Os dias que passam a correr

É bom escrever alguma coisa a 29 de Fevereiro. É coisa rara só por isso. Devia mesmo procurar um livro de poemas escrito a soluços, garantidamente só em anos bissextos. E nada melhor do que concentrar isso a 29 de Fevereiro. Escrever os bissex(t)os da vida deve ser uma vitória. Com a vantagem de poder descansar verdadeiramente entre cada poema ou texto ou pintura ou desastre. A vida nos bissextos. A vida num dia exclusivamente bissexto. Sacrificar a vida toda ao descanso para garantir um produção gloriosa e bissexta.
Daqui para diante, se acabar o meu relatório hoje, a 29 de Fevereiro, começo poupar-me para o próximo dia 29 de Fevereiro. Só a qualidade do que for esse longínquo dia passa a interessar-me. Dou de barato todos os outros dias dos próximos anos para que esse dia acorde luminoso, cheio de harmonia criativa, capaz da revolução, capaz de ser capaz. Posso esquecer-me mesmo de mim e das minhas óbvias e visíveis fraquezas no resto dos dias. Sofro menos com tal projecto de vida e talvez até dure mais. Só sobra um problema: e se eu me esquecer do que ando a preparar, do que me espera e para que me estou a guardar. Então toda a minha vida seria inútil, exactamente como é hoje.

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