perdidos de 1980:
lendo
o que não entendo
não vendo.
Só vendo.
…a coisa é séria por etapas
A coisa é séria -
Diz o homem debruçado
num buraco do cais.
A água verde azeitona
é também a cor dos seus olhos.
Na sua face líquida de lágrimas
nadam destroços de alma.
Tocaram a campainha.
(Ouvi a campainha
Quem é? Quem é?
Sou eu, talvez me tenha enganado doutor,
mas não se esqueça de dizer
à dona maria da luz
o que acabo de lhe dizer.)
Tinha enlouquecido.
Antes quando se via
Ao espelho da baía
e as lágrimas se confundiam
nas águas, pensava
em estudar direito
numa universidade europeia.
Quando me sentava na escadaria
Sentado na escadaria
olhava-me espelhado
no alcatrão luzidio
e era como se houvesse mar e baía
lá ao fundo da escadaria
ao chegar ao lodo.
Nada à superfície
Nadam à superfície
pelas ruas do cais
os destroços do meu rosto
e as minha sombras
passam sonâmbulas
pelas portas
Sonâmbulas
Sonâmbulas fazem vénias
e desculpe desculpe doutor
mas não se esqueça de dizer
à dona maria da luz
o que acabo de lhe dizer.
Está bem?
Está bem. Fique descansado
que a mim nada custa dizer
nada a ninguém.
…sede fiéis
Reconhecei oh dogmáticos sinceramente que a urgência
Com que manejais a ansiedade
Vos ilude mas vos prepara para a eternidade
Cercai-vos de muralhas altas
Ainda mais altas que o voo dos pardais
Para que não vos acordem mais
Cercai-vos de ilusões e escrevei-as em lindas frases
Como se fossem novas e decisivos mandamentos
Para que não preciseis de mais pensamentos
Adorai-vos, exaltai do vosso legítimo orgulho
Vós que vos descobristes aliás com barulho
Que a cabeça do povo é o vosso bandulho
Fortalecei a vossa crença, benzei-a
Pedi ao vosso CC cume altíssimo sabedoria
Que escreva em letras de fogo a liturgia
Expulsai o vosso seio, da vossa prenda
Tudo o que seja sinal de desavença
E até à última geração os sinais de descrença.
Sede fiéis.
… ilha desencantada
Aqui quando faz bom tempo podemos ir pescar
À linha
o céu está quieto e brilhante como o mar
pescamos o sol pela tardinha
Aqui às vezes deparamos com deus
Atrás de uma escrivaninha
Cumprimentamos: como vai? Como vão os seus?
E já ele se escondeu numa entrelinha.
Aqui há um sossego quente no ar
Um silêncio quebrado um assobio
Nas águas paradas e doces do mar
Nada de costas um navio
Vivemos numa ilha do vento
Uma vassoura enorme
Varre de norte a sul incansável
A areia levantada do seu túmulo
A areia morta passeia pelo ar
E fustiga quem se aventura
Pelos corredores da ilha
Entre as casas de pálpebras fechadas.
…Crepúsculo
Nós, os velhos
Amamos das noites os crepúsculos
As alvoradas veem-nos de joelhos
Com dores de ferrugem nas dobras dos músculos
Nós os antigos
Preferimos a angústia amarela
Do sol morto e odiamos a janela
Preferimos o mundo reduzido dos postigos
Nós
Preferimos a completa noite
O invisível caído como um açoite
Enquanto ficamos mais sós
Nós
… círculos
Habituavam-se as aves à gaiola
E os peixes coloridos aos aquários
Habituavam-se os pedintes à esmola
E os operários aos salários.
Habitavam bairros inteiros
Figuras destacáveis de cartão
Que quitavam a solidão
Com gratuitos fogareiros
Desenhados a carvão.
Pela madrugada nevoenta dos escarros
rodavam pelas circulares do destino
Autocarros
Desatino ao desatino
Quando as sirenes fabris uivavam
Os autocarros tropeçavam
Às portas por onde entravam
Sem rosto pernas mortas
De operários de desgosto.
E tudo se repetia
Maquinalmente
Cada dia mais mais se esfria
A máquina da gente.
……de solidão
Há homens que o não são
Que são bolsas de pedras na mão
pontaria feita à humanidade
São uma manada de cães ladrando aos homens
que o são
Açulados por febres de classe alta
Atiçados pela inteligência que lhes falta
pelo medo cão.
Nas grandes capitais dos homens que o não são
Que deixaram de ser o que não é programado
Para a sua condição
Descem ao mundo povoado.
Para que os reconheçam trazem sorriso rebuçado
Desprezo programado
Olfacto apurado
E cueiro de alma desinfectado.
São pagos a ouro
E têm na algum tesouro
Que tudo merecem até um bom agoiro
Porque sem eles coitado do moiro
Coitado do preto coitada da preta
Que não saberia dar aos filho em chupeta
Em vez do leite da teta
Nem usaria inoxidável a grilheta.
Veem do benelux
Com os respectivos lux-sabonetes
Trazem suas bebidas e comidas de luxo
Em latas assépticas trazem salmonetes
E chicletes
Vêm de paris
E de Lisboa
Senhores do seu nariz
“numa boa”
Vêm
O pior é que vêm.
aniadversário de professor
- Qual é a sua opinião sobre o regulamento?
- Levanto-me para gritar, para cantar;
à luz reflectida na baía levanto uma flor como emblema.
Proponho antes outro tema:
em vez do regulamento, a alegria.
- Senhor Professor, não lhe pedi alternativa
para esta discussão,
só lhe pedi uma crítica construtiva
para o regulamento da organização.
- Que me desculpe o camarada,
mas eu, de regulamentos sei nada.
Mas ainda assim, proponho
que do regimento com força de lei,
faça parte o direito de gozar a vida
e a arte das carícias do vento
e que seja incentivado o deslizar
do pensamento
que ele se possa dispersar
numa flor, no silêncio e na voz deste poema;
que se possa e deva conversar
para descanso, por alegria, e sem tema. - Senhor professor, está a desviar-nos do assunto da agenda.
- Eu só quero conversar,
“serrar presunto”
que a minha conversa faz parte da lenda:
Quando nasceu o primeiro homem e começou
a falar por falar inventou nesse exercício fútil
o lobisomem para ter uma sombra para ser
par. A felicidade é o homem e o seu
lobo, é a propriedade e o roubo, é a luta de
línguas contrárias e uma unidade de ideias
adversárias.
O avô do homem era um lérias:
Deus conversava sozinho, até sozinho
inventava na ponta da língua o caminho das
coisas mais sérias. Diz a lenda das escrituras
que Deus andava à solta pelo céu e a
terra era a sua aventura, uma ideia livre que lhe
caiu do chapéu.
E diz, outra vez a escritura,
que foi o homem quem
inventou a censura.
- Senhor Professor, peço-lhe que tenha paciência
e chamo-lhe a atenção:
aqui somos homens de ciência
e queremos regulamentar tudo e até a paixão.
- Que seja reconhecido o direito ao erro,
até desse erro em que cai a ciência de, em nome do homem,
lhe cavar o enterro
para, em seguida, lhe pedir paciência.
Eu só quero conversar sobre a liberdade do ar.
Eu só me quero resgatar
do tempo de tanto tempo que perdi a organizar
em nome da felicidade e da natureza
que algumas coisas há
que já só há em ficheiro:
como o ar, como a volúpia, como a beleza…
Eu só quero despejar da alma as palavras ao ar e ficar a vê-las voar.
- Senhor Professor, mais uma vez lhe digo que não lhe permito…
- Que do seu regulamento, meu amigo, eu faça
um mito.
Mas deixe-me desenvolver outra mitologia,
falar como quem fala para o seu
umbigo, sem me preocupar com signos, com
semiologia; deixá-las só elas as palavras
compreender o que digo. Falo por falar
com as palavras que me não deixam calar. - Senhor Professor, estamos a perder tempo e isto não é um passatempo.
- Eu sei que sou um contratempo; a minha
paisagem é um quadro pintado de azul claro,
de verde , de cores frias… - Senhor Professor, dou o nosso encontro por acabado que não estamos para aturar as suas manias.
Eu farei o regulamento necessário que dele depende o meu salário.
- Obrigado, obrigado por esta prenda de aniversário de ficar a saber...
… da noite
Dorme meu amor
Embrulha-te na escuridão,
Protectora da noite, nela imersa
Pelo meu lado, agarro-me a um clarão
e rasgo-me em vários para uma conversa.
Dorme meu amor
Crisálida de noite liberdade
Pela manhã ao sol brilhante borboleta de ar
Pelo meu lado esfaqueio a cidade
Rua a rua veia a veia para me sangrar..
(ás vezes conto as batalhas perdidas
As ganhas contam-se pelos dedos
Assinalá-los-ás por épocas por vidas
Por amores por sonhos por medos)
Mas dorme meu amor
Tranquila a esperança é amanhã
Hoje foi só uma dura passagem
pelo meu lado urdo uma via sacra em teia de lã
a quente, bordada na minha alma a vida via viagem
(ás vezes canto pelas esquinas
Uma desdita maior do que a minha
Pelo mesmo preço ainda canto duas sinas
A minha bem triste e a da pobrezinha)
Dorme meu amor
Nas dobras da noite da solidão
Da minha ausência
Pelo meu lado carrego os erros numa canção
Numa vibração da voz um cristal de demência.
Dorme meu amor dorme
Meu amor melhor meu sonho eu feminino
Não te arrepies quando regresso neste destino
De mim sobrou só este poema conforme.
S. Tomé, princípio de 1980
© Arsélio Martins, professor só... logo após.....
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