revolução que canta

O 25 de Abril é sempre o centro de uma certa gravidade. No intervalo de tempo centrado no 25 de Abril, multiplicam-se as iniciativas comemorativas a favor (ou contra) da presidência, da assembleia, do governo, dos partidos e da sociedade civil desta República de Abril. Contam-se histórias, faz-se a história, cria-se história.


Os comentadores mais inteligentes e letrados podem até dizer-nos, para nosso deleite intelectual, que os tipos que fizeram a revolução eram uns cretinos que liam o Marx de véspera, que os documentos da época eram umas coisas mal amanhadas que nem valiam o papel em que eram escritas, que isto e mais aquilo. E gostamos mesmo de ler aquelas coisas. Quem é que, agora a esta distância temporal e prenha de experiências vividas, ao visitar o passado e ao reler o que foi escrito há 30 anos não tem vontade de rir e não se espanta como é que aquelas coisas puderam ter tanta força? A força na circunstância!
As mais belas análises dos nossos sociólogos e historiadores, colunistas de hoje, que tão bem detalham pensamentos profundos, não valem mais que o momento da vingança na escrita e na leitura. É injusto. Profundamente injusto. O pior de tudo é que os “comentadores” até sabem como tudo se passou e como aquilo tudo foi uma sucessão de coisas menores, de actos medíocres motivados por pequenos egoísmos e cobardias de soldados e capitães que não queriam combater, seguidos de jogos de bastidores em que os políticos faziam mais manobras de coristas que de estrategas, levando o pais ao desastre.
Portugal foi incapaz de uma verdadeira revolução capaz de encher as medidas aos “valentes” e polidos pensadores de hoje. Era de esperar. Raio de país. Desgraça de povo, zé povinho sempre manipulado. Como sempre, como todos. Não é? A revolução não é coisa bonita, nem inteligente. E ainda por cima, sem mortos nem feridos, e pessoas do mais vulgar que há a mandar nos momentos mais decisivos! Palavra de “tia”!
De outro lado (ou do mesmo?), o nosso empresariado (o que é nacional existe?) a fazer as suas propostas de compromisso, nestas alturas. Que as partes cumpram com os seus compromissos, para que possamos todos exigir em conformidade. Eles cumprem? Há uma revolução ou contra-revolução sempre em curso, conduzida pela inteligência p-saltitante (entre público e privado) que está a esganar (pela fraude) o estado social, ao mesmo tempo que apresenta, no melhor papel, um caderno de (des)encargos ao governo. Afinal, eles estão no governo contra o estado. Conselhos de “tia”!



Eu vivi muitos anos antes e muitos anos depois de 1974. Já cá cantam os anos que passaram e uma revolução entrou a cantar para dentro da história da minha vida. Continuo a ouvi-la, mesmo enquanto leio as reprovações e as provas da sua não existência.


[o aveiro; 29/4/2004]

o andar do corpo

se assim fosse o abismo
o que eu vejo quando olho para a rua da varanda
do teu andar

a arte entre os dias

se ensinas uma teoria sem teoremas não tens que dominar a arte e a técnica da demonstração

podes ver que os teus aprendizes crescem contigo
se eles abrem no corpo da tua companhia um postigo por onde coam raios de luz e por onde disparam
ou certeiras formas baças contra os dias mais calmos
ou rigorosas cores brilhantes para os corações das inquietantes e esguias árvores que se movem por dentro dos dias mais húmidos

ou balas tão perfurantes como verdadeiras para uma cisterna de sede

os aprendizes nada te exigem: nem demonstração nem resposta

eles são aprendizes e sabem que as tuas respostas vão esvair-se como se esvai o sangue vermelho da nuvem desfeita em lágrimas ardentes por dentro da ausência de uma armação sem tela

eles são aprendizes e sabem que para ti as mais intuitivas de todas as respostas são sobre a cor do vento e a forma do ar


eles são aprendizes e sabem que o espírito deste lugar habita nesse que mostra e não demonstra

re(des)encontros de abril

re(des)encontros de abril

re(des)encontros de abril

caridade.

a separação
entre a terra e o céu
tem de ser registada em cartório notarial
para valer

Amar perdidamente!

Hoje lá recebi mais uma fotografia em que apareço a dormitar. De há uns tempos a esta parte, os meus amigos não resistem a tirar-me fotografias ao sono solto que solto nas circunstâncias mais variadas e também mais inconvenientes. É da idade.

Algo parecido querem que aconteça à revolução do 25 de Abril. Há quem diga que a revolução está velha e há mesmo quem diga que está a morrer. Outros até dizem que não foi revolução. Há quem diga que foi uma revolução do passado do seu tempo. Há quem diga que mais valia que tivesse sido de outra forma e que podia ter sido de outra forma.

A revolução portuguesa de 1974 apanhou-me na tropa, depois de ter sido militante estudantil anti-fascista e a ser ou em vias de me tornar militante activo de organizações de extrema esquerda. Sempre a militar! E que desastrado militar! Depois da revolução de 1974, continuei a viver a pura e livre euforia da vida. Com o 25 de Abril perdi muito… medo. E mortos. E guerras sujas. Só isso? Nem queiram saber o que mais ganhei!

Não quero resmungar contra o passado. Se eu soubesse então o que sei hoje, outro galo me cantaria? Não, eu não quero incorporar no passado a sabedoria do futuro. Quero continuar a saborear a liberdade tal como ela me foi apresentada, nua tal qual a amei. Quanto mais sentia a falta dela, mais desesperadamente a amava. Quando ela chegou, dei comigo sem saber como lidar com a nossa relação e o máximo que consegui foi dar-lhe a mão e convocar uma manifestação para cada primeiro dia do resto da minha vida. À liberdade fiz juras, promessas de amor eterno e desejei-lhe vida eterna no meu pais, até que os mais novos não imaginassem um tempo sem ela. Tantas vezes lhe gritei o nome que há uma voz gravada nas paredes das ruas a sussurrar-me o seu nome: liberdade.

Estou velho e dormito amiúde. Adormeço mais vezes para acordar feliz mais vezes. Vou morrer um dia e não haverá sinal da minha passagem. Já a revolução de 1974 vai estar por aí acordada no novo tempo que, sem ela, não seria o mesmo e seria triste.

E, à sua passagem, como efeméride, aguço a minha atenção para sentir os sinais dos homens e das mulheres livres, que isso é sentir o que senti quando carregava às cavalitas os filhos para sermos a multidão do 25 de Abril. O 25 de Abril de sempre!


[o aveiro, 22/4/2004]

bouro

abrir os olhos para ver

bouro

abrir os olhos para ver

vilarinho de perdizes

abrem as janelas para eu ver

vilarinho de perdizes

abrem as janelas para eu ver

Camus proposto

Rien n'est donné aux hommes et le peu qu'ils peuvent conquérir se paie de morts injustes. Mais la grandeur de l'homme n'est pas là. Elle est dans sa décision d'être plus fort que sa condition.

Camus, Actuelles, I, p.24

O José Carlos Soares disse, numa carta em papel pautado, que se pudesse "postava" isto num "blogue". Eu "posto" por ele.

a visita

Recebemos a visita de Manuel Arcêncio da Silva - um murtoseiro . Já tínhamos saudades dele, largo e sorridente. Demos uma volta pela escola e levámo-lo a visitar a biblioteca escolar. Rimo-nos. Deu-me dois caderninhos - um para anotar o estado do tempo, outro para o desenhar. Quem é que fez anos?

a biblioteca parada.

A tragédia está sempre em iluminar a personagem em vez da pessoa. A tragédia é uma coisa de personagens, quando as pessoas já viveram demais e a sua vida pode ser reconhecida num palco sem emoções que não sejam as fingidas emoções dos actores.

A fragilidade das formas

Olho para o que ouço. Não preciso de ver. Sinto que estão ali perto do meu mundo, no meu mundo, as sombras de uma loucura que dança. A loucura anda à solta e salta à corda por aqui e por ali. De vez em quando, ergue-se uma forma humana e fala uma razão cristalina, como se a água tivesse regressado ao seu curso de rio interrompido pela enxurrada de sangue da loucura que salta à corda feita dos meus nervos.

Os super-heróis americanos tiraram as fotografias todas à alegria que os tinha invadido enquanto invadiam o Iraque, sem resistência digna desse nome. A guerra procura as vitórias. Nestes últimos tempos a guerra tem tido as suas vitórias contra a humanidade que usa palavras como armas pela paz. Armados até aos dentes, os americanos e os seus aliados mostram os dentes brancos e brilhantes nos dias das vitórias. Depois, o tempo encarrega-se de sujar os dias que se seguem às vitórias dos super-heróis. Quem não tem razão é louco. Sabe-se hoje que os super-heróis estavam sem razão, loucos. A areia amarela do deserto sem emoções está colada aos dentes dos que morrem. A dança é macabra - os dois lados ensaiam um passo de dança, a um passo da morte.

O super Ariel cospe bombas como quem cospe as pevides de uma melancia podre que é a sua cabeça em vez da cabeça. Ás vezes, temos a sensação que, sempre que acontece ser acusado de corrupção ou outra minúcia de loucura, dispara para uma notícia maior que a sua própria notícia. Ao mesmo tempo, cerca-se quando cerca os outros, separa com um muro os vizinhos. Super Ariel está em Israel - dentro ou fora de si mesmo? Não sabemos de qual dos lados do muro se está preso. E é por isso que as fronteiras que se erguem como muros fazem dos povos prisioneiros, vizinhos da loucura.

Duas favelas. Duas misérias maiores que a miséria. Dois bandos de narcotraficantes do Rio de Janeiro lutam pelo controle do negocio. Matam-se uns aos outros. E a policia tenta controlar ou contornar a onda de violência. O que disto interessa é a resposta à proposta de isolar as favelas da violência com um muro alto. A resposta do eleito da cidade é um rotundo não. O melhor é quando diz que não quer criar um parque temático da droga.

Há sempre os que se matam uns aos outros. A loucura toma uma forma sem dentro e fora. Cada morte é tanto uma vitória como uma derrota. Quem se separa com um muro, é preso e prende, está dentro e está fora. Ninguém está livre. A luta entre os traficantes das favelas do Rio e da polícia contra os bandos reduz a pouco as guerras do mundo dos loucos e faz de Ariel mais do que um construtor de um muro, um construtor de parque temático.

Desenho um muro a toda a minha volta. E descanso.

[o aveiro; 15/04/2004]

As folhas amarelas que sobrevivem.

Sem sair de casa, a árvore da minha varanda perdeu as folhas. Não sei para onde voaram as folhas. Não há rastos da fuga e nem uma ficou para trás que pudesse denunciar o lugar das outras. Fico por aqui à espera que a árvore da minha varanda se reconstrua no seu modo cuidado e lento. Todos os anos é a mesma coisa. Chego a convencer-me que morreu, para depois me espantar com a precisão da reconstrução. As novas folhas parecem-me sempre melhores que as dos anos anteriores. Também é verdade que a imagem que guardo delas é sempre a última e isso é memória de folhas velhas amarelecidas.

Hoje, na Pública, há uma viagem pelos alfarrabistas - Os Sacerdotes do Livro- HISTÓRIAS DE LIVREIROS-ALFARRABISTAS de Paulo Moura. Gostei das intercalares histórias falsas e verdadeiras contadas pelos alfarrabistas aos alfarrabistas. Lá aparece, citado repetidamente, um tal Tarcísio Trindade de que tive um livro de poemas (se for o mesmo!). Havia um poema que sabia de cor, penso que sobre nados-mortos, aqueles que viram o que os esperava e não quiseram passar para o lado de cá. É uma memória vaga. Vou ter de procurar o livrinho. Lembro-me que era um livrinho.

Se o encontrar, há-de ter folhas amarelas. De que me lembro eu?

Postolo

Postal para Parma


Escadas para nada

Postal para Parma


Se não temos onde ir, se não precisamos de subir, porquê as escadas? Imaginamos as viagens que fazemos para nenhures. Faz bem à saúde.

Amarramos a sombra

Postal para Parma


Alguma coisa nos vai amarrando. Embrulhamos as coisas que queremos mostrar e amarramo-las para que os outros tenham de as desamarrar. Porque nos ama(rra)mos? Para quê nos desama(rra)rmos? É como jogar às escondidas com a Raquel.
A Raquel é a sabedoria do estar fingindo não estar. Chama-nos a atenção enquanto se esconde, para ter a certeza que não nos esquecemos dela enquanto desaparece do olhar. Sempre que possível, deixa que a cortina tome a sua forma. E, impaciente, desoculta-se se nós demoramos mais que uma nesga de tempo a reagir. O que é a eternidade para ela? Não pensar nela.

Fortaleza.

Postal para Parma


Começo a arriscar a minha arte postal até Parma - Itália. Tenho os meus filhos todos emigrados no Centro Culturale Edison. Para além dos meus filhos, mais três companheiros ligados à "troupe" teatral "Visões Úteis" partiram para Parma. É a vida.

A intenção que voa

Na semana passada, em Beja, ouvi o Ministro da Educação dizer-se incapaz para falar com o sistema educativo. Em contrapartida, revelava ser capaz de falar e fazer propostas a uma escola em particular e prometia voltar ao Baixo Alentejo com propostas para aquela escola e para cerca de vinte escolas especialmente vocacionadas para o desenvolvimento de cursos tecnológicos. Ao mesmo tempo, revelava que muitas das antigas escolas técnicas tinham oficinas desaproveitadas e havia instalações e equipamentos em ruína… por haver falta de interessados nos cursos técnicos e tecnológicos. Não falava da falta de qualidade e quantidade da oferta dos cursos pelas escolas, mas de desinteresse dos alunos e suas famílias.

No início desta semana, o Primeiro Ministro torna públicos os planos do governo para reforçar o investimento público, ao mesmo tempo, que apresenta o plano de prevenção contra o abandono escolar. Entre as várias medidas, o Primeiro Ministro fala das 20 escolas de referência para o desenvolvimento do ensino tecnológico na base de parcerias de escolas, empresas e instituto de emprego. E fala no aumento de vagas para os cursos tecnológicos. Aparentemente, estamos no tempo da inspiração nos cursos certos, precisos ao tecido produtivo e desejados pelos jovens em idade escolar e suas famílias.

Eu quero que tudo dê certo. De facto, como o Primeiro Ministro diz, temos falta de formação dos jovens (e do povo) e os números do abandono precoce são eloquentes. Será que os portugueses não consideram importantes a escola e o sistema para o futuro dos jovens? Ou será que as escolas e o sistema não são o que deviam ser? Ou será que, apesar dos anos de separação brutal entre a sociedade e o conhecimento, nunca se fizeram os esforços necessários e faltou a inspiração para dar corpo a uma ideia nacional de inteligência baseada na cultura, no conhecimento ou no saber em geral?

Já temos a imensa maioria dos jovens nas escolas, como é natural e desejável à sociedade. Mas muitos jovens abandonam a escola antes de terem completado os estudos, e não temos conseguido inverter a situação com a urgência que a sabedoria recomenda. Ouvimos governantes, do PSD ou do PS, traçar planos para alterar a situação. Já nem quero criticá-los. Estou velho demais para não desejar que a algum deles, a qualquer deles, aconteça o milagre de uma correspondência entre as palavras da propaganda e a realidade social que eles simulam.

Uma dúvida me atravessa o espírito. Quem anuncia intenções para serem atingidas em 15 a 20 anos são os que, mal eleitos, torpedearam as intenções para 15 ou 20 anos dos anteriores governantes. E se perdem as eleições? Será mais um programa partidário de educação? Eles vão perder as eleições, ainda as palavras lhes estão a sair da boca.

As intenções têm asas e voam. Nós precisamos de qualquer coisa que seja semeada e tenha tempo para germinar e crescer a partir da nossa terra e da nossa gente.


[o aveiro; 8/4/2004]


Postolo

Este veio devolvido


Enviei este postal assim bonitinho para a neta de outro avô. Veio devolvido, com carimbos por todo o lado. Mando-lho por aqui. Também foram devolvidos os outros que lhe fui mandando. Os correios não adivinham as casas certas para os endereços errados que vamos escrevendo.

Postolo

Outro postal com fecho éclair e boca

Postal

Os postais de um avô mal formado


As reuniões servem para fazer bordados a tinta castanha. Não tem mal. O problema é que o bordado não fica apropriado para ser enviado a uma neta de tenra idade. Mas vai ser enviado, apesar disso. O que pensará ela mais tarde do seu velho avô? Esse é o desafio; mesmo que a surdez da cinza nos impeça de ouvir as imprecações, deixamos heranças destas como quebra-cabeças. São as únicas heranças.

O que se esconde

Tenho de reconhecer que José Manuel Fernandes é quem sabe
O Que Se Esconde por Detrás do Bloco.
Eu confesso que não me interessa saber o que se esconde por detrás do José Manuel Fernandes. Peço para não saber.
O Barnabé diz que o JMF leu e resumiu o Pacheco Pereira (com um atraso de 6 meses). Escondem-se atrás um do outro? Se assim fosse, não víamos (líamos) um e outro. Ou escondem-se, deixando rabos de fora?

Sulcos leves

António Brás escreveu
A Fixação Precária das Imagens

sobre dois poetas que eu conheço desde quando éramos todos rapazes. É bom saber que ainda há quem escreva sobre a oficina poética. Prefiro os poemas, mas que seria dos poetas com leitores como eu?

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