Assuntos de família - Cena 1-


"Assuntos de família".................... em 3 cenas (?)
Como mensagem em 01/082000 para os X
- (reencontrado agora que o frio aperta)-
tento lembrar-me, localizar-me e compreender-me nesse tempo



[ 01/08/2000 ]



[Cena 1]

Já é tarde e os bancos de pedra do miradouro estão húmidos e gelados. Os dois homens, viradas as costas para o vento, as golas levantadas e as mãos nos bolsos, falam alto. Não se atropelam nas falas, mas nenhum deles deixa de falar na primeira vírgula do outro. Uma mulher nua de pé e olhar absorto na linha dos monte de onde o vento frio vem, que aparenta uma calma isenta do frio que se pressente neles, escuta com uma atenção tão vigilante que mais parece ser ela um ponto para o diálogo dos dois homens que lhe viram as costas.

  • Nas pinturas acontece isso: Os homens estão bem agasalhados e as mulheres estão sempre nuas ou quase…
  • Também já me aconteceu ver uma fotografia de neblina gelada em que há dois homens de sobretudo e uma mulher jovem e bela prarticamente nua que os escuta…
  • Os homens têm frio…
  • Não deve ser só isso que provoca tais representações Talvez seja uma ideia sobre as muolheres que nunca têm frio. Talvez o esforço ou o exercício constante que fazem para manter a elegancia lhes aqueça o corpo ou lhes engane a mente…
  • Não sei…
  • Sei eu. A muolher que nos vigia também está nua e não mostra sinais de frio…
  • Podíamos virar-nos para ela e perguntar-lhe…
  • Podíamos…
  • Durante alguns momentos, os homens calam-se. A mulher parece preparar-se para voar dali, caso eles se virem para ela. quando a hesitação acaba, as personagens não se mexeram.

    • Não vale a pena virarmo-nos para a pergunta.
    • Tem razão. Se nos virássemos, concluiriamos que ela não existe. Ela não é mais do que uma imaginação do nosso poder.
    • Mas o poder dos homens imagina realmente
    • Sim estamos a vê-la mesm o que ela lá não esteja e vimo-la, melhor assim, sem defeito. E de qualquer modo, teríamos de ser nós a responder às nossas perguntas.
    • Não achas que ela podia responder com vantagem?
    • Claro que podia. Mas nós não queremos as respostas dela, pois não?
    • Se a imaginarmos, podemos criar uma mulher e os seus pensamentos, quando descrevemos a mulher e os seus pensamentos anrtes observada minuciosamente. Tem so assim um modelo, uma abstracção do facto em vez do facto ou, o que é o mesmo, podemos ter um mundo de factos vestidos num só fato
    • Essa minúcia na descrição da realidade é que é a ciência?
    • Não só a descrição interessa. É trabalho da língua bem formada o desenho das qualidades que as coisas são em vez das próprias coisas
    • Mas isso não é arte?
    • Não, não é. Passaríamos a artistas se fossemos capazes de desenhar a ideia fisicamente ou escukpíssemos uma coisa como respresentação física da ideia de mulher. A arte é eficaz. Arte seria também, claro, conseguirmos que um actor fosse a ideia em vez de ser ele mesmo.
    • Pelo que disseste atrás, o fazedor de moda é um cientsta.
    • Mais que isso. Ele cria não só o modelo da realidade, como impõe um modelo de desejo…
    • … para quem deseja e para quem quer ser desejado…
    • … e para isso, têm de ser artistas… ou ter artistas ao seu serviço… para desenhar e construir fisicamente muitas vezes não mais que a nudez de um outroa artista a que chamam modelo e que é o desejo, uma personagem em vez de ser ele mesmo.
    • Mas é cientista, porque de alguma forma interpreta senão a realidade ao menos alguma coisa que vai ser real pelas suas mãos. De certo modo, ele observa os fenómenos, interpreta-os, descobre a lei e, sonho dos sonhos de poder, não só prevê a realidade do futuro, como tem a presunção de a influenciar…
    • É, por isso que esses cientistas são tão internos ao sistema. De certa forma, eles desviam os sonhos para uma realidade futura de que dão os contornos antecipadamente nos seus … modelos prescritivos. São cientistas que ajudam a conformar, pelo menos em algumas coisas.
    • Outros farão o mesmo serviço para outras áreas…
    • Exactamente,
    • Mas não vamos falar dos casos concretos dos cientistas servidores dos sistemas. Essa é a chatice do nosso caso.
    • O caso mais interessante é o dos arquitectos. Em espcial, as vanguardas que não só constroem novas paisagens, como por via das suas obras arquitectónicas podem prescrever o fim das funções clássicas e humanas para as casas, equipamentos e utensílios e obrigar mudanças de comportamentos que são moldados para os novos equipamentos. Por exemplo, um arquitecto importante pode projectar uma igreja para a tornar numa babel de tal forma que a vantagem do oficiante não seja reproduzida inteligível por via das deformações - reverberaçõess sonoras? - ecos, etc. É claro que ao poder da igreja ou das igrejas e à sua perpetuação também serve a ininteligibilidade. Ainda me lembro das missas em latim na minha aldeia de camponeses iletrados. E, por isso, não posso saber se uma igreja ininteligível não será uma igreja mais verdadeira no que a palavra e a instituição têm de pior.
    • Também pode construir os bancos e ocupar de tal modo o espaço da nave central que os fiéis não se podem ajoelhar ou rojar-se sobre a terra
    • Ninguém sabe se isso é bom ou mau. Depende do ponto de vista. Se eu não concordar com a função tracdicional na igreja, louvo a coragem (ou a inépcia) do arquitecto. Se achar que as coisas devem ser para o que os públicos gostariam de manter, ataco a obra e o arquitecto. No entanto, a possibilidade de uma obra arrsa velhas necessidades e pode tentder a criar novas necessidades. Mesmo quando há rupturas aparentes, o sistema pode descansar - a mudança é provocada pela eficacidade da arte, por um objecto… e não pelas ideias.
    • Quer dizer que a mudança dos comportamentos provocada pela intermediação das coisas (mesmo que passem a sradas coisas) nunca é perigosa.
    • É mais ou menos isso. Perigosas são as ideias que não precisam da ciência nem da arte. A sua eficacidade tem a alma no caótico e nada é mais dramático para um sistema do qeu a falta de um suporte físico construído e a falta de controle e previsão.
    • Deixemos os arquitectos em paz. O que nos pode interessar é a arquitectura. E dessa é impossível falar.

    A lua começa a levantar-se sobre o abismo que é afinal para onde todos os miradouros dão. A mulher mantém-se impávida. Os homens calam-se.

    Não cai o pano. Levanta-se a neblina gelada. A luz da lua torna-se forte, embora branca. Os homens começam a tirar os casacos. E ouve-se um reboliço alegre de mulheres a aproximar-se.




    [Fim da cena 1]

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