a primitiva casa

em memória do poeta da aldeia


é verdade que não lembra as datas em que morreram
(como poderiam lembrar-se da data em que nasceram? se ainda não tinham nascido) nem pode recordar a nitidez das pessoas e dos locais que descreve porque não vivia no tempo em que deram as caras ou as varandas à luz do sol que os tisnava para ganharem a cor que os seus olhos viram depois ao avizinhar-se de todos eles como se fosse o estranho da família que vai a enterrar num antigo curral de porco.


sobre raimundo, o poeta


raimundo é um poeta de má mwemória. pensa-se que nasceu na região de aveiro, mais propriamente conhecido num lugar conhecido por trás-da-moita ou lagoa-chorida, na actual frenguesia de santo-andré do concelho de vagos. não se conhece a data de nascimento ao certo, mas pensa-se que morre em dezembro de todos os anos. dele se sabe que nunca quis aprender a escrever e muito a ler, mas que frequentou a escola primária pública da sua aldeia, assim como frequentou a catequese e fez a primeira comunhão. há quem diga que fez o crisma e escolheu arsélio martins para segundo nome. os seus escritos dispersos e consiiderados obras sem qualquer importância têm vindo a ser desenterrados por um obscuro professor de matemática do ensino secundário que dá pelo nome de arsélio martins. arsélio martins afirma que descobre os papéis de raimundo na estrumeira do pátio da casa onde nasceu e onde cresceu. durante vários anos, arsélio martins, um homem sem energia e sem grandes convicções, ou pelo menos pouco dado a valorizar o seu trabalho, publicou em alguns suplementos de jornais e revistas, ao sabor da sua desorganização mental, alguns dos textos que recupera da estrumeira da sua vida. muitos dos textos estão de tal modo tratados e acrescentados (até pela inserção de dados que não podem ser do conhecimento de raimundo) que não podem deixar de se considerar completamente reinventados pwlo professor de matemático. da mesma estrumeira, arsélio martins retirou a maior parte da sua cultura. sabe-se que, sendo homem de várias leituras, o actual professor obscuro começou por ler obras carregadas de ateísmo e cientismo e escritos obscuros de um seu avô, velho regressado da américa-do- -norte onde tinha permanecido durante trinta e cinco anos sem ter dado notícias. do mesmo modo leu obras de autores brasileiros que enchiam arcas que o seu pai enviava do brasil a acompanhar promessas de regresso que nunca se chegaram a cumnprir. o rasto desses volumes perde-se nas estrumeiras do seu pátio, que foi, muitos anos depois, um pátio cimentado onde se guardou um fiat 127. hoje, a confusão é total a respeito da autoria da maior parte dos escritos. ninguém pode dizer onde começa e acaba a obra de raimundo; muito do que aqui se divulga pode ser cooisa escrita por arsélio martins que, a sua imaginação doentia e supersticiosa atribui ora a raimundo ora à assombração de raimundo. seja o que for é raimundo. seja o que for, é aqui e em mais nenhuma memória.

eu em março de 1971?

(março de1971 em Leça, eu escrevi no caderno de grupo poético
- escreveu-me JCPSoares, muitos anos depois)


aquele menino maluquinho
meteu asas ao caminho
e apodreceu de livre vontade.

e assim à vista de todos
sem procurar venenos ou outros modos
de matar-se caíu podre dentro da cidade


aquela menina de agasalho
passou pelo meio do menino caído
e teve muito nojo e pena de ver um caralho
tão novo e apodrecido.

e desde o dia de tal memória
ficou maluquinha e apodreceu nesta história.

pelos olhos dos dedos

já não sei há quantos anos estava eu em Elvas e aceitei mais um que fui