Um sinal do presente.
Arsélio Martins

Os dias da última semana não se limitam a passar. Carregam sinais de miséria e de terror. Cada dia cai como um murro na boca da alma. Chegam-me do Iraque, da Índia ou da Rússia os dias carregados de terror. Não deixo de me vergar às dores de cada dia. Nenhum dia é longínquo passado, nenhum lugar é longe daqui, nenhuma vítima me é estranha. Acontece tudo de mal agora e são meus vizinhos os que > sofrem.

Mas hoje decidi que não vou por aí. Nem vou desatar gargalhadas de tristeza por conta dos figurões nacionais a quem o ridículo não mata. Eles não estão quietos nem calados, mas eu estou por fora cá por dentro.

Decidi ser feliz e olhar para outros que nem aparecem nos jornais, porque são normais e competentes nos seus afazeres e me dão os sinais que me dizem que, apesar da desgraça das gralhas do poder, o mundo vai em frente.

Estamos numa casa de aldeia do nosso distrito. Na sala ao lado, trabalham operários da construção de uma pequena empresa que constrói e repara casas. Eles arranjam tectos, pintam paredes, limpam destroços. Durante o dia e também pela noite dentro quando o trabalho aperta, um ou dois, raramente três, cumprem planos de trabalho, metodicamente. Quando não há barulho das máquinas, ouvimos a música que ouvem sem interrupção. Não raras vezes, ouvimo-los cantar como outras vozes as canções que se ouvem no rádio, inglesas na sua maioria. Com satisfação, os ouvimos. Por vezes, o mais jovem aplicador de placas recebe visitas. Reparo que não interrompe o seu trabalho, antes requer a ajuda dos amigos visitantes enquanto conversam, no que me é dado ver.

Mas não foi o mais jovem quem me aguçou a curiosidade. Ouço, sem querer ouvir, a conversa entre dois dos mais velhos trabalhadores da reparação. Algumas palavras chamam-me a atenção, parecem-me palavras típicas do quotidiano dos informáticos — algumas são aquelas abreviaturas que toda a gente diz sem saber muito bem o que é: jpeg, mpeg, bit, megabytes, ram, … — mas também ouvi conselhos sobre os cuidados a ter com os discos, desfragmentações, internet, música e filmes no computador.

Entre trabalhadores da construção de há cinco, dez anos, quem imaginaria qualquer conversa de âmbito tecnológico exterior à profissão, superior ao necessário para o exercício da profissão, …para o lazer, para a cultura geral? De uma pequena empresa numa aldeia?

Para mim, cada um destes pequenos sinais é um presente. Podem não querer dizer coisa alguma. São só sinais sobre o presente do futuro.


[o aveiro, 28/8/2003]
Há mais de um ano, em Julho de 2002, escrevi para o jornal um texto sobre os processos no pcp e a forma como vi a reclamação dos renovadores ao tribunal constitucional. A memória prega-nos partidas e, sei porquê!, lembrei-me do tempo em redor desse texto. Decidi transcrevê-lo para aqui. Esta publicação não tem qualquer interesse para quem não interessa. Há dias assim.


No fojo do lobo, todos somos lobos.
Arsélio Martins


A paisagem é quase inóspita. Algumas poucas árvores bem altas chamam a atenção no descampado. Aproximamo-nos e podemos ver uma construção: vê-se que ali foram arrumadas algumas das pedras que Deus espalhou a esmo, durante a distracção de uns momentos em que brincou a atirar pedrinhas contra o mundo acabado de criar.

Homens muralharam um acidentado terreno e lá dentro não se encontra mais mão de homem que num cavado feito em rocha meio enterrada. Num dos extremos há ainda uma pequena elevação natural feita de pedras maiores que devem ter ficado juntas acidentalmente quando escorregaram das mãos de um Deus já cansado de brincar.

Os homens carregaram a cabra doente e degolaram-na, deixando o sangue cair no cavado da pedra do sacrifício. Logo a seguir, saíram para bem longe dali, num jogo de medrosas escondidas. Talvez um mais decidido (ou escolhido pelos outros) tenha ficado escondido entre as pedras da pequena elevação.

O lobo que fareja, aproxima-se da cabra sem reparar na baixa muralha que em volta dela se ergue. Repara, tarde demais, que toda a muralha ganhou vida. Os lobisomens voltaram e, tão raivosos quanto medrosos, mostram varapaus afiados e pedras. Acossado, o lobo procura uma saída. Mas, para onde quer que vá, recebe uma chuvada de pedras e paus afiados. Esconde-se num dos lados da elevação, protegido da muralha assassina mais próxima e o mais longe possível do resto da muralha. Perdeu o apetite. Descansa por momentos, lambendo algumas das feridas feitas pelas pedras e pelos paus quando tentava escapar por cima da muralha. De repente, recebe uma pedrada e uma picadela violenta proveniente da elevação. Alguém procura expulsá-lo daquele frágil refúgio ali no descampado.
Agora não quer saltar a muralha, mas também não pode ficar ali. Experimenta então atacar o lobisomem que se escondia na pequena elevação. Em vão. Uiva contra a lua, mas depois que se perdeu por uma oportunidade de refeição, nenhuma alcateia há que lhe dê força e companhia. Uiva mesmo assim, contra todas as regras (já que denuncia o espírito do lugar), como se esperasse apaziguar ou amedrontar a muralha de lobisomens em seu redor.
Corre para o centro do círculo muralhado. Uiva de dor, até parecer que nem se importa de ser domesticado por regras de qualquer família lobisumana que o aceite.

Uiva ainda na esperança de ser ouvido pelo Tribunal Constitucional.

[o aveiro, julho de 2002]
Florestas de papel
Arsélio Martins


As mudanças das formas de vida das pessoas e dos animais, no que tem a ver com o fim da pastorícia e a sua substituição pela indústria da criação de gado e a expansão do acesso a alternativas modernas(?) de energia, acrescentadas do despovoamento do interior a favor do sobrepovoamento do litoral e das cidades, fizeram das florestas portuguesas o que elas são hoje: primeiro tornaram-se pastos para o papel e outros produtos industriais e depois pasto para as chamas. E fizeram das pessoas que insistiram em viver nas aldeias do interior (ou no isolamento total das florestas) velhos sozinhos primeiro e vítimas agora. Ao abandono e desordenamento radical das florestas, acrescentou-se o desordenamento da construção com a expansão de algumas aldeias e vilas e o consequente pânico medieval a lembrar cercos de fogo devastador.

Voluntários, os bombeiros contam-se pelas dezenas de milhar. Em condições normais, os dedicados voluntários com as suas associações chegam para as encomendas de desgraça que o acaso cria. Mas sabemos hoje que a situação vivida (neste e noutros verões) não é obra do acaso, antes consequência de actos de politicas profissionais bem determinadas (para o mal). Para combater consequências de politicas profissionais deliberadas não podem chegar os voluntários das comunidades aptos a enfrentar desgraças ocasionais. E é, por isso, que os voluntários têm de ser erguidos à categoria de heróis. As comunidades têm de criar capacidade de intervenção cívica para compreender e mudar as politicas, para além de manterem a sua capacidade de combate a imprevisíveis flagelos.

A floresta fez-se pasto do papel e de outros derivados industriais da madeira tanto quanto o assunto da defesa da floresta e da sua desgraça pastou no prado do papel. Milhares e milhares de folhas de papel receberam escritos inteligentes sobre a floresta e propostas de medidas para o ordenamento do território. As medidas boas foram todas para o caixote do lixo. Por não ter sido possível reciclar todo o papel escrito sobre o assunto, podemos medir hoje a extensão da ignomínia dos poderes políticos. Substituiram-se uns aos outros até conseguirem uma floresta de cinzas e, quem sabe!, passarem do despovoamento do interior para a desertificação, essa que tanto antecipam e combatem com a língua afiada pelas conveniências.

Agora, os poderosos esperam inundar resmas de papel com notícias de outros acontecimentos que apaguem e façam esquecer os incêndios e as suas vítimas, Talvez tentem ser céleres a enviar tropas para combater emergências americanas noutras paragens, procurando compensar a lentidão em mobilizar para o combate do incêndio no território nacional. O ministro eleito por Aveiro cuidou pouco de funerais dos bombeiros e outras vítimas da incúria, mas ajoelha-se e benze-se em auto de fé anti-comunista que pretende passar por fé patriótica. Nem descanso dá aos mortos na sua dignidade própria. Sem pingo de fé, carrega fel e fogo ao seu sinal da cruz, criando uma notícia de contra-fogo na tentativa de esconder as cinzas do fogo em que arde.

[o aveiro, 21/8/2003]
O josé não escreve por escrever. Eu compreendo-o quando ele escreve nada.
E reconheço que, muitas vezes, mais valera não ter escrito.
Nós procuramos juntar as palavras que sejam em vez de nós, quando não formos.
Nesse ofício juntamos muito lixo. O pior é que quando reconhecemos o lixo, levamo-lo para a rua em frente à nossa porta. A curiosidade dos vizinhos fareja o nosso saco.

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