silogismo?

Desde o princípio dos tempos, Deus tudo escolheu para nós, até as nossas gravatas.


[E.M. Cioran, Silogismos da amargura. Letra livre, Lisboa: 2009]
oferta de JCSoares

Zurbarán

(...)
Pensativa substância, a pintura
paralisa de luz a arquitectura.
(...)
A sala inteira silenciosa reza
uma oração que exalta uma certeza.
(...)
Nunca a linha vestiu peso mais grosso
nem a alma pano vivo em carne e osso.
(...)
Gira em tua eternidade a disciplina
de uma circunferência cristalina.


(A la pintura. Rafael Alberti. José Bento)

40 anos de casados

o josé telefonou para me dizer: fazemos 40 anos de casados. temos de nos encontrar. num dia de julho. nas ruas de leça. que dizes?
respondi: encontrarei o dia.

publisuicidade



à porta
de uma escola
no porto
há apelos
ao masoquismo
feminino
juvenil



eternidade

prefiro o silêncio à voz desde que sei seguir legendas

mundo com pernas

manuel tem dificuldade em acompanhar o mundo com pernas para andar. sempre gostou de andar de gatas, porque gosta do amarelo dos olhos dos gatos e das garras afiadas que sempre estiveram nas patas felpudas que o acariciam ronronando promessas. mas o mundo? só percebe o mundo sem pernas, não imagina o mundo com pernas nem sabe o que poderá ser o mundo de pernas para o ar. o manuel tem dificuldade em olhar a simplicidade sem garras e patas felpudas que escondam as garras da intimidade que um mundo com pernas para andar torna difícil demais. para o manuel há um nível de dificuldade inadmissível e um nível de simplicidade admissível. apontou no seu caderno de notas ou de noites de andar às gatas e sabe que, para ele, não há coisa alguma. o que não está referido no seu caderno de notas não existe, simplesmente não é. foi a mãe quem lhe disse isso mesmo e a mãe deu-lhe o primeiro gato para que ele pudesse acreditar em tudo o que ela soubesse balbuciar. mundo com pernas para andar? nah.

todos os dias

vejo-a na sombra.

um sorriso em contra-luz
fora de uma porta aberta ao sol

nem eu sei como a encontro
que eu não vejo mais que uma sombra
que assoma e desaparece
na mancha de uma sombra maior

a CABEÇa perdida

às três.

ainda me lembro disso. não era nada natural a maneira como ela pegava no gato. arnaldo comentava a antiga atitude de atirar os gatos ao poço. ninguém ligava e continuava toda a gente a beber a água daqueles poços cheios de gatos podres. o menino puxou de duas pequenas pedras bem redondas que trazia no bolso e atirou-as, primeiro uma e depois outra para o poço. viam-se as circunferências concêntricas se repetindo à superfície e lá no fundo dois olhos brilhantes e fixos como estrelas. voltámos as costas a todas as imagens e caminhámos para aqui, onde nada se reflecte. assim concluiu arnaldo a sua narração sombria. todos se calaram.

eunice desaparecera já há um bocado. voltou depois com arnaldo pela mão. este tinha perdido a cabeça. e tropeçava em todos os móveis. eunice, ao passar pela mesa do conde, poisou a cabeça perdida do arnaldo e disse: tem nome, chama-se arnaldo e não dá por outro nome. não te esqueças. o conde disse: eu sei.

desenho, logo existe




como um pesadelo

a CABEÇa perdida

ás duas.

afinal quem é você? - perguntou eunice. eu era camponês em abravezes, mas perdi as terras. disseram-me que iam construir uma escola na terra que eu tinha passado a vida a estrumar. fiquei marcado para o resto da vida. quer ver? mesmo aqui ao lado do mamilo direito. está a ver? - arnaldo sem parar - abandonei tudo e vim enriquecer para a cidade dos prazeres. eunice teve tempo de dizer qualquer coisa como fez bem antes de arnaldo continuar a sua história. agora já não acredito em nada. antes de vir para a cidade ainda acreditava em alguma coisa - peregrinei por santuários, escrevi versos a nossa senhora e estive até em frente de um rio que de mim corria, decidido a afogar a minha alma para que ela não perdesse a fé. tudo iso se passou em rio de moínhos quando eu caiava as paredes em grossas gotas. acrditava nas pessoas? - atreveu-se eunice a perguntar. arnaldo, sem parecer ouvi-la, continuou: eu não acredito, simplesmente não acredito. para mim as pessoas valem pelo que fazem e eu vejo fazer, pelo que dizem quando as ouço dizer, pelo que procuram com o olhar e eu vejo olhar. não sei para que servem os ideais. ser feliz é ter as mãos atadas enquanto contamos a nossa história e ela nos vai desatando, não acha? eu nem sei se a história que contam de mim é aquela que quero ouvir. de qualquer modo, não podem iludir o que contam de mim, que matei a minha família, que não quis lutar para conservar o meu pedaço de terra, que busquei a paz onde ela existia. que mal tem procurar a beleza entre as ruínas da beleza? que mal pode ter roer as unhas depois de ter limpado o esterco dos porcos? toda a vida antes desta vida me deeram ordens sem sentido, como podiam esperar que eu me defendesse e lutasse? ainda não percebi porque é que o meu irmão pegou na forquilha e foi ver as tripas do presidente do município. diga-me, eunice, que beleza podia esperar ele desse gesto? sabem que dizem que ele as lavou, muito bem lavadas, as pôs em vinho e alho e estava a comê-las quando a polícia veio buscar-nos? e eu a pensar que eram do porco da comadre etelvina. devo confessar que ainda agorinha senti o cheirinho desse tempo. para onde eu não quero voltar. você fala demais - disse o homem de bata branca que se aproximava, brandindo o que parecia um bisturi. eunice levantou-se e disse: gostava d eter uma bata branca como a sua. meninos está a acabar o recreio - ouviu-se ao longe. corriam, em fila, como um regato evitando as pedras. passado algum tempo, entrou uma imagem de cera com a cabeça a ardeer e os lavradores e o arnaldo, presentes na acção de fomração, entoaram em coro o hino da lavoura.

a CABEÇa perdida

à uma.

arnaldo virou-se para a mulher e disse: tire os olhos do pato! e não se debruce tanto! a mulher tinha nome e disse-o, em voz demasiado alta: chamo-me eunice de brito e tenho nove anos. arnaldo pendurou o enfado nos olhos e bocejou: aahahaahmanhã vai chooooover mais do que hoooooje. não se sabe porquê, mas o homem que acabara de chegar dirigia-se à mesa ao lado da rainha da prússia, sentou-se ao colo do conde de alenquer e gritou para o garçon que pairava acima das conversas e sempre atento aos desejos dos comensais: traga-me o lagostim mais suado. o garçon não respondeu. então o conde, sem deixar de cofiar o bigoe com a perna da lagosta, endireitou ligeiramente o olhar e, mal alvejou o garçon com os seus olhos aguados e frios, disse secamente: o menino quer lagostim mais suado. o garçon não ligou e abadonou a cena a caminho do hospital em que agoniza a sua amante marquesa de fonte seca que lhe vai deixar o título e uma carta de recomendação para o regente. há-de dizer-lhe com voz moribunda que não houve dias suficientes para pensar nisso antes da febre que a prostrou e que a invenção da bicicleta foi a sua morte. o garçon gritou-lhe para o ouvido: tenho nome, chamo-me alexandre da macedónia e soube hoje que sou seu filho. o médico chamou o cangalheiro e recomendou, em voz baixa, que não aplicasse a cruz no caixão daquela infeliz que tinha dormido com o seu próprio filho. disse o cangalheiro: que mal tem? também eu dormi com os meus filhos até à idade de irem para a a tropa. o médico deu de ombros e foi tratar da menina mercedes que se hospeda em sua casa nos dias feriados, para ser tratada do melhor de tudo. o menino do conde saltou do colo e, depois de beijar a rainha da prússia, correu em direcção à retrete. arnaldo pegou na mão de eunice e perguntou-lhe se ela se importava de tomar conhecimento da sua relação com o conde. disse ela: bem pelo contrário, meu marido é bem atraente e faz-lhe bem mudar de par. arnaldo espantou-se: mas você é de brito, como pode ser de alenquer? ela resmungou: alenquer é a terra do avô do meu marido. ele não sabe onde é, mas eu sei que já lá dormi com um chaufeur russo, de nome miucha. eu conheço-o - lembrou-se arnaldo, - era meu meio-irmão por parte d meu avô. como pode ser? - perguntou eunice, muiot coraada. pode, mas isso já não interessa, ontem matei a minha família toda, não quero mais ouvir falar dela - disse o arnaldo e olhou para o conde. este, absorto, mergulhava os olhos num pequena bacia de água. o menino do conde aproximou-se da bacia de água, pegou nos olhos, limpou-os a um guardanapo cuidadosamente guardou-os no bolso. ouviu: a luz voltou! com o dedo, o conde limpava os buracos dos olhos como quem limpa o nariz.


[o primeiro de três episódios publicados em Decotes, número um, de não sei que ano do século passado]

a tirania

esqueceram-se de ti num lugar perto deles e fingem tomar conta de ti, dia e noite,

tomam conta das tuas memórias até teres só memórias deles, as mais convenientes;
tomam conta das tuas coisas até deixarem de ser tuas ou até deixarem de ser

esqueceram-se de ti até seres uma santa de porcelana prestes a cair da prateleira
do jazigo em que vives tu e eles uma eternidade infantil.

desenho, logo existe



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