animaçal
Tive um animal de estimação com quem valia a pena falar sem dizer uma palavra. O melhor dia antes de o perder de vista foi quando ele percebeu que eu o ia fotografar para nunca mais o perder de vista.
se sei a cor do tempo que faz
A cor do tempo que faz
Ainda se lembrava da cor do seu tempo. Quando nos encontrávamos acidentalmente ele soltava a língua para me dizer o mesmo de sempre: sei muito bem a cor do meu tempo.
Eu não sabia como continuar uma conversa que assim começava mas não me ia embora sem dizer alguma frase de circunstância para dentro, muito baixinho dentro da minha cabeça para ninguém ouvir. A minha avó tinha dito para eu dizer isso quando me visse a braços com um encontro das palavras sei muito bem a cor do meu tempo. Também me disse que não movesse a boca ao dizer, mesmo que fosse muito baixinho, alguma frase de circunstância, e eu assim fazia sempre para não ser mal interpretado que, acrescentava a minha avó, era preciso que não se ouvisse o que eu pudesse dizer.
Um dia, sem precisar de apoio para a coragem de falar em alta voz, em resposta à frase sei muito bem a cor do meu tempo informei-o calmamente morreu a minha avó que penso ter conhecido por saber como ela o considerava e o conhecia muito bem a ponto de ser ela quem me ensinou a ouvi-lo sem lhe dirigir qualquer palavra que se ouvisse quando lhe respondesse.
E ele respondeu: sei muito bem a cor do meu tempo.
vermelho do meu sangue
E neste ano, para agradar à falecida avó e aos reis magros e frugais, deparou-se com a obrigação de ser o que nasce para morrer pouco depois na cruz prevista para a sua morte. E, só tarde, percebeu que estava metido em trabalhos tais como ser chamado em cada ano para representar o que nasce. Em resposta a um murmúrio da multidão que se juntara para a missa do galo e, já preso na cruz, ele gritou em voz baixa Se é bom? Para mim será bom ver outro aqui no próximo ano o que levantou o galhofar da multidão até às lágrimas de tanto rir. Na festa da quaresma, porque não se fala de outra coisa, até as crianças sabem bem que é sempre o mesmo a gramar com os espirros da vaca, o frio do ninho de natal e os pregos da cruz até à páscoa em cada ano. Só ao neto da falecida avó é que nunca disseram que ela tinha deixado uma boa maquia para garantir que, após a sua morte, em cada ano, na sua terra, o seu neto fará a tempo inteiro as vezes do cristo todo o tempo desde o natal à páscoa.E todos os anos até à grande final no ano em que o seu amigo Judas trinque a última daquelas trinta moedas que a sua avó queria ver trincadas, uma por ano, que ganhara ao jogo de resistir a pôr no prego.
A coroa de espinhos
A coroa de espinhos Não é muito raro uma mulher ser enfeitada ou enjeitada. E é mais raro ainda encontrar uma mulher que não use ou não tenha usado uma coroa de espinhos, pelo menos uma vez na vida. Para que os homens da vida de uma mulher sejam considerados porcos espinhos têm de dar a saber serem capazes de morrer em vida por amor enquanto brincam com as suas vítimas ao fura orelhas ou narinas em troca de brincos pendentes, escravas, anéis e colares de ouro. As suas vítimas são as vítimas mais amorosas que amantes e mais arranhadas que amadas. Quando isso acontece pela aldeia na quaresma de toda a gente, não há quem estranhe as feridas fáceis e faciais da vizinha sempre que esta sai a passear de braço dado com o seu namorado ou esposo e vai enfeitada com a coroa de espinhos de um porco espinho, como um véu de quem não pode andar de cabeça ao léu.
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