Bem passado pelo espelho 3/10/2018
Bem passado pelo espelho
3/10/2018
quando o olho no espelho se vê a si mesmo
não vê o portador do olho que quer ver o olho
dará dois passos atrás o portador e, com ele, o olho
e este será então parte do portador onde se procura
Um dia, ainda era madrugada, a minha mãe, disse que eu já não ia tirar o esterco das vacas. Tirou-me o engaço das mãos e entre os meus dedos colocou uma canetas de dois gumes. Foi assim que, peremptória, aceitou a derrota face à minha irmã e me enviou para o esterco da universidade. Lá fui com o rabo entre as pernas, e, na falta de melhor razão para tanto exílio, comecei a estudar matemática nas horas que serviriam para tirar o esterco da cama da vaca minha. E nas horas que se destinavam à leitura dos folhetos da feira, sentado ao fundo do curral, comecei a estudar política.
Durante uns anos maduros, não percebi muito bem porque tinha sido esse o meu destino e roía-me de inveja dos olhos vivos e maliciosos dos meus companheiros camponeses que continuaram a tradição da sueca, da missa exterior de domingo, dos tremoregados com o vinho das tardes de domingo.
Agora já percebo. Com a entrada na comunidade aos vacas deixaram de usar camas de palha e junco e há máquinas de sugar o esterco dos currais para as terras e o leite das tetas das nossas vacas para os depósitos da cooperativa leiteira. E já se fala que o mercado há-de enterrar a fruta que faz falta na Europa de leste, na Etiópia ou em mo, mas não falta na Europa civilizada e comunitária. O internacionalismo mercantil tem a ver com o internacionalismo da miséria e não com o internacionalismo da partilha dos bens. Mesmo os bens que são distribuídos pela ajuda internacional são cotados em bolsa ou no mercado das comunidades benfazejas.
Se tivesse ficado na agricultura, já estava a pensar na reforma da minha mentalidade e da minha actividade. Como professor só tenho que enfrentar, para já, as reformas da entidade.
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do outro tempo, sem mudar o que se escreveu antes
Do passado para Rádio Independente de Aveiro...... como também para agora
Labirinto
O labirinto é.
Cada um dos pereregrinos no labirinto pensa que conhece uma saída. Desenharam-lha no mapa da fé que recebeu como herança.
Quando, num dos corredores do labirinto, um peregrino encontra outro de fé diversa, pode puxar da metralhadora. É por isso que os corredores dos labirintos do homem estão juncados de cadáveres.
O chão do labirinto é feito de cadáveres que, na sua rigidez e podridão, criam uma elevação de cartografia sem fé. Quando a elevação é tal que os pergrinos podem ver por cima das muralhas do labirinto, são castigados pela luz.
Cada um, à maneira da sua fé, benzem-se perante a realidade e, em vez da metralhadora, podem estender a mão. Falo dos peregrinos que se benzem de pé.
Os que só se benzem ajoelhados nunca verão por cima das muralhas. Para estes, a realidade tem o cheiro inconfundível dos seus mortos. Para estes, a saída é a redonda e abençoada boca da metralhadora capaz de fazer sobrepor o cheiro da pólvora ao cheiro dos mortos ou de tornar o cheiro inconfundível dos mortos dos outros mais forte que o cheiro dos seus mortos.
Nos muros de Jerusalém desenhei estas palavras, nem tocadas pela fé, nem tocadas pela esperança. Queria dizer que as minhas palavras são sopradas pela razão e pela mente. Mas, perdido no labirinto das razões, sei que não há razão sem fé não sei em quê.
22/09/93
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