a primitiva casa:





1. em memória do poeta de aldeia



é verdade que não lembra as datas em que morreram
(como poderia lembrar-se da data em que nasceram?
se ainda não tinha nascido)
nem pode recordar a nitidez das pessoas e dos locais que descreve
porque não vivia no tempo em que deram as caras ou as varandas
à luz do so que os tisnava para ganharem a cor para ganharem a cor
que os seus olhos viram depois
ao avizinhar-se de todos eles
como se fosse o estranho da famíia
que vai a enterrrar num antigo curral de porco.





2. sobre raimundo, o poeta



Raimundo é um poeta de má memória.

Pensa-se que nasceu na região daveiro, mais
propriamente num lugar conhecido por trásdamoita
ou lagoachorida, da actual freguesia de santandré a
concelhosvagos.
Não se conhece a data de nascimento ao certo, mas
pensa-se que morre em dezembro de todos os anos. Dele
se sabe que nunca quis aprender a escrever e muito menos
a ler, mas que frequentou a escola primária pública da
sua aldeia, assim como frequentou a catequese e fez a
primeira comunhão.
Há quem diga que fez o crisma e escolheu élio martins
para segundo nome.
Os seus escritos dispersos e considerados obras sem
qualquer interesse ou importância têm vindo a ser desenterrados
por um obscuro professor de matemática do ensino secundário
que dá pelo nome do arsélio. Arsélio martins
afirma que descobre os papéis de raimundo na estrumeira
do pátio da casa onde nasceu e não cresceu.
Durante vários anos, o pequeno martins, até um homem sem
energia e sem grandes convicções, ou pelo menos pouco
dado a valorizar o seu trabalho, publicou em alguns
suplementos de jornais e revistas, ao sabor da sua
desorganização mental, alguns dos textos que recupera da
da estrumeira da sua vida. Muitos dos textos estão de tal
modo tratados e acrescentados (até pela inserção de
dados que não podem ser do conhecimento de raimundo) que
não podem deixar de se considerar completamente
reinventados pelo profesor de matemática.
Da mesma estrumeira, arsélio pequeno retirou a maior
parte da sua cultura. Sabe-se que, sendo homem de
várias leituras, o actual professor obscuro começou por
ler obras carregadas de ateísmo e cientismo escritos
obscuros de um seu avô, velho regressado da américa do
norte onde tinha permanecido durante trinta e cinco anos
sem ter dado notícias.
Do mesmo modo leu obras de autores brasileiros que
enchiam uma arca enviada do brasil pelo seu pai a
acompanhar promessas de regresso que nunca se chegaram a
cumprir. O rasto desses volumes perde-se nas
estrumeiras do seu pátio, que foi, muitos anos depois,
um pátio cimentado onde se guardou um fiat 127.
Hoje, a confusão é total a respeito da autoria da maior parte
dos escritos. Ninguém pode dizer onde começa e acaba a obra
de raimundo; muito do que aqui se divulga pode ser coisa escrita
por arsélio martins que a sua imaginação doentia e supersticiosa
atribuiora a raimundo ora à assombração de raimundo. Seja
o que for, é aqui e em mais nenhuma memória.





3. a felis disse-me: o meu home há-de morrer cedo



a felis disse-me: o meu homem há-de morrer cedo
mas o teu irmão vai para a tropa e morre ainda mais cedo

a felis disse-me: o meu homem há-de morrer cedo
os meus filhos esses hão-de partir para a venezuela ainda
crianças que já não tenho nem leite nem lágrimas estou seca
até chego a pensar que já não tenho sangue

quando me corto com a foicinha a apanhar erva fico convencida
que não vai pingar sangue nenhum eu dava-te um conselho
convence o teu irmão a ir ter com o teu pai ao brasil
pode ser até que estando lá ele convença um dia o velho
a voltar para a família ou a fugir prá frança mais perto afinal.

ainda hoje passados tantos anos penso que a felis
a falar como coração é melhor a acertar
que a bruxa da carregosa que fala com a voz da razão
e da ciência dos espíritos.





4. mas no tempo em que ela me falou pela últma vez




Mas no tempo em que ela me falou pela última vez
nunca me passou pela cabeça que um irmão meu
pudesse matar e morrer a não ser por desgraça.

andávamos sempre à purrada.
hoje penso que éramos assim violentos e briguentos
porque não conheciamos outra forma de jogar o tempo e de fazer
exercício que desse saída à força física e à inteligência.

porque era nas brigas que aplicávamos toda a maldade
e que era essa maldade senão inteligência?
talvez brigássemos porque os contactos físicos e os abraços
não eram bem vistos de qualquer outra forma
eram uma vergonha.
se calhar brigar era abraçar o amigo de uma forma mais apertada
se calhar o senhor padre manel sabia isso como eu agora sei
e por isso quando confessava uma briga que ele tinha visto
ele aconselhava a que me afastasse dos maus pensamentos

será que nós mordíamos quando queríamos beijar-nos?





5. já tinha começado a guerra em angola quando




já tinha começado a guerra em angola quando a aldeia
teve luz eléctrica apesar de estar nas bermas
da estrada nacional 119
um castigo foi o que foi que
a luz tornou tudo mais claro até o que devia
estar escuro ou no mistério.


fora a estrada nacional era só canminhos de carro de bois
e a estrada estreita para sanromão toda esburacada à passagem
dos camiões que arrancavam o barrro às encostas da monteira.

durante muito tempo aquelas terras deram cardo e erva rasteira
que servia para as camas do gado que também era bem precisa.
quando o ti conde começou a comprar aqueles barros todos
pensou-se que era para criar erva e criar gado.


como imaginar que venderia a terra em vez do que a terra dava?
se eu passava por aquelas covas onde antes era nosso barro
preso nos moldes e cozido em fornoda cerâmica
tinha a impressão que ali ao lado do pequeno cemitério
o ti zé onde
mandara abrir uma cova para enterrar a aldeia inteira.
dei comigo a cismar que não ficaria sem castigo aquele sortilégio.
de desventrar a terra sem ser para procurar água
ou deitar sementos na cama da sua vida.
mais tade uns anos o ti zé onde finou-se.
e obriguei-me a não dizer os meus pensamentos a ninguém





6. o marido da felis era o dino dos srotos




o marido da feliz era o dino dos rotos.

o pai do dino - ti antónio - era um homem tão pequeno
que metia impressão a genica que ele tinha
aquilo era um mouro de trabalho que teve tempo
para uma boa ninhada de serotos.

as serotas sempre a trabalhar nem tiveram tempo para casar
se alguma se casou foi numa paragem da vida
se calhar namorou nos funerais e nas procissões

nenhuma se rota namorou no funeral do clau dino que morreu novo
deixando viúva nova com as crianças já emigradas e um sogro
imortal.

já os rotos namoravam que os homens sempre podem fugir
pela noite e procurar guiados pelo vento.

dos dois irmãos do dino há um que é muito forte e tão cheio
de sangue que até parece sempre prestes a jorrar-lhe da pele
da cara que até ia dar ao hospital o sangue que lhe sobrava.

nunca consegui perceber como é que aquele bom bruto do diabo
acabou por casar com a neta do barqueiro da tódia,
a ção, que era uma mulher desempenada e elegante
e a quem não lhe visse as mãos bem calejadas
em certos dias aparecia uma senhora distinta em trajes de aldeia
como aquelas dos ranchos folclóricos das cidades.





7. penso que o mica que é o meu irmão mais novo e




penso que o mica que é o meu irmão mais novo e
perdeu a vida em angola andou por lá a tentar namorar
a filha da ção serena

ia por lá com a desculpa de ser amigo do irmão

não sei porquê.... tenho essa ideia.

o mica não quis fugir porque pensava ir para voltar
e pensou que quem foge não pode voltar.


quando voltou, se é que se volta quando se está morto,
era o dia 29 de fevereiro e não me lembro de ver
a acompanhá-lo as raparigas da terra e,
se calhar, já estavam todas faladas pelo emigrantes
na venezuela, que casam a troco de cartas de chamada


ou porque não vale a pena namorar os mortos.





8. a felis teria gostqado do mica




a felis teria gostado do mica vivo depois da guerra
e casado com a sobrinha? hei-de perguntar-lho
afinal estamos todos vivos menos aqueles que matámos
enterreados no passado das aldeias pequenas onde não passa
rio para o esquecimento.


a dormitar à lareira ouvimos os mortos volta na fala
cega-rega de uma velha que dá pelo nome de "boa mimóira"
e se lembra de todas as passages e se não se lembra
à sua maneira conta o que devia ter acontecido.


antes da luz eléctrica havia mais bruxas e lobisomes.


estava escura, via-se mal, mas via-se realmente...


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