que cortas tu, que cortarei eu?

ao passar pela janela do diabo
não deixo de espreitar

não não é  para lhe ver o rabo
mas para ver como lho hei-de  eu cortar

cavaqueira (recuperada por um anónimo)

um.
dona maria é quem te faz a cama
que ela agora é de todos a primeira dama
chefe de família sussurrante de uma gaguez
própria para presidentes da pequenez

dois.
só há figurões atrás do teu andor
como atrás dos santos noutros tempos o regedor
usar asas de anjo na tua idade é que me enjoa
não soubéssemos nós que nos vens roubar a broa

três.
deram-te as jóias da família e até um jazigo novo
para que possas enterrar ainda mais o país e o povo
a ti que pausas nas vírgulas para economizar alguns ditos
que não ouça o povo de bordalo o teu medo de manguitos

quatro.
deram-te votos as administrações dos bancos e das capelas
no mosteiro cultural do teu regime de anorético à base de balelas
a ti que fizeste votos de seca santidade para um país de crentes:

aos miseráveis salafrários os salários mínimos cortarás rentes!

cinco.
toma cuidado toma cuidado toma cuidado toma cuidado
que este país não é casa só de chocas há também outro gado
que nem é bravo mas está cansado e se desesperado
pode invadir a retrete do palácio para a deixar em tal  estado

que se pareça com a merda do estado a que chegou a gente
enquanto ias passadeira fora... de ministro a presidente

outono

velho soneto de caca e asas

Casei-me também para ter uma viúva capaz
de me ver voar sem asas como labareda no forno
ou como voa o fumo ao sair da alta chaminé
ou como voa a cinza no cume da liberdade

de qualquer monte ventoso ou à porta de casa
em certos dias de cabeça perdida e vento irrequieto
a desmanchar perucas a levantar saias e a despedir
chapéus para as retretes públicas dos cães.

Outros animais de estimação como eu sem asas
e também as crianças deixaram de brincar à solta
nas ruas e ex-jardins públicos privadas a céu aberto

mas mesmo sabendo eu que o fumo da minha carne
e a cinza dos meus ossos vão cair em montes de caca
a minha esperança de voar sem asas permanece intacta.

aqui nesta soleira de luz

senta-te meu amor aqui nesta soleira
e deixa que luz grave na palma da minha mão
de  ti uma imagem que sejas tu na escuridão

que não saiba eu se é tua a ausência ou minha a cegueira

más caras

os ministros

à ordem de fogo os ministros do meu país
já não soletram o costume dos disparates:
disparam  da sua ordem mais unida rajadas  de dislates
em sequências de porcaria  pelos canos serrados do nariz.

a vida inteira

a vida inteira
fora eu a esperar-te
em carne viva numa esquina de ruas
como uma carícia aérea  fossem só tuas
a ternura  e a febre de olhar-te
a vida inteira
estendesses a mão até quase tocar-me
sem te afastares mais que um dedo
para que a tua vida virasse o segredo
da ansiedade do teu olhar a desejar-me
a vida inteira
fosse só o instante mais que perfeito
que se recordasse mesmo no imperfeito
a vida inteira

escola interior

olhava-te jardim de uma escola interior
o que via era só uma flor de ferro em brasa
chama quente de me sentir em minha casa

sabendo desde ontem que podia ter sido bem pior

cegueira

neste caso não fui eu quem te fez o altar
que já lá estavas quando ceguei à luz armada

a teus pés de joelhos tremendo humilhada
a minha alma suicida sem saber  a quem rezar

a noite

a noite divide-se em ruas
aliás também a manhã e a tarde e as luas
ou como a vida onde ainda moras
e por onde passo a passo passam as horas

e há instantes em que acontece
visitar-te como quem vem  desaparecer
feito esquina que em teu tempo arrefece
ou gutural canto à falta de palavras por dizer

em nome da obra de deus

se deus não existe não tem culpa

mas dos maiores ladrões
se diz que se tanto roubaram
foi por mor das obras de deus

e a prova está na falta de desmentidos
do reino dos céus.

têm razão para ter medo

não foi um fio de pensamento do presente
nem foi um erro de cálculo  de boa gente

que nos trouxe até aqui e até à miséria

material
e moral

apesar da muita lata e da muita léria
sabemos todos que o que nos falta a todos  foi roubado
por conhecidos ladrões  com nome e apelido

ainda a roubar em reformas e pensões
até aviões e legiões
de dezenas de guarda costas  por cada um dos milhões

dando prova de que se encheram de dinheiro e de medo
em segredo

e chegados aqui
melhor que ninguém eles sabem:
há quem pense em casacos feitos dos seus coiros
para sobreviver ao frio deste próximo inverno
neste inferno.

um dia destes

um dia destes vou ver-te saltar à corda
os amigos servem para isso e pouco mais
admirar habilidades naturais como saltar
se tornam humanas nos nossos amigos

que treinam tão intensamente o salto
à corda como o salto à vara ou o assalto
à mão armada ou o assalto de consciência
ou a ciência aplicada ao amor e às relações

sociais também são os sócios no capital
os meus amigos do alheio sei lá eu qual
quase tudo o que vejo me é alheio agora

como o teu assalto à distância o remoto mergulho
em suor humano treinando o frio de cada músculo
por cada presente cruel  e do futuro como causa.

desenhar farrapos

mataram-me o passado de que valia a pena cuidar
como se cuidasse um porco com abóbora couve e farelo
sobra-me a memória da lâmina da faca de cabo amarelo
com restos de sangue seco de passado ido a sangrar

agora bem me levanto a puxar a cortina para ver que dantes
nada há que me lembre a não ser o gesto diário de lavar
os dentes que sei ter sido um gesto antes sem ser lembrar
mas como uma certeza sobre os maquinismos dos instantes

cruzam-se comigo todos os dias ou sou eu que hoje vos vejo
como um reflexo de cada dia anterior em meu liso espelho
de porta do guarda roupa que dá para a rua onde moro

ou sou eu que acordo para acenar  e soprar da mão o beijo
sem sair do quarto  embora me agite vida de besouro velho
desenhando farrapos de tempo sem ver porque neles  demoro.

despedida

fica a saudade do pão do "the caffé" e dos quintais por ali mesmo por detrás dos prédios da avenida, onde se pode rezar a qualquer deus, em paz, se não houver "derby" por perto.

despedida

despedida

despedida

despedida

despedida

despedida

despedida

despedida

foi uma honra ter servido consigo! disse eu, quando chegámos ao pé do carro dela.
na despedida, antes de entrar no carro, ela disse: porta-te bem!
e eu continuei o caminho,  para me ir despedir dos meus secretos quintais da avenida.


despedida

já de saída, passámos por exposições de fotografias e já cá fora por esculturas, pelo pantera...
continuo sem entrar num estádio, mas estive lá... muito perto.

despedida

estivemos lá e eu comi chocos com tinta lavada com cerveja.

despedida

enganámo-nos. andámos para cá e para lá e chegámos ao outro lado. e, invejoso,  tirei a fotografia que ela tirou.

despedida

nem sempre sabemos de quem nos despedimos quando nos despedimos. só hoje me despedi de uma observação de há dois anos atrás sobre a catedral que dali se via. dali, onde hoje se acotovelam algumas fumadoras para a fotografia
catedral? qual catedral? perguntei então. até que, hoje, passados dois anos, ...

lá do cimo eu bem lhe disse: 
não se vai ver.  
ela retorquiu: 
eu sei quem lá estava (e nos viu partir voando - devia ter dito deve ter pensado).
acrescentando desconfiada: 
achas mesmo que por aqui se chega à catedral?
eu devia ter dito:
-e eu é que sei?

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