Um cordão humano erguia-se como uma só voz para gritar contra a extrema-unção. Alguém tinha levantado a lebre acima da própria cabeça e todos, sem excepção, acreditaram que tinham visto uma lebre. Mais tarde, soube-se que o animal a que tinham chamado lebre não era mais que um boato posto a correr numa pista de corridas de galgas. O homem do boato falava para quem o queria ouvir que a visita do ministro às instalações do sistema educativo, há muito votadas ao abandono, se destinava a ouvir a confissão dos trabalhadores culpados e a ministrar-lhes uma extrema-unção como passaporte para o futuro sombrio. Soube-se muito mais tarde que não se tratava de um boato, mas de uma fuga de informação e que o homem usava a fuga a tiracolo, de uma maneira tal que não podia ser boato. A fuga, mais rápida que se fosse boato, estava a dar, aos apostadores, muito cacau para os dias frios que aí vinham. Os trabalhadores culpados, quais são? Um professor idoso, desmemoriado, garantia que não era culpado e queria saber se constava de alguma lista de culpados. O homem da fuga que em tempos tinha sido boato afiançou que de listas não sabia, mas que tinha ouvido falar de um rol de culposos. O velho virou-se para o homem da fuga na ponta da língua para lhe perguntar o que é isso de culposo. Ao que o língua de fuga, que sabe tudo e nunca sabe muito bem se assim é, respondeu que culposo e culpado são bem diferentes. Diferentes como? - insistia agora um auxiliar da acção educativa. Culpado é aquele que pratica uma falta e tem culpa no cartório. Já culposo é o que cometeu culpa ou revela culpa no cartório. Esta informação caiu como um pano encharcado na varanda do vizinho de baixo. Um pano encharcado nas trombas de um gerânio ofende qualquer vizinho e a um tal nível que, mesmo sendo de baixo, se irrita até subir pelas paredes. Já no andar de cima, onde estão os de nível mais elevado, eleva o tom de voz até os vidros partirem como partem os culpados e os culposos sem que lhes ministrem a extrema-unção que é para todos, tenham confessado ou não.
Uma mulher foi lendo. Chegou aqui de testa franzida por não perceber. E o que escreve sentiu-se na obrigação de escrever como último gesto de fuzilado: Bem se vê que não é professora ou não é portuguesa.
O presente? - ouviu-se a pergunta sumida. Ministro, ministras, ministra - respondeu um aluno surdo a todos os apelos à calma.
[o aveiro; 1/06/2006]
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