Ainda eu não tinha os dentes todos

ainda eu não tinha os dentes todos
e já comia a dureza dos teus ossos
com vagar arrastando um grão pelos lodos
neles enterrados os pés que são nossos




            ,
            
            

... as escrituras

Fernando J. Pereira - 1989

As máquinas úteis são as máquinas que funcionam

O pintor pintou as cores tal como elas são antes dos desmaios. Foram elas que montaram os cavalos e vestiram os excessivos homens-
Pompeia esticou a corda que vai de um olho ao ouvido de Pompeia. Para ela se iça um belo acrobata. Quando Pompeia aplaude, distrai.  E o acrobata cai numa poça de sangue  do coração de Pompeia.
Pompeia desata a corda de olho ao ouvido, desmontar o seu circo e espera que o vulcão de tanto amor faça uma estátua com futuro.

Não há outras cores.

O mesmo pintor tem duas vidas:  a de olhar e ver e a de devolver o olhar: Uma não condiz com o olhar do Fernando. A outra é a secreta gaveta  da mesa em cruz da sua sagrada paixão. Aos pés da cruz, ela a cor virgem e mãe solteira das cores.
São as cores que vestem o dorso das máquinas e ferramentas. Um mecanismo de relógio veste-se para bater em retirada deste tempo de chuva  que apodrece o azul da noite. A cabeleira molhada do pincel azul abriga-se e pinta  de azul de água as paredes da oficina.
Vêem-se girar os grandes rodízios. Os rodízios amam e temem as correias de transmissão não se sabe de que roda motriz.
Aquecem os rodízios. À sua volta há cores quentes. A correia, o cabo e o tubo passam pelo banho de azul da noite para não arderem. As lâmpadas e também os faróis e também o dia têm ombros de porcelana e aparecem suavemente voando do lado de fora para dentro de fora. A noite voa contra a luz e o Fernando esconde-se. Quando há paredes para romper vêem-se os pés rosados do Fernando. Quando  as paredes ocupam todo o espaço e pode acontecer, vê-se o homem levitando. Quando o dia se esquece dos homens, o azul escuro ocupa todo o espaço e pode acontecer que uma lâmpada cante no chuveiro, por um instante, antes de se fundir com a noite.

Olhei para as máquinas. Têm ferrugem.
Uma mão de homem, um pincel espetado nos tímpanos da noite e um cantor lancinante da lâmpada suicida completam o quadro. Os quadros dos temporais.

Posso garantir que quando olhei para ver vi que as máquinas funcionam e que se ouve a música  voando por sobre o barulho das  roldanas que puxam a noite para dentro do homem.

Gosto dos milagres do Fernando. Pompeia fê-lo acrobata. Aqui se expõe na corda esticada entre os dois mastros  -  pincéis varrendo o céu.


Ao mestre pintor Fernando J. Pereira para a Exposição de pintura na Galeria  de Arte Augusto Gomes - Matosinhos, Janeiro  de 1989.

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