em memória

quando o ar fica assim solto no ar em pedaços solto
e nós o vimos como vimos nuvens
mas sem cor
só o vimos porque é possível ver uma vibração
ver o ar que vibra no seio do ar quieto
ou pelo menos lento
capaz de resistir ao calor sufocante para o ar

ficamos a olhar
através do ar as densidades do ar

e vemos as caras de quem morreu
por estes dias

às vezes reconhecemos um poeta que gostámos tanto de ler
e é agora incapaz de nos contar a história
de novo
porque já não lemos do mesmo modo
ou já não lemos simplesmente porque sobrevivemos
e somos de outro tempo
onde se percebe agora que o olhar que demos
aos poetas que morreram sempre foi uma compaixão
que só pode ser dada aos vivos
e não resiste à morte

pois sempre posso dizer que morreram
os que li fascinado por não ter escrito aquelas linhas
que eram as únicas que queria escrever e já ali estavam
perante o meu olhar postas na mesa por outras mãos
e máquinas

pois sempre posso dizer que morreram
e agora que não voltam cabe-me a mim bordar a toalha da mesa
deixada assim como um pano cru sobre a mesa sem uma única palavra
desvendada
embora as palavras cubram toda a mesa de uma ponta à outra
se não as palavras as linhas as linhas da mão rasgadas pelo fio dos dias
de quem fiou o linho deste abandono de verão na casa velha

onde os talheres contam mais que as palavras para as mulheres que vagueiam
produzindo os sons os choques dos gumes das facas os toques dos pratos esbotenados
pelo tempo os toques dos guardanapos com monogramas de poetas mortos
que raspam a música nas argolas e se repetem quando a mulher indica o lugar
dispondo os guardanapos sobre a mesa ocupada por pratos e copos, facas, garfos e colheres
e só depois os guardanapos com o chamamento pelo nome de cada poeta
convocado para a mesa

os que morreram aborrecem a mulher pois têm de ser chamados repetidamente até se ouvir
alguém dizer já não está entre nós maria
passa a outro
se te lembrares do nome ou de algum verso que alguém tenha escrito em vez do seu póprio nome
de tal modo que seja o verso a ser lembrado em vez da cara

por ter os olhos demasiado claros não suportava a luz do sol e ficou escondido na sombra da nave
por ter os olhos demasiado escuros não há quem se lembre da cor dos seus olhos e que não se pode ver
e por isso sem nome
e há mesmo um poeta que anda por aí a voar no ar da sala grande

e para grande espanto dele ninguém o chama porque dele nem peso nem nome nem presença

as pessoas preferiam que o poeta tivesse morrido de morte natural por exemplo se tivesse afogado
a este fardo insuportável de saber sem aceitar que o poeta foi perdendo peso
à medida que ia perdendo os dias que lhe faltavam para a sua passagem aérea
a ar e fumo ou só fumo que viesse a ser a sua forma aérea
como nuvem
e forma de estar acima dos outros
persistente mania treinada em vida com palavras cordatas calmas e sossegadas sem acentos que as fizessem estalar o ar
como asas de anjo ternurento capaz de todos os enganos escondidos sob litros
de suave água de colónia

quem havia de dizer que ele tinha tomado banho em água de colónia
e que eram mentiras vergonhosas os seus poemas de banhos de amargura
e mal estar?

quem havia de saber disso?

por isso a mulher decidida punha a mesa e por ele não chamava e ninguém olhava para cima para os lustres da sala
onde empoleirado estava o poeta de que lera fascinado toda a obra
enquanto a juventude me abandonava dia após dia
por descobrir que o que escreveria estava escrito
irremediavelmente por alguém que viera antes de mim
e roubara das minhas mãos a verdade e a mentira
fingindo que elas erravam por aí à mão de semear ao alcance até de um romântico
de merda medíocre que nem mereceria mais tarde o chamamento pelo nome
para a mesa

os poetas nomeados em altiva voz pela mulher primam pela ausência
e é a mulher quem come um poema inteiro de carneiro sentada à cabeceira da mesa.

1 comentário:

© Maria Manuel disse...

gosto da hora em que sente ter de «bordar a toalha da mesa», Arsélio :)

que texto extraordinário!

as caras mais a cara do burro feliz