levanta-te e anda!

Todos os dias recebo vários folhetos e desdobráveis. Alguns deles mais parecem as obras completas de um especialista em carne de porco e em vinhos de marca de região bem demarcada; outros são pequeníssimos votos piedosos ou pedidos de socorro de uma alma que precisa de ser salva e só conhece um processo: apontar o caminho da salvação das almas de clientes dispostos a pagar dez mil reis de mel coado por uma vaga esperança. Há especialistas no aquém e no além que oferecem soluções para o mau olhado, as dores nas cruzes, o azar no jogo, a má sorte com a amante.
Dou por mim a ter cuidado na rua. Pela quantidade de papéis que recebo, tenho de admitir que há muitas pessoas envolvidas em negócios de inveja e raivas surdas capazes de todas as vinganças e crentes certas nos efeitos de uma cerimónia em que um pequeno e roliço boneco parecido comigo é espetado por nervosos alfinetes antes de ser atirado de um quarto andar para ser pisado por um pintor que se desequilibra e cai do andaime quando estou a passar. Começo a ter cautelas que antes não tinha e desconfio das minhas naturais dores nas cruzes ou dos ataques de espirros.
A caixa de correio manda-me para algum hipermercado ou pede-me que telefone a quem me quer salvar do mal que me deseja por eu não telefonar. Carne e osso batem-me à porta e perguntam-me se lhes posso dar um minuto da minha vida por uma oração. Se tiver sorte, tocará o telefone e, se aproveitar para me livrar do bem bom da porta, acabo a atender uma má leitura do anúncio sobre o que já ganhei e posso ir buscar a um hotel daí a uma hora. Contra tanta bondade, só silêncio. E vejo o correio electrónico que enche a casa digital de muito mais do mesmo.
Dou por mim a ter cuidado na rua e em casa. Começo a ter medo de ir à porta e atendo o telefone com um arrepio. O computador tem o aspecto de um caixote de lixo. Estou cercado por ofertas e por ameaças, pelo mal que me farão se eu não aceitar o bem que me prometem.
Desligo e desligo-me de tudo. Deixo-me afundar numa cadeira, enquanto ligo a televisão. Da televisão alguém disparou uma ameaça certeira. Não dá mais para aguentar, o coração desiste e eu perco os sentidos. Quando acordo, apanho os sentidos um por um.

[o aveiro; 05/04/2007]

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