Eu vou ver o branco dos olhos magoados
as madrugadas onde elas estiverem na preguiça
e em alguns dias dos mais desesperados
cantarei, pela salvação da minh'alma, uma missa
Se alguém sossegar a um canto da minha igreja,
gozando a solidão do fresco da nave lateral,
farei do meu canto um tal silêncio feito em cal
até não ser mais que estátua o que de mim se veja.
Modelos financeiros
O desenvolvimento económico e social coloca à disposição dos cidadãos uma enorme variedade de produtos e serviços. E, de cada tipo de produtos, a rentabilidade das cadeias de produção é assegurada pela produção de enormes quantidades que precisam de ser escoadas por serviços de distribuição eficazes. Dito de outra forma, as sociedades industriais desenvolvidas produzem cada vez mais (em diversidade e em quantidade) e criam serviços capazes de criar a necessidade social (soma de necessidades individuais) dos diferentes produtos para alem da sua distribuição por todos os lugares da terra.
Em sociedades como a nossa, para se garantir um acesso generalizado aos bens disponíveis (muitos ainda antes de haver deles necessidade real e sentida) criam-se outros tipos de serviços (por exemplo, serviços financeiros, banca, seguros) que antecipam meios, por via dos empréstimos (crédito), aos cidadãos para que eles comprem os produtos a todo o custo.
Os ciclos infernais de produção são acrescentados pela obtenção de lucros rápidos baseada também ela na rápida e brutal a exploração da mão de obra. A necessidade de vender é acelerada pela concorrência e por sistemas de rotação de produtos que os tornam rapidamente obsoletos. Esta necessidade de vender transforma-se em pressão sobre o conjunto dos consumidores que são cidadãos por terem acesso aos bens essenciais ao seu bem estar e são vítimas sem direitos logo que se deixam cair na passadeira rolante financeira de marcha mais rápida do que a marcha dos reais rendimentos do seu trabalho. O que há mais nas sociedades de consumo é má gestão de expectativas. E há os donos de tudo que precisam de ter cada vez maiores lucros e, de uma só vez, chegam a sacrificar produtores e consumidores. Cada produtor é consumidor e um desempregado não produz nem consome.
Os problemas sociais a este nível são de tal ordem e têm tal influência na vida pessoal, familiar e social, que os sistemas educativos tratam estes assuntos sob os mais diversos aspectos. Por exemplo, em alguns programas de Matemática portugueses, já aparecem os modelos financeiros e não só para que cada pessoa possa agir de forma mais responsável (e logo mais livre) quando recorrer ao crédito e para evitar o endividamento excessivo, mas também para participar nas decisões sociais sobre o endividamento das autarquias, dos governos, etc.
Estou em crer que poucos jovens se inscrevem em cursos com Matemática Aplicada às Ciências Sociais e continuaremos com uma população juvenil sem formação em modelos financeiros. Nem de propósito. A formação nestes aspectos é uma exigência da cidadania. Mas na falta dela, podíamos contar com o exemplo das autoridades e das instituições que mostrassem, pela sua acção, em palavras e em actos, que utilizam os seus conhecimentos sobre os modelos financeiros para fazer uma boa gestão da coisa pública. A sua imagem valeria mais que mil palavras dos professores.
Mas ... a manipulação contabilística e o manobrismo financeiro, praticados pelos governos e pelas câmaras, não ajudam a educação do povo. A Câmara de Aveiro é também um mau exemplo. Cobrar aos munícipes 3 milhões por um serviço de distribuição de um bem essencial (como é a água potável) sem pagar o que quer que seja ao fornecedor do produto acrescenta maldição de má-educação financeira genuína a tudo o que já condenámos como miséria politica em matéria de buracos negros para onde foram atraídos todos os fundos e todas as frentes da nossa ca(u)sa colectiva.
[o aveiro; 29/7/2004]
Em sociedades como a nossa, para se garantir um acesso generalizado aos bens disponíveis (muitos ainda antes de haver deles necessidade real e sentida) criam-se outros tipos de serviços (por exemplo, serviços financeiros, banca, seguros) que antecipam meios, por via dos empréstimos (crédito), aos cidadãos para que eles comprem os produtos a todo o custo.
Os ciclos infernais de produção são acrescentados pela obtenção de lucros rápidos baseada também ela na rápida e brutal a exploração da mão de obra. A necessidade de vender é acelerada pela concorrência e por sistemas de rotação de produtos que os tornam rapidamente obsoletos. Esta necessidade de vender transforma-se em pressão sobre o conjunto dos consumidores que são cidadãos por terem acesso aos bens essenciais ao seu bem estar e são vítimas sem direitos logo que se deixam cair na passadeira rolante financeira de marcha mais rápida do que a marcha dos reais rendimentos do seu trabalho. O que há mais nas sociedades de consumo é má gestão de expectativas. E há os donos de tudo que precisam de ter cada vez maiores lucros e, de uma só vez, chegam a sacrificar produtores e consumidores. Cada produtor é consumidor e um desempregado não produz nem consome.
Os problemas sociais a este nível são de tal ordem e têm tal influência na vida pessoal, familiar e social, que os sistemas educativos tratam estes assuntos sob os mais diversos aspectos. Por exemplo, em alguns programas de Matemática portugueses, já aparecem os modelos financeiros e não só para que cada pessoa possa agir de forma mais responsável (e logo mais livre) quando recorrer ao crédito e para evitar o endividamento excessivo, mas também para participar nas decisões sociais sobre o endividamento das autarquias, dos governos, etc.
Estou em crer que poucos jovens se inscrevem em cursos com Matemática Aplicada às Ciências Sociais e continuaremos com uma população juvenil sem formação em modelos financeiros. Nem de propósito. A formação nestes aspectos é uma exigência da cidadania. Mas na falta dela, podíamos contar com o exemplo das autoridades e das instituições que mostrassem, pela sua acção, em palavras e em actos, que utilizam os seus conhecimentos sobre os modelos financeiros para fazer uma boa gestão da coisa pública. A sua imagem valeria mais que mil palavras dos professores.
Mas ... a manipulação contabilística e o manobrismo financeiro, praticados pelos governos e pelas câmaras, não ajudam a educação do povo. A Câmara de Aveiro é também um mau exemplo. Cobrar aos munícipes 3 milhões por um serviço de distribuição de um bem essencial (como é a água potável) sem pagar o que quer que seja ao fornecedor do produto acrescenta maldição de má-educação financeira genuína a tudo o que já condenámos como miséria politica em matéria de buracos negros para onde foram atraídos todos os fundos e todas as frentes da nossa ca(u)sa colectiva.
[o aveiro; 29/7/2004]
Fico parado a olhar
Creio que podia regressar e viver com os animais, são tão plácidos e autónomos,
Fico a olhar para eles longamente.
Não se impacientam, não se lamentam da sua condição,
Não jazem acordados no escuro e chorar os pecados,
Não me maçam com discussões sobre os seus deveres para com Deus,
Nenhum está descontente,
Nenhum sofre da mania de possuir coisas,
Nenhum se ajoelha perante outro, nem ante os antepassados que viveram há milénios,
Nenhum é respeitável ou infeliz à face da terra.
Revelam a sua relação comigo e aceito-a,
Trazem-me sinais de mim, provam claramente que contêm em si mesmos,
Pergunto-me onde terão adquirido esses sinais,
Será que em tempos remotos por aí passei deixando-os negligente cair?
Avançava então e avanço agora e sempre,
Juntando e mostrando sempre mais e depressa,
Infinito e de todas as espécies sou, e igual a elas sou,
Não escolho demasiado aqueles que me recordarão,
Elejo aquele que amo e fraternalmente com ele vou.
Um garanhão de beleza imensa responde logo às minhas carícias,
A alta fronte, os olhos afastados,
Os membros reluzentes e flexíveis, a cauda longa varrendo o chão,
A ferocidade nos olhos cintilantes, as orelhas finas, com elegância se move.
As narinas dilatam-se quando os meus calcanhares o apertam,
Os bem torneados membros estremecem de prazer enquanto galopamos e regressamos.
Só te uso um minuto, garanhão, e já te deixo,
Para que preciso do teu galope quando o meu te ultrapassa?
De pé ou sentado sou mais veloz que tu.
[Whitman; Canto de Mim Mesmo.
J. A. Baptista]
Fico a olhar para eles longamente.
Não se impacientam, não se lamentam da sua condição,
Não jazem acordados no escuro e chorar os pecados,
Não me maçam com discussões sobre os seus deveres para com Deus,
Nenhum está descontente,
Nenhum sofre da mania de possuir coisas,
Nenhum se ajoelha perante outro, nem ante os antepassados que viveram há milénios,
Nenhum é respeitável ou infeliz à face da terra.
Revelam a sua relação comigo e aceito-a,
Trazem-me sinais de mim, provam claramente que contêm em si mesmos,
Pergunto-me onde terão adquirido esses sinais,
Será que em tempos remotos por aí passei deixando-os negligente cair?
Avançava então e avanço agora e sempre,
Juntando e mostrando sempre mais e depressa,
Infinito e de todas as espécies sou, e igual a elas sou,
Não escolho demasiado aqueles que me recordarão,
Elejo aquele que amo e fraternalmente com ele vou.
Um garanhão de beleza imensa responde logo às minhas carícias,
A alta fronte, os olhos afastados,
Os membros reluzentes e flexíveis, a cauda longa varrendo o chão,
A ferocidade nos olhos cintilantes, as orelhas finas, com elegância se move.
As narinas dilatam-se quando os meus calcanhares o apertam,
Os bem torneados membros estremecem de prazer enquanto galopamos e regressamos.
Só te uso um minuto, garanhão, e já te deixo,
Para que preciso do teu galope quando o meu te ultrapassa?
De pé ou sentado sou mais veloz que tu.
[Whitman; Canto de Mim Mesmo.
J. A. Baptista]
Homem ao mar!
Quem defende a vida, ama a natureza! - esta é a frase mais forte que Paulo Portas encontrou para justificar a nomeação de Nobre Guedes para ministro do ambiente. Não precisava. O povo sente que entrando Nobre Guedes, o ambiente logo se torna "chic" e mais "in". Sentimos isso na sua magistratura superior no conselho da dita. Telmo Correia especializou-se na promoção de viagens a destinos ideológicos duvidosos e é por isso e muito legitimamente ministro do turismo de um dia de verão, de preferência na quinta do lago.
Estes dois casos são dos que têm mais piada, logo a seguir ao Santana, promotor de missa simbólica e visita guiada ao cemitério, no primeiro dia de papel de primeiro! Benza-o Deus! que ele já esqueceu como é que se faz!
E há o problema da cultura que foi feita em cacos de Roseta para ser património à altura da tia Bustorff.
Eu não acho que um professor ou um pedagogo ou um cientista da educação, etc seja forçosamente melhor ministro da educação que outro qualquer cidadão politico que se interesse pelo tema e sobre ele (sobre o sistema educativo) tenha trabalhado e produzido opinião politica. Mas acho que é muito difícil defender a ministra da anacom. Sabemos que andou nas escolas e talvez conheça uma ou outra criança a frequentar um colégio deste reino unido por um primeiro mais ungido que indigitado. Ungido por Durao e indigitado por Sampaio!
Não há educação que resista a tanta falta de educação. Porque brincar aos ministros é falta de educação, estamos à espera que nos provem que isto das nomeações de Santana não foi uma brincadeira de mau gosto. Tem de haver alguma lógica nisto.
O que mais me intrigou nesta semana que passou foi o pedido de benefício da dúvida para o governo. Ora eu, não tenho nada além de dúvidas a respeito do dito. Podem contar as minhas dúvidas todas se isso melhorar a média do benefício.
O que me conforta é a "criação" segundo Santana. Para criar um homem é necessário barro e sopro divino. Para criar um ministro, basta que o sopro de Santana toque o nada.
[o aveiro; 22/07/2004]
Estes dois casos são dos que têm mais piada, logo a seguir ao Santana, promotor de missa simbólica e visita guiada ao cemitério, no primeiro dia de papel de primeiro! Benza-o Deus! que ele já esqueceu como é que se faz!
E há o problema da cultura que foi feita em cacos de Roseta para ser património à altura da tia Bustorff.
Eu não acho que um professor ou um pedagogo ou um cientista da educação, etc seja forçosamente melhor ministro da educação que outro qualquer cidadão politico que se interesse pelo tema e sobre ele (sobre o sistema educativo) tenha trabalhado e produzido opinião politica. Mas acho que é muito difícil defender a ministra da anacom. Sabemos que andou nas escolas e talvez conheça uma ou outra criança a frequentar um colégio deste reino unido por um primeiro mais ungido que indigitado. Ungido por Durao e indigitado por Sampaio!
Não há educação que resista a tanta falta de educação. Porque brincar aos ministros é falta de educação, estamos à espera que nos provem que isto das nomeações de Santana não foi uma brincadeira de mau gosto. Tem de haver alguma lógica nisto.
O que mais me intrigou nesta semana que passou foi o pedido de benefício da dúvida para o governo. Ora eu, não tenho nada além de dúvidas a respeito do dito. Podem contar as minhas dúvidas todas se isso melhorar a média do benefício.
O que me conforta é a "criação" segundo Santana. Para criar um homem é necessário barro e sopro divino. Para criar um ministro, basta que o sopro de Santana toque o nada.
[o aveiro; 22/07/2004]
descendo
descendo pela vereda verde
e estreita
afinal sobes até um calvário
onde, presa em seu sacrário,
a estátua espreita
quem se perde
verdade do amarelo
Parto para vilarinho das perdizes. Nunca vi amarelo mais perfeito que o amarelo das flores de tojo daqueles montes.
intervalo
quando me cansa a frase seguinte
do relatório que folheio
venho até aqui como pedinte
pedir esmola às pessoas em passeio
...
uma esmola, duas pepitas de memória
peço por uns instantes a mais de sossego
como se reclamasse o salário do cego
que canta uma lengalenga sem história
outras vezes canto tão alto um fado à janela
aquele que aconteceu ao pintor que assassinou
à facada o auto-retrato da sua última tela
esse rio de tinta para onde se atirou.
do relatório que folheio
venho até aqui como pedinte
pedir esmola às pessoas em passeio
...
uma esmola, duas pepitas de memória
peço por uns instantes a mais de sossego
como se reclamasse o salário do cego
que canta uma lengalenga sem história
outras vezes canto tão alto um fado à janela
aquele que aconteceu ao pintor que assassinou
à facada o auto-retrato da sua última tela
esse rio de tinta para onde se atirou.
Passe-me o sal!
Entrámos na casa de pasto, quase ao mesmo tempo. Faz favor! O senhor primeiro! - disse eu, enquanto segurava a porta entreaberta. Muito Obrigado! - ouvi-o, numa voz sumida.
Quando habituei os olhos à sala e dei uma vista de olhos pelas mesas, comecei a arrepender-me de o ter deixado entrar primeiro. Nada que possa ser considerado indelicadeza; o facto é que eu tinha mesmo pressa e ele parecia-me um sujeito reformado, pacato e cheio de tempo ali a ocupar a mesa que tinha sobrado para um de nós. Durante uns momentos em que hesito - saio, não saio - fico a olhar para a mesa invejada. Quando ele levantou os olhos do papel rabiscado que passa por ementa, viu-me. E chamou-me com um gesto da mão.
Lá fui eu até à mesa, já aborrecido por ir perder o meu tempo. Mas, afinal, ele não fez mais do que convidar-me para almoçar. Em resposta às suas insistências, não mais que murmuradas, acabei por sentar-me à sua frente.
Que vai ser? - perguntou o empregado de mesa. Esperei que ele murmurasse: - Bacalhau, por favor! e água - para eu pedir - Tripas! e vinho -, claro, em voz alta. Ainda atirei: - Rápido! Com gás? - perguntou o empregado ao meu companheiro de mesa, que se riu levemente quando eu levantei a voz para dizer: - Agora têm gás na canalização ?
Enquanto esperava, pus-me a conversar. A conversar nem é bem o termo. Eu comecei a falar da vida, das ruas , do trânsito, do tempo, de futebol, ... enquanto ele me ouvia pacientemente e com atenção. Com tal ouvinte até me esqueci da pressa que tinha e continuei a falar ao mesmo tempo que comia. De vez em quando, ria-me das minhas próprias graças com a boca cheia, para que ele soubesse que era para rir. E ele sorria. Eu nem precisava de mais. Sentia-me bem.
A única vez que ele falou, na sua voz sumida, disse: Passe-me o sal! Eu bem o ouvi e logo lhe passei o sal, sem deixar de falar um só momento. Entre as coisas que disse, também pedi a conta e exclamei: à moda do porto? E, sem parar, passei para a politica. Aí foi um tal falar dos gajos de Lisboa e da pouca vergonha dos políticos, dos tachos, das reformas à nascença, dos filhos da ... Acabei a falar no Santana que era o indigitado do momento e andava a formar governo. Não podia faltar! Ainda a conta não tinha chegado e já eu estava a mandar bocas sobre aquela ideia de um ministério da economia no porto. E ri-me a bom rir. Quase me entalava com as minhas piadas. Para finalizar, ouvi-me a dizer: Tinha piada!
Você acha? - atreveu-se ele a perguntar. Então não acho! - respondi eu. O que é preciso é uma economia à moda do porto! Já estávamos à porta da tasca.
Um Mercedes encostou-se ao passeio. O condutor fardado saiu e veio abrir a porta mesmo ao meu lado: "Faz favor, senhor ministro!"
Ainda ouvi um murmúrio de boa tarde, antes de ficar sozinho na berma da rua.
[o aveiro; 15/07/2004]
Quando habituei os olhos à sala e dei uma vista de olhos pelas mesas, comecei a arrepender-me de o ter deixado entrar primeiro. Nada que possa ser considerado indelicadeza; o facto é que eu tinha mesmo pressa e ele parecia-me um sujeito reformado, pacato e cheio de tempo ali a ocupar a mesa que tinha sobrado para um de nós. Durante uns momentos em que hesito - saio, não saio - fico a olhar para a mesa invejada. Quando ele levantou os olhos do papel rabiscado que passa por ementa, viu-me. E chamou-me com um gesto da mão.
Lá fui eu até à mesa, já aborrecido por ir perder o meu tempo. Mas, afinal, ele não fez mais do que convidar-me para almoçar. Em resposta às suas insistências, não mais que murmuradas, acabei por sentar-me à sua frente.
Que vai ser? - perguntou o empregado de mesa. Esperei que ele murmurasse: - Bacalhau, por favor! e água - para eu pedir - Tripas! e vinho -, claro, em voz alta. Ainda atirei: - Rápido! Com gás? - perguntou o empregado ao meu companheiro de mesa, que se riu levemente quando eu levantei a voz para dizer: - Agora têm gás na canalização ?
Enquanto esperava, pus-me a conversar. A conversar nem é bem o termo. Eu comecei a falar da vida, das ruas , do trânsito, do tempo, de futebol, ... enquanto ele me ouvia pacientemente e com atenção. Com tal ouvinte até me esqueci da pressa que tinha e continuei a falar ao mesmo tempo que comia. De vez em quando, ria-me das minhas próprias graças com a boca cheia, para que ele soubesse que era para rir. E ele sorria. Eu nem precisava de mais. Sentia-me bem.
A única vez que ele falou, na sua voz sumida, disse: Passe-me o sal! Eu bem o ouvi e logo lhe passei o sal, sem deixar de falar um só momento. Entre as coisas que disse, também pedi a conta e exclamei: à moda do porto? E, sem parar, passei para a politica. Aí foi um tal falar dos gajos de Lisboa e da pouca vergonha dos políticos, dos tachos, das reformas à nascença, dos filhos da ... Acabei a falar no Santana que era o indigitado do momento e andava a formar governo. Não podia faltar! Ainda a conta não tinha chegado e já eu estava a mandar bocas sobre aquela ideia de um ministério da economia no porto. E ri-me a bom rir. Quase me entalava com as minhas piadas. Para finalizar, ouvi-me a dizer: Tinha piada!
Você acha? - atreveu-se ele a perguntar. Então não acho! - respondi eu. O que é preciso é uma economia à moda do porto! Já estávamos à porta da tasca.
Um Mercedes encostou-se ao passeio. O condutor fardado saiu e veio abrir a porta mesmo ao meu lado: "Faz favor, senhor ministro!"
Ainda ouvi um murmúrio de boa tarde, antes de ficar sozinho na berma da rua.
[o aveiro; 15/07/2004]
a uma sombra
(...)
À volta da tua cabeça até o pó tapar os teus ouvidos,
A hora de provares essa aragem salgada
E escutares às esquinas ainda não chegou:
Dor que baste tiveste antes de morrer -
Parte! Parte! No túmulo estarás mais seguro.
[Yeats,
J. Agostinho Baptista]
À volta da tua cabeça até o pó tapar os teus ouvidos,
A hora de provares essa aragem salgada
E escutares às esquinas ainda não chegou:
Dor que baste tiveste antes de morrer -
Parte! Parte! No túmulo estarás mais seguro.
[Yeats,
J. Agostinho Baptista]
O abandono da poesia
Olha para mim! - disse ela, como se não falasse para mim. Até porque eu olhava para ela fixamente sem poder desviar o olhar.
No momento, eu não disse coisa alguma.
Então ela cuspiu uma frase assassina que me atingiu em cheio num ouvido. Não aguentei e disse: Porra! Ainda fico surdo.
Ela deu meia volta sobre si mesma e sussurrou-me um murro que, passados quinze anos, ainda me dói nas mudanças de tempo. Perdi-a nesse intante em que aceitei o murro como quem aceita um ponto final numa frase mal escrita e não acabada.
Foi ela mesma quem me disse que me dedicasse a outra coisa. Não usa moços de recados para o trabalho sujo.
Uns anos mais tarde, como se dobrássemos uma esquina, cruzámo-nos ao dobrar uma página do livro que eu tentava escrever contra o tédio.
Recomendo-te o descanso eterno! - foi o que ela me disse então. Lembro-me agora da nítida frase. E começo a arrepender-me de não ter seguido à risca o seu conselho. Também me lembro de lhe ter prometido que escreveria um pedido de resignação ou demissão, ao que ela respondeu secamente - Acho bem! Ao menos isso! - enquanto se afastava para a página anterior aonde eu teria vergonha de voltar, como muito bem ela sabia. Foi assim que eu soube que ela não queria mesmo voltar a ver-me.
Depois disso, ainda lhe telefonei, sabendo que telefonava para o meu passado. Em vão.
No momento, eu não disse coisa alguma.
Então ela cuspiu uma frase assassina que me atingiu em cheio num ouvido. Não aguentei e disse: Porra! Ainda fico surdo.
Ela deu meia volta sobre si mesma e sussurrou-me um murro que, passados quinze anos, ainda me dói nas mudanças de tempo. Perdi-a nesse intante em que aceitei o murro como quem aceita um ponto final numa frase mal escrita e não acabada.
Foi ela mesma quem me disse que me dedicasse a outra coisa. Não usa moços de recados para o trabalho sujo.
Uns anos mais tarde, como se dobrássemos uma esquina, cruzámo-nos ao dobrar uma página do livro que eu tentava escrever contra o tédio.
Recomendo-te o descanso eterno! - foi o que ela me disse então. Lembro-me agora da nítida frase. E começo a arrepender-me de não ter seguido à risca o seu conselho. Também me lembro de lhe ter prometido que escreveria um pedido de resignação ou demissão, ao que ela respondeu secamente - Acho bem! Ao menos isso! - enquanto se afastava para a página anterior aonde eu teria vergonha de voltar, como muito bem ela sabia. Foi assim que eu soube que ela não queria mesmo voltar a ver-me.
Depois disso, ainda lhe telefonei, sabendo que telefonava para o meu passado. Em vão.
exílio
eu vou cá para fora lá dentro de mim
deste canto exporto olheiras e maus olhados
e óleo de pavão que é dos mais importados
no país onde ninguém se importa antes do fim.
deste canto exporto olheiras e maus olhados
e óleo de pavão que é dos mais importados
no país onde ninguém se importa antes do fim.
para deleite da canalha
como um palhaço fazes a pirueta
que te faltava para seres o país da treta
e saltimbancando um pouco mais para a direita
adormeces na cama de visgo onde a canalha se deleita
que te faltava para seres o país da treta
e saltimbancando um pouco mais para a direita
adormeces na cama de visgo onde a canalha se deleita
o facto preto das cerimónias
finalmente tenho razões
para chorar e rir como só eu sei
há uma procissão de figurões
e no andor vai santana nua feita rei
para chorar e rir como só eu sei
há uma procissão de figurões
e no andor vai santana nua feita rei
Em segundo lugar...
Em primeiro lugar, a união nacional em torno da selecção nacional (de futebol). Todos juntos, vibrámos com as vitórias suadas da selecção e ficámos só ligeiramente desiludidos com a derrota perante os gregos. Comemorámos o segundo lugar e a vitória de uma alegria que parece de todos contra a alegre tristeza de cada um.
Em segundo lugar, ficou tudo o que não foi futebol. Para segundo lugar, foram os problemas e até o Durão Barroso que, de gravata verde e vermelha, para dar sorte!, apareceu nas tribunas vip sem as monumentais vaias que o brindaram antes.
E é assim que, calmamente, Durão Barroso pode sair de fininho a meio do mandato de um luso para um euro cargo, transformando o tal seu governo de salvação nacional de coligação num governo de gestão da coligação até que alguém aceite o coelho que o psd sempre teve na cartola, embora em segundo lugar. Em nome de uma Europa carente do Barroso, este deixa a salvação da nação a meio. Mas tudo se passa em nome da pátria, da honra da pátria ou dos interesses da pátria. Constatemos que há uma pátria particular deles que vai enriquecendo, embora a pátria em geral vá empobrecendo. Começo a acreditar que estes políticos são movidos pelos interesses particulares da pátria.
No meio desta confusão toda, tentam mesmo passar o presidente desta república para o segundo lugar. Tudo no maior respeito, claro. Enquanto esperam que ele cumpra o seu dever de fazer o que eles querem que seja feito pela estabilidade do país, da Europa toda e até das alianças que cabem nos dedos deles.
O segundo Santana que viu, nos astros, esta sua subida a primeiro, faz pose de estado e votos firmes de emenda daquilo que todos sabem. Diz ele que de outros grandes estadistas se disse no fim que eles tinham sido isto ou aquilo. Com Santana, as pessoas poderão condenar o que ele foi, garantindo ele que deixará de ser quem é, em nome dos altos interesses da nação, da pátria, da salvação... até da sua alma. Quem pode resistir a salvá-lo da má vida e a ajudá-lo a encontrar o bom caminho? Se o deixarem salvar a pátria, a pátria salva-o!
Isto é mesmo tudo a sério?
Em segundo lugar? Não há melhor lugar para chegar a primeiro... ministro. Neste circo, aceita-se um cargo como quem engole o trampolim para o próximo.
Nota final:
Últimos na lista da Europa desenvolvida, primeiros no futebol, Portugal e Grécia apresentam-se a concurso dos melhores organizadores de eventos desportivos a que tudo sacrificam. Será este o caminho do desenvolvimento que nos traçaram?
[o aveiro; 8/7/2004]
Em segundo lugar, ficou tudo o que não foi futebol. Para segundo lugar, foram os problemas e até o Durão Barroso que, de gravata verde e vermelha, para dar sorte!, apareceu nas tribunas vip sem as monumentais vaias que o brindaram antes.
E é assim que, calmamente, Durão Barroso pode sair de fininho a meio do mandato de um luso para um euro cargo, transformando o tal seu governo de salvação nacional de coligação num governo de gestão da coligação até que alguém aceite o coelho que o psd sempre teve na cartola, embora em segundo lugar. Em nome de uma Europa carente do Barroso, este deixa a salvação da nação a meio. Mas tudo se passa em nome da pátria, da honra da pátria ou dos interesses da pátria. Constatemos que há uma pátria particular deles que vai enriquecendo, embora a pátria em geral vá empobrecendo. Começo a acreditar que estes políticos são movidos pelos interesses particulares da pátria.
No meio desta confusão toda, tentam mesmo passar o presidente desta república para o segundo lugar. Tudo no maior respeito, claro. Enquanto esperam que ele cumpra o seu dever de fazer o que eles querem que seja feito pela estabilidade do país, da Europa toda e até das alianças que cabem nos dedos deles.
O segundo Santana que viu, nos astros, esta sua subida a primeiro, faz pose de estado e votos firmes de emenda daquilo que todos sabem. Diz ele que de outros grandes estadistas se disse no fim que eles tinham sido isto ou aquilo. Com Santana, as pessoas poderão condenar o que ele foi, garantindo ele que deixará de ser quem é, em nome dos altos interesses da nação, da pátria, da salvação... até da sua alma. Quem pode resistir a salvá-lo da má vida e a ajudá-lo a encontrar o bom caminho? Se o deixarem salvar a pátria, a pátria salva-o!
Isto é mesmo tudo a sério?
Em segundo lugar? Não há melhor lugar para chegar a primeiro... ministro. Neste circo, aceita-se um cargo como quem engole o trampolim para o próximo.
Nota final:
Últimos na lista da Europa desenvolvida, primeiros no futebol, Portugal e Grécia apresentam-se a concurso dos melhores organizadores de eventos desportivos a que tudo sacrificam. Será este o caminho do desenvolvimento que nos traçaram?
[o aveiro; 8/7/2004]
a cadeira da casa
entras
e sentas-te nos meus joelhos:
a última cadeira da casa que ainda não espatifei por cobardia.
e sentas-te nos meus joelhos:
a última cadeira da casa que ainda não espatifei por cobardia.
brando
vi-te nas telas: nas planícies incendiadas
és o bisonte que desafia com os cornos
a nuvem levantada pelos próprios cascos.
és o bisonte que desafia com os cornos
a nuvem levantada pelos próprios cascos.
Sophia
No ponto onde o silêncio e a solidão
Se cruzam com a noite e com o frio,
Esperei como quem espera em vão,
Tão nítido e preciso era o vazio.
(Sophia)
Se cruzam com a noite e com o frio,
Esperei como quem espera em vão,
Tão nítido e preciso era o vazio.
(Sophia)
Sophia
Intacta memória - se eu chamasse
Uma por uma as coisas que adorei
Talvez que a minha vida regressasse
Vencida pelo amor com que a lembrei.
(Sophia)
Uma por uma as coisas que adorei
Talvez que a minha vida regressasse
Vencida pelo amor com que a lembrei.
(Sophia)
Estrela Rego
Ele deve gostar de saber que eu penso que tenho um amigo, agora e para sempre. Para ele, neste tempo em que morreu para esta vida, começou o tempo de uma outra vida. Ele acreditava nisso e nós, por sabermos dele, acreditamos de outro modo e damos-lhe vida na caixa da memória, essa em que guardamos os instantâneos de encontros felizes. Morreu José Estrela Rego e eu já sinto falta dos "respingos salvíficos do atlântico azórico" com que ele nos brindava nas despedidas.
Há quem se espante com a possibilidade de algum dia termos podido falar um com o outro sem escolher as ideias (para esconder algumas delas das conversas). Um dia estive com ele nas casas da sua vida e guardo a nossa conversa em viagem como "a obra impossível" a que prova como o mundo dos humanos bem podia ser perfeito.
Há quem se espante com a possibilidade de algum dia termos podido falar um com o outro sem escolher as ideias (para esconder algumas delas das conversas). Um dia estive com ele nas casas da sua vida e guardo a nossa conversa em viagem como "a obra impossível" a que prova como o mundo dos humanos bem podia ser perfeito.
vi(r)agem
Num dia como os outros
solta-se entre as palavras
um fumo enrolado pelos açores
e o brinde tinto lava uma terra inteira:
como uma trave na arquitectura da casa da calheta
a gargalhada comum voa nos corredores
até se enterrar no sagrado chão
onde o chão não existe
porque uma mansa vaca pasta a nossa passagem
pelo mundo.
Num dia como os outros
desistimos de olhar para longe
olhando para dentro.
O beija-flor
Desde pequeno que me habituei a chamar a atenção. Faço biquinho como se fosse chorar quando não me ligam ou como se fosse o mais inteligente de todos e tivesse acabado de descobrir a pólvora, quando os outros fixam os olhos para o pedestal em que me inventei como estátua.
Depois aprendi que vale a pena aparecer ao lado dos mais poderosos, ainda que seja a servir-lhes café, pontuando as suas observações com OK, ámen ou KO. Na televisão, claro. Havia já muitos programas de televisão que tinham tornado famosas pessoas até por serem capazes de passar meses fazendo nada por encomenda. Havia mesmo um menino homem que se tinha tornado famoso por aparecer sempre atrás do repórter-mira do operador de câmara que filmava multidões. Sem perder um plano das câmaras que filmaram multidões do psd, cheguei a primeiro ministro! E não é que fiz chefe das tropas quem nunca tinha sido sequer soldado raso. Não é "nice"?
Convenci-me que podia ser notícia maior, alvejando com desemprego os meus concidadãos e critica os que não tiveram pontaria para isso. Perdi o norte da consciência social e passei a defender o salve-se quem puder. Quando se afogava alguém nos naufrágios sociais por não ter dinheiro nem bóia, sossegava a minha consciência garantindo que deviam ter tido cautela e pago seguros em vez de comer, já que o estado não pode ser uma imensa bóia. Ai, a forma liberal como participei ao lado dos poderosos cabos de guerra! A insensibilidade máxima para com os náufragos culminou com a eliminação e penúria de todos os institutos de socorros a náufragos, deixando naufragar no mar liberal, a saúde, a educação e a ciência, para alem de outras que nem me lembro. Mas que espero não ter esquecido nesses exaltantes momentos de pacovice financeira em que percebi que o produto interno bruto não tinha a ver com o produto interno de matemática secundária, essa que troquei pelo direito para depois me ultrapassar pela direita.
E não é que chego a chefe dos comissários europeus! Com um pais inteiro a falar da honra que é ter-me como testa de ferro do mundo dos poderosos, não podia ser melhor! É a glória.
Para a glória ser completa, preciso de ficar nos livros de história como o tipo que ganhou o euro 2004 e ganhou muitos euros enquanto subia ao pico da Europa dos 25 que me convidaram. E que a história não fale dos ranhosos que não conseguem ver a auréola de santo padroeiro de Portugal em peregrinação e teimam em ver uma auréola da nódoa que sai de Portugal para se espalhar em volta, na Europa.
[o aveiro; 1/7/2004]
Depois aprendi que vale a pena aparecer ao lado dos mais poderosos, ainda que seja a servir-lhes café, pontuando as suas observações com OK, ámen ou KO. Na televisão, claro. Havia já muitos programas de televisão que tinham tornado famosas pessoas até por serem capazes de passar meses fazendo nada por encomenda. Havia mesmo um menino homem que se tinha tornado famoso por aparecer sempre atrás do repórter-mira do operador de câmara que filmava multidões. Sem perder um plano das câmaras que filmaram multidões do psd, cheguei a primeiro ministro! E não é que fiz chefe das tropas quem nunca tinha sido sequer soldado raso. Não é "nice"?
Convenci-me que podia ser notícia maior, alvejando com desemprego os meus concidadãos e critica os que não tiveram pontaria para isso. Perdi o norte da consciência social e passei a defender o salve-se quem puder. Quando se afogava alguém nos naufrágios sociais por não ter dinheiro nem bóia, sossegava a minha consciência garantindo que deviam ter tido cautela e pago seguros em vez de comer, já que o estado não pode ser uma imensa bóia. Ai, a forma liberal como participei ao lado dos poderosos cabos de guerra! A insensibilidade máxima para com os náufragos culminou com a eliminação e penúria de todos os institutos de socorros a náufragos, deixando naufragar no mar liberal, a saúde, a educação e a ciência, para alem de outras que nem me lembro. Mas que espero não ter esquecido nesses exaltantes momentos de pacovice financeira em que percebi que o produto interno bruto não tinha a ver com o produto interno de matemática secundária, essa que troquei pelo direito para depois me ultrapassar pela direita.
E não é que chego a chefe dos comissários europeus! Com um pais inteiro a falar da honra que é ter-me como testa de ferro do mundo dos poderosos, não podia ser melhor! É a glória.
Para a glória ser completa, preciso de ficar nos livros de história como o tipo que ganhou o euro 2004 e ganhou muitos euros enquanto subia ao pico da Europa dos 25 que me convidaram. E que a história não fale dos ranhosos que não conseguem ver a auréola de santo padroeiro de Portugal em peregrinação e teimam em ver uma auréola da nódoa que sai de Portugal para se espalhar em volta, na Europa.
[o aveiro; 1/7/2004]
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