a chave da porta de saída

Ainda há pessoas. Cada pessoa, na sua cidade, vive rodeada de pessoas. A cidade de cada pessoa é, em primeiro lugar, a sua vizinhança. Pelas ruas em que passo, há muitas pessoas que conheço e me reconhecem. Em alguns momentos do dia a dia, muitas mais há que não conheço nem me conhecem. De certo modo, ao passar pelas ruas da minha vizinhança, eu sei quem não conheço. De vez em quando, sou assaltado por dúvidas ou estranheza a respeito de uma cara. Talvez porque a tenha visto muito frequentemente na minha vizinhança. A minha vizinhança é visitada por muitos estranhos a ela. Claro que, a certas horas do dia, é como se estivéssemos a ser visitados por automóveis e é como se não víssemos pessoas.

Ainda há pessoas. Quando ficamos cercados por automóveis, ficamos cercados por pessoas que não vimos. E elas também não olham para as pessoas daqui, porque vieram cheias de pressa ver qualquer outra coisa e anseiam ir embora para as suas vizinhanças. As nossas ruas mais frágeis ficam esburacadas em pouco tempo, pelo peso das pessoas que chegam e partem velozes. Quem manda na cidade, deve saber disso. Mas adia a reparação das ruas que não são as suas ou não são as ruas dos que têm poder para mandar nos que mandam fazer. Ainda há pessoas. Mas nas ruas da minha vizinhança, não há pessoa que tenha poder para mandar fazer. O único poder que resta à minha vizinhança é o de falar ou escrever a dar notícia.

Ainda há pessoas. Há políticos que são populares e reconhecidos pelas pessoas, porque as recebem, deixando que elas falem e dando a entender que as ouvem. Ainda há pessoas que esperam mais do falar do que a fala e esperam mais das pessoas com quem falam do que das nuvens a quem rezam. E que há mais desencontro que encontro em políticos que ouvem e falam sem tomar devida nota de coisa alguma, sem dar acção às palavras que ouvem e ainda menos às que falam. Ainda há pessoas que pesam as palavras que dizem e pesam as palavras que ouvem. Ainda há pessoas que sabem o peso do nada feito sobre o tudo nada dito.

Ainda há pessoas que (pres)sentem nas palavras ditas em infindáveis (des)encontros a maldade de quem pode estragar e adiar a vida dos outros como se a vida dos outros fosse coisa pouca. Ao mesmo tempo que, maldosamente, fingem uma simpatia sem limites de tempo para as dificuldades verdadeiras, engraxam e criam facilidades instantâneas aos grandes negócios e negociantes que não podem esperar.

Só que ... ainda há pessoas a achar que estes políticos são "estranhos" em qualquer lugar do mundo.

[o aveiro; 12/06/2008]

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