção editorial "Radioactividade" que incluiria os programas dedo no ar, circulo virtuoso, pretextos e outras pequenas coisas que ainda não encontrei.
Sem comentários:
Enviar um comentário