Carnaval
1
Ao quadragésimo dia, Deus condoeu-se da chuva. Noé não podia esconder o seu estupor perante a novidade. As gotas caíam agora lentamente, cada uma com o seu pequeno pára-quedas.
E estes chuviscos pós-diluvianos tomaram o lugar das mantas de água. Ainda antes de parar de chover, já Noé tinha fechado o seu guarda chuva. Foi até às celas da Arca e soltou todos os animais. Por fim soltou os filhos e a mulher. E começou o carnaval.
2
Uma coruja voou contra a escuridão que cobria o espelho das águas. De repente, alguém acendeu uma luz e a coruja estampou-se. O rato que trazia nas garras caiu então na banheira em que Luva de Cozinha tomava o seu banho. Ao ver o rato, Luva de Cozinha saíu a correr pela casa, nua como Deus a deitou ao mundo. O que safou o rato foi o seu sangue frio de rato de cano de esgoto. Nadou até ao fundo, abriu o ralo da banheira e deixou-se levar na corrente. A coruja ainda lá está encostada à parede, com os olhos brilhantes mas cegos, cheiinha de sais de banho.
3
D. João II virou-se para Marramaque e ameaçou:
- Vou mandar-te para morreres sozinho como um cão no Poio do Judeu.
Marramaque tornou-se mais corcunda, mais anão e mais feio e disse imitando o rei:
- Vou mandar-te para morreres sozinho com um cão no Poio do Judeu.
Desatando a correr, como se fosse a fugir do rei, Marramaque foi estatelar-se no colo da dama de honor do casamento que ali estava a preparar-se. Deu um beijo no seio da dama, entretanto descoberto. E o rei acabou por lhe mandar com uma perna de porco nas trombas.
Meio combalido, Mamarraque meteu a perna de porco no saco e fugiu para Loures. Durante três dias reinou sobre aquela vila como D. Marramaque, o Bobo.
Quando D. João II descobriu, já Marramaque tinha embarcado numa nau para o Poio do Judeu. Lá o foi buscar D. João II, com um nó corredio ao pescoço. Quando viu o rei, Marramaque não viu outra exigência a fazer senão aquela do mundo às avessas nos três dias de Loures. O rei não podia aceitar, mas fê-lo par do reino e consultor civil da Causa Militar da Residência da Ré Pública. Marramaque passou a usar muita brilhantina, penteou as suas barbas e aos costumes disse cavaco.
4
Faz hoje anos que morreu seu avô - galhofava D. Rosa, equilibrada na perna direita enquanto com a esquerda coçava a sua orelha direita.
D. Maria I hesitava em perdoar aquele desaforo à sua boba. Mas D. Rosa já se sentava no leão de pedra e abria a sua boca desdentada para dela sairem bolas de sabão.
A raínha ainda correu para tentar agarrar a boba, mas esta, dando mostras de uma agilidade espantosa, já estava pendurada de cabeça para baixo e com as duas dobras das cortinas simulava o martírio do Duque de Aveiro. D. Maria I acabou por desatar a rir-se. O cronista não soube apurar a razão de tanta gargalhada real: as maluqueiras de D. Rosa e suas raquíticas pernas ao léu, ou as traquinices do seu avô brincando com o sol de pombal e de oeiras?
D. Rosa parecia que ia cair de cabeça. Mas deu uma cambalhota e caiu com a boca mesmo ao pé da orelha de D. Maria I e começou logo a cochichar. O cronista suspendeu a pena e a tremura nervosa apoderou-se dos seus lábios. Ele era o primeiro a não se esquecer do que tinha escrito às ordens do desterrado de Pombal.
5
Quando os estudantes cercaram o Arlequim, a mando da praxe, só pensavam pregar-lhe um susto e tirar-lhe aquela máscara negra que ele sempre usava.
Mas acabaram por exagerar, principalmente para vencer o terrível medo que se tinha apossado de Arlequim e lhe dava forças sobre-humanas. Quando Arlequim caiu finalmente, violentamente agredido, só o Rui Sérgio ficou a apoiá-lo. Da fenda aberta na porcelana da máscara negra de Arlequim, escapava-se um fio de sangue. Rui Sérgio tentou tirar a máscara de Arlequim. Não era propriamente uma máscara, verificou então. Era um rosto.
Enquanto chorava, com o coração destroçado, Rui Sérgio construia a sua máscara negra e aprendia todo o dialecto bergamasco. Quando abriu os olhos para a luz do sol, virou as costas às aulas e passou para dentro de la Commedia dell Arte.
6
Colombina traz a sua máscara negra e nela pregado o seu olhar de serviçal. Esconde-se atrás do anúncio, enquanto os dois rapazolas passam cuspindo pastilhas elásticas que ficam coladas no céu.
Colombina não sabe de que tem medo. Mas algumas notícias de que há quem persiga os que usam máscaras negras provocam-lhe calafrios quando se tem de deslocar pelo mundo dos personagens. Já pensou em tirar uma das máscaras brancas de um outro presonagem da Commedia, mas duas máscaras é demais.
Colombina chega finalmente à falésia altíssima. Atira-se para fora desta Commedia della vita. Abre as asas e fica a pairar. Quando finalmente abre os olhos para o público, percebe que já é uma personagem da Commedia dell Arte e fica tranquila.
7
Arlequim vestiu o seu fato de losangos de várias cores. Saltou do anúncio em que o querem prender e disse trinca e cinco palavrões no seu dialecto bergamasco. Afivelou a sua bela máscara negra, antes de sair para a rua e para o seu novo emprego. Arlequim já foi expulso de cinco empregos que tinha ganho por méritos próprios, porque não aceita tirar a sua máscara enquanto os outros também não tirarem as deles. Hoje, como é dia de Carnaval, Arlequim não será despedido no seu primeiro dia de trabalho.
8
Os professores não vão em Carnavais.
A professora levantou o dedo e apontou a porta da rua. O menino, mascarado de diabo, saiu da sala, balbuciando desculpas. A professora marcou a falta com tinta vermelha e registou qualquer coisa na caderneta.
Só depois disse: Meninos, hoje vamos representar o auto da barca do inferno.!
Rádio Independente de Aveiro, entre Janeiro a Julho de 1990.... (pelo carnaval que tudo nos merece:
textos escritos por Arsélio Martins para serem ditos por José António Moreira e ouvidos pelos que ouviram.)
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