tempo quente

Quando me esqueço de quem sou
Uma alma toca o alarme da minha porta
E à maneira dos ferros em brasa engoma-me
As palavras uma a uma antes que eu saia.

Piedosa a alma passa o seu pano de vapor
Alisando-me a testa e uma ruga cavada
Como vale de lágrimas entre o olhar perdido
E os lábios gretados pela cal da sede.

Depois é ver-me passear à soleira
Magnífico como um dente de ouro
Preso por um cordel ao trinco da porta
Que alguém abrirá ao passar.

exames... de consciência

Como passar estes dias sem falar de exames? Há exames. E todos nos afadigamos em dizer que isto vai mal. Os exames vão mal. Os alunos têm melhores resultados? Isso é mau: os exames são fáceis demais. Os alunos têm maus resultados? Isso é mau, mas não são os exames que são mais difíceis, o que acontece é que são maus os ministros, os programas, as escolas ou os professores em geral. Como passar no exame destes dias?
Os exames são mais fáceis? São mais difíceis? São diferentes? São iguais? São tudo isso, devemos dizer em abono da verdade. E há quem diga cada uma das coisas, com toda a razão cada um dos que fala quando compara com alguma coisa que tem na cabeça e que os outros não conhecem.
Hoje em dia, os exames são mais acessíveis? São, de facto são. Desde há um bom par de anos que se tem vindo (finalmente!) a publicar as perguntas que se fazem e se podem fazer sobre os programas e até mesmo as respostas que se esperam. Para esperar o quê? Que os alunos tenham piores resultados? É mau que os alunos saibam que tipo de perguntas se podem e devem fazer no fim de um ciclo de escolaridade? Não, não é. É mau que muitos alunos percebam que as questões que lhes podem ser postas são acessíveis no sentido que procuram que eles mostrem se estudaram e compreenderam o que de essencial se espera deles? Mais transparência do sistema dá mais confiança, e, com mais tempo para pensar, preparar e escrever as respostas não é natural que tenhamos melhores resultados?
Assim é, mas nada nos permite diminuir e espalhar a crença que melhores resultados do trabalho actual só podem ser uma fraude. Uns serão...

Criticáveis são, certamente, políticas e medidas no sistema educativo dos últimos anos. Também dos responsáveis pelos exames.
Quem havia de se lembrar de um motivo para louvar os últimos governos tão diferentes em partidos e em partidas que nos pregam? Eu. Que fizeram eles de bom? Mantiveram uma organização com autonomia - o GAVE - a dirigir a concepção e elaboração de provas de exame, de testes intermédios, de publicações de perguntas e respostas. A todos eles, muito obrigado por esse pequeno nada que é afinal o tudo nada que fez alguma diferença.

Se temos de aumentar a exigência sobre os sistemas, exigindo ao mesmo tempo cada vez mais dos jovens, dos professores, das escolas? Claro, sempre! Como se faz isso? Exigindo. O que é que isso poderá ter a ver com a palavra fácil? Nada.


[o aveiro; 26/06/2008]

(arte) postal



desenho em postais do correio, desenho em folhinhas a6, desenho em papel de mesa, desenho em guardanapos, e, sempre que possível, para compensar a falta de palavras, no verso escrevo endereço e colo o selo. as pessoas que recebem as folhinhas pelo correio nunca me escreveram de volta sobre qualquer dos desenhos que lhes enviei. de vez em quando, preocupo-me em saber se as folhas volantes chegaram ao seu destino. e só.
as mais incríveis folhinhas têm chegado ao seu destino e os correios de portugal ainda não pararam de me surpreender. do que eu mais gosto e o que eu mais admiro é a diligência dos carteiros no seu circuito.

admirar de admirar mesmo.

negativo de um postal, só o negativo que ora mostro.

o girassol dissidente

Recebi o teu postal de reunião. Foi bom, por uma vez, ter na caixa de correio algo diferente de uma factura para pagar!
Em troca, mando-te este girassol dissidente que nasceu aqui perto da minha casa.
Abraço
Marília

Perguntei-lhe:
- Um girassol virou-se para ti e os outros viraram-te as costas? Porquê?
Ela respondeu:
- Estes girassóis são muito esquisitos. Estão sempre virados para o mesmo sítio, no caso para nascente, independentemente da posição do sol. Excepto um, o de primeiro plano, que está sempre voltado para poente. Chamei-lhes transgénicos. Não mudaram de posição. Fotografei-os. Ficaram na mesma. Nem um se voltou para mim, nem os outros me viraram as costas. São mesmo assim, bonitos mas, esquisitos.
Darão semente?

a vontade

Não aceito um Não. Ainda há pouco disseste que eu era o maior e agora dizes-me Não? Não pode ser. Nada é pior que um Não! O pior Não é aquele que se segue a grandes declarações de amor e dedicação! O pior Não é aquele que está rodeado de pequenos sins, é aquele que nós rodeamos de todos os carinhos para ser um sim. Não me faças isso, não me digas Não!
Quando eu te mando fazer isto ou aquilo é para teu bem e, por isso, está fora de causa que digas que Não fazes! Que diabo te leva a dizer Não? Não consigo compreender o teu Não. Claro que nunca me passaria pela cabeça preocupar-me com um sim senhor, pois claro! Quando dizes sim aos meus pedidos e aos meus desejos isso é tão natural que não me interrogo sobre as razões que te levam a dizer-me sim. Natural é estares de acordo comigo. Todos sabemos quem tem razão. Quem tem razão sou eu. Mesmo que eu mal te explique porque hás-de gostar de mim, natural é que gostes de mim e me digas sim, sim, sim. Não? Que ideia mais infeliz a tua!
Onde foste buscar coragem para me dizer Não? Parece impossível! Todos os meus amigos e conhecidos só podem aconselhar-te a dizer que sim ao que eu quero. Está tudo tratado para o teu sim, Se disseres que sim, vamos ser felizes para sempre! Como podes duvidar? Não te chegam as minhas promessas? Antes de dizer Não, bem podias ter pedido qualquer coisinha que te interessasse. Eu nunca te diria Não! Podia mandar-te mesmo um braçado de rosas, um maço de notas, um beijo, uma carta de amor, um cartão de boas festas e até mesmo boas festas antecipadas. Isso tudo. Não, eu não me importava nada de te prometer mundos e fundos. Ou até dar-te fundos. Agora, dizer-me Não, depois de todas as minhas promessas e depois de teres conhecimento que todos os meus conhecidos e amigos (que são toda a gente, com sabes) já me disseram sim! Parece impossível! Diz-me porquê! Eu preciso de saber porquê. Um Não, porquê?
Quem és tu para me dizer Não? Afinal quem pensas que és? Não, não podemos aceitar o teu Não. O teu Não não tem sentido. É um contra-senso. E é um contratempo!
Não te compreendo! O que é que queres? Um divórcio? É isso que tu queres? Não é melhor pararmos para reflectir? Eu sei que se pensares melhor vais dizer sim, não é? Não é? Diz alguma coisa! Vá, diz alguma coisa que me ajude a perceber. Quem julgas que és? O que é que tu queres, afinal? Dizes Não e pronto? Isso é assim? Isto não fica assim!
Quem é que tu pensas que és?

A Irlanda.

[o aveiro; 19/06/2008]

a linha dos olhos

a linha dos olhos

galafura


quem se alimenta de pedra
faz-se pedra

não se desfaz em pó e cinza
ao entardecer

galafura


até ao rio por esta vereda

leva os teus olhos
a serpente que se afoga

a... sair das cascas

torga que cresce

cada um

és a tua história:
aquela que guardas
em gavetas da memória
até formares a nuvem de palavras
cuspidas como uma corrente de ar

gelado como o corpo da tua voz.


és a tua história:
aquela que ouvimos soltar-se da tua boca
e vemos palavra a palavra
pendurada no arame esticado
de um estendal de rua

ou sobre o abismo a cabeça a caminho da lua

a viagem

a santa mulher oscila e imagina
que é o passeio da rua que oscila

um santo homem da mesma viagem
olha para ela e sorri no olhar

um abraço abre os braços dos dois
que desatam a rir desfeitos no ar

que nuvem os leva? o crente diz
que nuvem assim é feita de dois

a chave da porta de saída

Ainda há pessoas. Cada pessoa, na sua cidade, vive rodeada de pessoas. A cidade de cada pessoa é, em primeiro lugar, a sua vizinhança. Pelas ruas em que passo, há muitas pessoas que conheço e me reconhecem. Em alguns momentos do dia a dia, muitas mais há que não conheço nem me conhecem. De certo modo, ao passar pelas ruas da minha vizinhança, eu sei quem não conheço. De vez em quando, sou assaltado por dúvidas ou estranheza a respeito de uma cara. Talvez porque a tenha visto muito frequentemente na minha vizinhança. A minha vizinhança é visitada por muitos estranhos a ela. Claro que, a certas horas do dia, é como se estivéssemos a ser visitados por automóveis e é como se não víssemos pessoas.

Ainda há pessoas. Quando ficamos cercados por automóveis, ficamos cercados por pessoas que não vimos. E elas também não olham para as pessoas daqui, porque vieram cheias de pressa ver qualquer outra coisa e anseiam ir embora para as suas vizinhanças. As nossas ruas mais frágeis ficam esburacadas em pouco tempo, pelo peso das pessoas que chegam e partem velozes. Quem manda na cidade, deve saber disso. Mas adia a reparação das ruas que não são as suas ou não são as ruas dos que têm poder para mandar nos que mandam fazer. Ainda há pessoas. Mas nas ruas da minha vizinhança, não há pessoa que tenha poder para mandar fazer. O único poder que resta à minha vizinhança é o de falar ou escrever a dar notícia.

Ainda há pessoas. Há políticos que são populares e reconhecidos pelas pessoas, porque as recebem, deixando que elas falem e dando a entender que as ouvem. Ainda há pessoas que esperam mais do falar do que a fala e esperam mais das pessoas com quem falam do que das nuvens a quem rezam. E que há mais desencontro que encontro em políticos que ouvem e falam sem tomar devida nota de coisa alguma, sem dar acção às palavras que ouvem e ainda menos às que falam. Ainda há pessoas que pesam as palavras que dizem e pesam as palavras que ouvem. Ainda há pessoas que sabem o peso do nada feito sobre o tudo nada dito.

Ainda há pessoas que (pres)sentem nas palavras ditas em infindáveis (des)encontros a maldade de quem pode estragar e adiar a vida dos outros como se a vida dos outros fosse coisa pouca. Ao mesmo tempo que, maldosamente, fingem uma simpatia sem limites de tempo para as dificuldades verdadeiras, engraxam e criam facilidades instantâneas aos grandes negócios e negociantes que não podem esperar.

Só que ... ainda há pessoas a achar que estes políticos são "estranhos" em qualquer lugar do mundo.

[o aveiro; 12/06/2008]

a oficina

o tempo todo a estudar matemática e lógica e disso só me sobrou uma melancólica dúvida quando escrevo.
hesito entre - disso, não sei nada!- e - disso , sei nada!

pelos olhos dos dedos

já não sei há quantos anos estava eu em Elvas e aceitei mais um que fui