à falta de melhor luz

Já há mais horas de luz foi o que me disseram ontem, quando saía de uma reunião de trabalho. Naquela sala, a luz do sol entrou desaforada para aquecer e para cegar. De tal modo, que algumas crianças que queriam ver-me e ao quadro branco tiveram de procurar um lugar mais para dentro na sombra da casa grande.

Para compensar, segunda e terça, a luz eléctrica foi e veio sem aviso. A tardinha de terça apanhou-me sentado tacteando as teclas da máquina de escrever. Estou convencido que posso escrever sem olhar para o teclado. E chega a ser verdade quando nem penso nisso, embora troque muitas vezes a ordem das letras seguidas se uma vier de um dedo da mão esquerda e outra vier de dedo da mão direita. Mas quando é mais preciso mostrar essa habilidade é que as coisas não correm mesmo nada bem e dou por mim incapaz de escrever correntemente se me falta a luz como está a acontecer enquanto escrevo este texto. Nestes momentos, lamento ter desprezado a possibilidade de comprar um computador com teclas a brilhar contra o escuro. Não, não me chega o branco brilhante da folha branca onde estas letras se alinham.

Sei, por isso, que a minha escola de dactilografia não bastou para escreviver num mundo sem luz . Será que eu passaria imediatamente a ser capaz de escrever se me tornasse incapaz de ver? Quem me dera que nunca o venha a saber!

Aqui ao lado, há quem tire do teclado do piano uma melodia contra a noite escura. Vibrante, ouço um texto ocupar o ar. Há textos que eu gostava de ter escrito para serem música. Não, não são grandes textos os que a melodia sugere. São os textos que só ganham sentido como parte de um bordado de sons.

Nesta escuridão, os meus dedos escrevem sobre a luz de que me falaram e eu senti na ternura da manhã clara, dos sons que se juntam para guiar as mãos capazes de bordar sons quando falta a luz. De certo modo, estou a aproveitar a oportunidade da falta de luz para falar do que simplesmente falta. Para não falar do assalto feito pelos meliantes e comediantes que entram na casa da minha cabeça pela porta da frente, olhos e ouvidos, capazes de todas as ofensas e vandalismos. Talvez a falta de luz me obrigue a descansar até que o sol volte.

Oh! Veio a luz e está na hora do telejornal. Voltemos à vida eléctrica.


[o aveiro; 01/03/2007]

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