passado a pente fino

Sobre a morte da edição de poesia portuguesa

Na coluna "Ao pé da letra (Actual. Expresso, de 21 de Novembro),  António Guerreiro denunciou:


Vasco Teixeira, responsável editorial pela Porto Editora, o maior grupo editorial português, fez as contas e concluiu: "Se me perguntar se daqui a dez anos ainda se edita poesia em Portugal, dir-lhe-ei que não. Quando muito, teremos algumas edições artesanais(...). E haverá mercado para isso. Para o tipo que faz uma edição de 30 ou 50 exemplares que os amantes de poesia comprarão." Em 1989, um grande poeta e ensaísta alemão, Hans Magnus Enzensberger, também tinha feito as suas contas (a matemática não é uma ciência que lhe seja estranha) e chegara a um número muito mais rigoroso do que o do empresário português: mais ou menos 1354. E como tentava demonstrar que esse número era uma constante universal, para todas as comunidades linguísticas e em todos os tempos, chamou-lhe a "constante de Enzensberger". O escritor alemão explicava esta constante através desta anomalia: é impossível transformar poemas em dinheiro. Sempre assim foi e sempre assim será. Menos dado à Matemática, Vasco Teixeira formula sua constante não em termos de valor numérico (há um intervalo demasiado grande entre os dois números que avança no seu prognóstico) mas em termos de lei económica: a lei do mercado não admite anomalias. A constante dita de Vasco Teixeira pode invalidar a constante dita de Enzensberger por uma razão fraudulenta: quem detém um tão grande grupo editorial e também a maior rede de livrarias do país (a Bertrand) tem algum poder para fazer com que a sua profecia se realize, para que ela seja uma self-fulfilling prophecy. Mas sabendo nós que anteriores mortes anunciadas foram uma falsa notícia, talvez a constante dita de Vasco Teixeira admita as suas exceções e as espécies minoritárias sobrevivam em microclimas. Vamos então suspeitar da constante dita de Vasco Teixeira: "30 ou 50" não é afirmação de ciência certa. 



Os professores, mais do que ninguém, devem guardar estas denúncias na memória, ou melhor, devem guardar na memória as declarações dos responsáveis editoriais.

que cortas tu, que cortarei eu?

ao passar pela janela do diabo
não deixo de espreitar

não não é  para lhe ver o rabo
mas para ver como lho hei-de  eu cortar

cavaqueira (recuperada por um anónimo)

um.
dona maria é quem te faz a cama
que ela agora é de todos a primeira dama
chefe de família sussurrante de uma gaguez
própria para presidentes da pequenez

dois.
só há figurões atrás do teu andor
como atrás dos santos noutros tempos o regedor
usar asas de anjo na tua idade é que me enjoa
não soubéssemos nós que nos vens roubar a broa

três.
deram-te as jóias da família e até um jazigo novo
para que possas enterrar ainda mais o país e o povo
a ti que pausas nas vírgulas para economizar alguns ditos
que não ouça o povo de bordalo o teu medo de manguitos

quatro.
deram-te votos as administrações dos bancos e das capelas
no mosteiro cultural do teu regime de anorético à base de balelas
a ti que fizeste votos de seca santidade para um país de crentes:

aos miseráveis salafrários os salários mínimos cortarás rentes!

cinco.
toma cuidado toma cuidado toma cuidado toma cuidado
que este país não é casa só de chocas há também outro gado
que nem é bravo mas está cansado e se desesperado
pode invadir a retrete do palácio para a deixar em tal  estado

que se pareça com a merda do estado a que chegou a gente
enquanto ias passadeira fora... de ministro a presidente

outono

velho soneto de caca e asas

Casei-me também para ter uma viúva capaz
de me ver voar sem asas como labareda no forno
ou como voa o fumo ao sair da alta chaminé
ou como voa a cinza no cume da liberdade

de qualquer monte ventoso ou à porta de casa
em certos dias de cabeça perdida e vento irrequieto
a desmanchar perucas a levantar saias e a despedir
chapéus para as retretes públicas dos cães.

Outros animais de estimação como eu sem asas
e também as crianças deixaram de brincar à solta
nas ruas e ex-jardins públicos privadas a céu aberto

mas mesmo sabendo eu que o fumo da minha carne
e a cinza dos meus ossos vão cair em montes de caca
a minha esperança de voar sem asas permanece intacta.

aqui nesta soleira de luz

senta-te meu amor aqui nesta soleira
e deixa que luz grave na palma da minha mão
de  ti uma imagem que sejas tu na escuridão

que não saiba eu se é tua a ausência ou minha a cegueira

más caras

os ministros

à ordem de fogo os ministros do meu país
já não soletram o costume dos disparates:
disparam  da sua ordem mais unida rajadas  de dislates
em sequências de porcaria  pelos canos serrados do nariz.

a vida inteira

a vida inteira
fora eu a esperar-te
em carne viva numa esquina de ruas
como uma carícia aérea  fossem só tuas
a ternura  e a febre de olhar-te
a vida inteira
estendesses a mão até quase tocar-me
sem te afastares mais que um dedo
para que a tua vida virasse o segredo
da ansiedade do teu olhar a desejar-me
a vida inteira
fosse só o instante mais que perfeito
que se recordasse mesmo no imperfeito
a vida inteira

escola interior

olhava-te jardim de uma escola interior
o que via era só uma flor de ferro em brasa
chama quente de me sentir em minha casa

sabendo desde ontem que podia ter sido bem pior

cegueira

neste caso não fui eu quem te fez o altar
que já lá estavas quando ceguei à luz armada

a teus pés de joelhos tremendo humilhada
a minha alma suicida sem saber  a quem rezar

a noite

a noite divide-se em ruas
aliás também a manhã e a tarde e as luas
ou como a vida onde ainda moras
e por onde passo a passo passam as horas

e há instantes em que acontece
visitar-te como quem vem  desaparecer
feito esquina que em teu tempo arrefece
ou gutural canto à falta de palavras por dizer

em nome da obra de deus

se deus não existe não tem culpa

mas dos maiores ladrões
se diz que se tanto roubaram
foi por mor das obras de deus

e a prova está na falta de desmentidos
do reino dos céus.

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