A minha vida é um copo de tempo vazio de dores. É tão banal que há pessoas convencidas da minha extrema banalidade e, logo, da minha (in)felicidade feita de rotinas (in)felizes.
Numa noite já passada, o meu filho guiava o automóvel que nos trazia do Porto para Aveiro. De repente, na auto-estrada, pus a cabeça fora da janela. Podia ter perdido a cabeça se ela tivesse voado inteira para longe da parte do corpo que, incapaz de voar, ficasse preso ao assento. Em vez disso, voaram os óculos e foi como se a cabeça que olha tivesse voado com eles.
Por ter deixado de ver claramente, o princípio da minha passada semana fez-se um copo de tempo cheio de problemas. Com antigos óculos fui vendo o que precisava até que enjoei e passei a sentir-me tão miserável que o meu copo de tempo transbordou de tristeza. Cada pequena dificuldade passou a ser tudo e convenci-me que o que dói a cada pessoa pode ser a dor do mundo, ser o mundo dorido a vaguear nos nossos nervos e medos. Da dor e da impotência nascem desesperos e raivas surdas, partes do sentimento de quem se sente para ser filho de boa gente.
A doença acabou expulsa pela minha resistência interior, mesmo sem ter sabido de ordem da cabeça que pensa e devia conduzir as operações no campo de batalha do meu corpo. Tenho estado a escrever sobre as minhas maleitas e das ideias tenebrosas que podem assaltar quem sofre ainda que pouco.
Agora imaginem o sofrimento físico e psíquico das pessoas adultas que ficam sem emprego num dia qualquer e recomeçam a vida como uma via sacra dolorosa em busca de outro emprego quase impossível (a confiar nas notícias), sendo que isso significa procurar alimento e fé para si mesmo e para dependentes, filhos ou não.
De cada vez que um patrão ou um político desvaloriza cada desempregado como coisa pouca a somar a outra coisa pouca, agita uma mistura de desespero, desesperança e raiva. Esta mistura já é perigosa em si mesma e, à pressão da vida de todos os que sofrem, ganha um detonador apropriado no comentário da moda que banaliza este sofrimento individual e colectivo.
Convencidos da impunidade de novos-ricos cegos, alguns jovens comentadores a brilhar hoje ainda não sentem o rabo que lhes atrapalhará a fuga por ordem do medo do irracional que ajudaram a criar, palavra a palavra.
O que faz mover o mundo? O absurdo que dói.
[o aveiro; 7/07/2005]
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