Quando um professor participa num debate sobre professores e sobre os malefícios da política da educação na actualidade, pode fingir que as decisões de hoje são as decisões do governo de hoje e louvá-las ou repudiá-las ou mesmo fingir que, mudando o ministro (ou a sensibilidade) ou mudando o governo para dar lugar à alternativa do costume, se resolve algum problema. Assim pensa e faz quem está no governo ou quem esteve no governo passado e para lá quer voltar na próxima volta. E há mesmo quem pense sinceramente isto e acredite que o que lá vai lá vai e que o que interessa agora é manter ou mudar para garantir estas reformas ou outra forma destas reformas. Há mesmo quem admita que um governante que passa por vários governos pode fazer a reforma nunca feita e que o que antes fez não existe ou foi errado sem que se veja uma beliscadura na sua carreira, nem lhe tenha sido exigido acto de contrição ou propósito firme de emenda. Como se os ministros de um novo governo do PS ou do PSD fossem outros, porque (a)parecem como novas pessoas, novas promessas, novos argumentos.
E pode fingir que a vida da educação e dos professores depende da capacidade de fazer cair ministros e governos para os substituir por outros ainda que mais dos mesmos. Isto não é mais do que o reforço e manutenção de uma ideia de resistência, fora dos dois partidos da alternância, como força popular, que vive de organizar grandes movimentos das massas quaisquer que eles e elas sejam como prova de vida e vitalidade. É como ter um desejo centrado no corpo do descontentamento de todos, ou do descontentamento nosso de cada dia. Há uma certa grandeza nisto. E uma tragédia. Os descontentamentos de todos pertencem à ordem das circunstâncias, não são um corpo de política, nem dão o corpo às políticas. Os descontentamentos de que falamos satisfazem-se numas braçadas em mar de enganos ou em marasmo.
Quem escolhe participar e não pode escolher responsáveis para os erros de hoje nem acredita em êxitos de hoje, à pergunta sobre quem é responsável por este ou aquele erro e mal estar, só pode responder "somos todos! somos todos!" para que os culpados saibam que a culpa está, ainda que a diferentes níveis, atribuída a todos e que é preciso discutir para decisões que se coloquem para lá do jogo de cadeiras por alternância.
É preciso discutir do ponto de vista da profissão dos professores, do ponto de vista da educação e ensino das crianças e dos jovens, do ponto de vista dos interesses individuais como partes interessadas nos interesses sociais. Do ponto de vista do outro, o que tem o poder de não estar no poder. Porque, em democracia, não é tolice subir a um banco, numa qualquer esquina, para falar da esperança muda.
[o aveiro; 28/02/2008]
curvado
cada dia, um dia. quando chegamos ao fim do dia, podemos dizer uma de duas coisas: este já cá canta e eu sobrevivo para mais um dia melhor que este e há quem não tenha chegado ao fim deste dia e as esperanças que tinha evaporaram-se ou já canta mais um dia de vida vivida com sentido certo de que amanhã posso apreciar a vida com os sentidos todos despertos. de qualquer modo, ganhamos um dia ao futuro de que fazemos parte. adormecemos cansados por tudo e por nada. escolhemos viver o dia seguinte ou desistir do dia seguinte. escolhemos, de qualquer modo, escolhemos reatar uma caminhada para algum lugar vazio ou cheio. vazio porque não reconhecemos as coisas em seu lugar ou porque o nosso lugar foi roubado e não somos mais que o abismo que aceitamos sem querer. cheio, ainda que esvaziado pela usura dos outros e do tempo, porque nos reconhecemos em tudo quanto somos ainda que perdidos dos outros e pelos outros, porque nos reconhecemos noutro início de luta, porque reconhecemos a nossa respiração, a nossa forma de andar no passo que sucede ao anterior. curvados, ainda que curvados... contra o vento, levados na tempestade enquanto fumamos o nosso último cigarro.
frielas
Há sempre o dia antes. Nesse dia, houve quem alertasse para o perigo que está em adiar o que devia ser a mais simples rotina diária em troca da obra necessária para encher o bolso ao pato bravo e o olho aos eleitores embasbacados. Nesse dia, houve quem alertasse para todos os perigos de não se cumprirem os planos e as recomendações a favor do interesse natural e contra as violações grosseiras pela iniciativa local criminosa. Nesse dia antes, os representantes das autarquias desmentem tudo e reafirmam que tudo fazem para evitar o pior e até o menos mau e garantem que onde tinham a ribeira encarcerada, têm agora um vale de águas livres a fertilizar as terras em volta, que nada do que é mau se vai repetir nos mesmos termos de antigamente. Assanhados, os autarcas tornam-se mesmo façanhudos, capazes de todas as façanhas a favor do desenvolvimento e do progresso e contra toda a reacção alérgica ao betão até nos convencerem que a via única do progresso está em cada obra aprovada, com a qual evitam e fintam a chuva e o vento.
Ainda o dia antes não acabou e já pinga. A chuva vai cair sem parar por umas horas. E no dia que se segue ao dia antes, aconteceu tudo o que se tinha dito que podia acontecer de mal. As ribeiras transbordam, galgando as suas margens. E novos rios arrastam dos altos, os aterros ainda que embargados e desaguam um mar de lama numa praça da baixa ou numa rua pavimentada sobre uma linha de água num dia em que a linha de água interpretava um papel de ingénua obediente numa peça de amadores. O que ontem era uma estrada é hoje um rio em que uma camioneta da carreira está tolhida numa confusão de águas. Dentro da camioneta, homens e mulheres presos, até serem salvos por bombeiros, tremendo já de frio e de pavor. É o dia em que as ribeiras, cansadas de serem desprezadas, se fazem rios e crescem. Neste dia, saltam para a ribalta as ribeiras. Arrastam e matam, por ordem de quem? E há autarcas que procuram e encontram explicações novas para os desmentidos de ontem quando falam em frente a um cenário de explosões de água pelas ruas que pavimentam antigas ribeiras, por eles condenadas à clandestinidade mais subterrânea.
Que dirão e farão eles amanhã, quando não se lembrarem da lama e dos mortos de hoje?
Na memória do dia, sobra-nos uma placa a afogar-se num cruzamento de estradas.
[o aveiro; 21/02/2008]
Ainda o dia antes não acabou e já pinga. A chuva vai cair sem parar por umas horas. E no dia que se segue ao dia antes, aconteceu tudo o que se tinha dito que podia acontecer de mal. As ribeiras transbordam, galgando as suas margens. E novos rios arrastam dos altos, os aterros ainda que embargados e desaguam um mar de lama numa praça da baixa ou numa rua pavimentada sobre uma linha de água num dia em que a linha de água interpretava um papel de ingénua obediente numa peça de amadores. O que ontem era uma estrada é hoje um rio em que uma camioneta da carreira está tolhida numa confusão de águas. Dentro da camioneta, homens e mulheres presos, até serem salvos por bombeiros, tremendo já de frio e de pavor. É o dia em que as ribeiras, cansadas de serem desprezadas, se fazem rios e crescem. Neste dia, saltam para a ribalta as ribeiras. Arrastam e matam, por ordem de quem? E há autarcas que procuram e encontram explicações novas para os desmentidos de ontem quando falam em frente a um cenário de explosões de água pelas ruas que pavimentam antigas ribeiras, por eles condenadas à clandestinidade mais subterrânea.
Que dirão e farão eles amanhã, quando não se lembrarem da lama e dos mortos de hoje?
Na memória do dia, sobra-nos uma placa a afogar-se num cruzamento de estradas.
[o aveiro; 21/02/2008]
o nosso lugar entre as nossas coisas
(...) para ver a minha paisagem a perder de vista. Este é o meu lugar. Se há lugar que seja meu é este. E, no entanto, ele é o lugar das coisas que lá estão e não mudam de lugar. Na mesa instável, há muito pouco lugar para mim, mas há vários vasos e uma persiana estragada. Agradeço às coisas o lugar que sobra, o lugar que elas me reservaram. Só me sinto bem entre as minhas coisas, aquelas que o tempo colou em lugar à mesa e dela, por isso, não podem ser despejadas (...)
descanso
já não és o mesmo! alguém diz é alenor ou coisa assim que não sei quem é e eu de ti só sabia que não te parecias com pessoa nem coisa a não ser com coisa nenhuma que tu és mutante a cada olhar ou se não és tu quem muda mudam os olhos de quem te vê ou muda o ponto de vista.
porto em visita
o guindaste nunca é um pormenor
é um risco no céu
é a ausência do andaime
é o homem de pés no chão
a construir um céu de betão
o douro
de muitos lugares se pode olhar um rio sentado num banco qualquer
ou feito criança ao colo de uma estátua de mulher
mesmo que os outros não vejam a estátua como nós a vemos
nem vejam o mesmo rio nem leiam o livro que nós lemos
ali naquele lugar se leio a página certa deixo o livro inteiro
menos uma certa página a única que ficou minha para sempre
amarrotada no meu bolso que a guarda e ao sonho que deixei de sonhar
para a ler repetidas vezes como um amante que hesita em despedir-se.
rua de todos os dias
todos os dias várias vezes ao dia passo por ela sem ver os amigos que nela moram
o acaso esconde-nos uns dos outros é o que vos digo por experiência
só vejo o martim que é um cão daquela rua tal qual como eu fiel à manhã
e à tarde
descanso
quando estou cansado e os braços me doem em negação
dou-lhes o gesto de varrer a melancolia de uma tela
tapando com nova paisagem a paisagem que lá estava
assim olhando em dias diferentes pela mesma janela
um amigo em visita pensa que um varredor deixa de ouvir
enquanto varre o pó do seu corpo para debaixo do tapete
e em cada instante procura o instante certo para partir
no fim de uma frase em que cai um . de silêncio
os meus olhos que não cabem na minha cabeça olham
a minha boca que refaz o dia pelo verso do arrependimento
e piscam o código sincero letra a letra para que a boca o soletre
obrigada.
não há semana sem senão
Ouvimos um novo bastonário e temos a vaga sensação de que o que ele diz não carece de prova nem carece de refutação. A sensação vaga de que todos sabem do que se está a falar sem que seja possível concretizar, a sensação vaga de que, por isso, se trata de um mal social qualquer que não se pode cortar pela raíz, porque a sua raíz está no poder e no estado actual das cosias. A vaga sensação de que falamos do inevitável, de uma quadrilha de males menores a quem temos de pagar protecção para que as coisas possam continuar a funcionar.
Lemos as públicas notícias dos truques nas câmaras em que os técnicos de uma delas assinam de cruz os projectos dos técnicos da outra onde podem aprovar os projectos que fazem, embora não possam assinar os projectos que aprovam. Temos a vaga sensação de que em todo o país, em cada uma das câmaras, pode acontecer isso mesmo e não podemos fazer coisa alguma contra isso, porque é assim que as coisas funcionam e, se não fosse assim, nem as casas do desenvolvimento cresciam para cima e já há muito todo o progresso se tinha afundado num mar sem betão. Temos a vaga sensação de que sem esses factos consumados não tínhamos construído as casas em reservas naturais, agrícolas, de orla marítima,... nem tínhamos direito a ver a especulação do oito que se faz oitenta para que alguém ou algum grupo num só dia enriqueça por ter sabido um dia antes o que podia ser feito mais por obra e graça de um técnico do que de outro qualquer nosso senhor do planeamento. Temos a vaga sensação de que não vem mal ao mundo por cada um de nós fazer o mesmo que todos os outros fazem ainda que seja errado e até, por vezes, crime. A vaga sensação de que há coisas que se repetem.
Lemos as letras gordas das brincadeiras de corredor em que cada um dá corda aos seus sapatos e fala sobre educação e sobre professores e sobre o que deve e não deve ser e até sobre a melhor forma de atropelar o parlamento e o bom senso como se houvesse uma autoridade com autorização para atropelar as próprias leis, os próprios prazos, a própria sombra. Lemos as letras gordas e nem acreditamos. Sobra a vaga sensação de que tudo está a acontecer só porque está a acontecer e contra isso nada, porque sabemos que o mal está em tudo o que lemos e ouvimos e contra o céu da boca nos bate, porque não sabemos as regras deste jogo de faz de conta, a conta que fazemos ao rosário que rezamos sem sabermos que oração nem a quem.
Não há semana sem senão? Antes isso que um tiro no escuro?
[o aveiro; 14/02/2008]
Lemos as públicas notícias dos truques nas câmaras em que os técnicos de uma delas assinam de cruz os projectos dos técnicos da outra onde podem aprovar os projectos que fazem, embora não possam assinar os projectos que aprovam. Temos a vaga sensação de que em todo o país, em cada uma das câmaras, pode acontecer isso mesmo e não podemos fazer coisa alguma contra isso, porque é assim que as coisas funcionam e, se não fosse assim, nem as casas do desenvolvimento cresciam para cima e já há muito todo o progresso se tinha afundado num mar sem betão. Temos a vaga sensação de que sem esses factos consumados não tínhamos construído as casas em reservas naturais, agrícolas, de orla marítima,... nem tínhamos direito a ver a especulação do oito que se faz oitenta para que alguém ou algum grupo num só dia enriqueça por ter sabido um dia antes o que podia ser feito mais por obra e graça de um técnico do que de outro qualquer nosso senhor do planeamento. Temos a vaga sensação de que não vem mal ao mundo por cada um de nós fazer o mesmo que todos os outros fazem ainda que seja errado e até, por vezes, crime. A vaga sensação de que há coisas que se repetem.
Lemos as letras gordas das brincadeiras de corredor em que cada um dá corda aos seus sapatos e fala sobre educação e sobre professores e sobre o que deve e não deve ser e até sobre a melhor forma de atropelar o parlamento e o bom senso como se houvesse uma autoridade com autorização para atropelar as próprias leis, os próprios prazos, a própria sombra. Lemos as letras gordas e nem acreditamos. Sobra a vaga sensação de que tudo está a acontecer só porque está a acontecer e contra isso nada, porque sabemos que o mal está em tudo o que lemos e ouvimos e contra o céu da boca nos bate, porque não sabemos as regras deste jogo de faz de conta, a conta que fazemos ao rosário que rezamos sem sabermos que oração nem a quem.
Não há semana sem senão? Antes isso que um tiro no escuro?
[o aveiro; 14/02/2008]
fátima
levado pelo vento vaguearás pelos corredores
descobrindo o homem e o filho do homem
a quem dedicaste um último verso
uma oração assobiada num anfiteatro
cheio de peregrinos tão atentos
que não ouvem mais que os dentes
mastigando o pão, a alface, o bife panado
fátima
Ao lado da cruz, para onde sobem os olhos, há um fantástico guindaste
que te eleva ao céu assim tu o queiras.
Só precisas de atenção para veres o guindaste na fotografia
e, depois, subir ao céu não é um problema de fé.
ribeira de mágoa
oiço-te como se ouvisse um bater de asas, como se sentisse um roçar
de felino cego à porta do automóvel veloz que atropela o instante
da minha morte
ribeira de pena
recorto a luz das montanhas na espessa sombra dos altos céus:
de um só golpe as separo para ter uma linha de voo de onde espreite deus
aves de cinza
As aves carregaram para os seus ninhos o cotão dos meus bolsos, a poeira à minha volta e até o meu tabaco de cachimbo. Nunca se devem deixar os pacotes de tabaco abertos, mas naquela manhã eu não podia fechar nada que me dissesse respeito.
Estava deitado, com a cabeça enterrada na areia, enquanto as sentia debicar o meu mundo todo espalhado. Não podia mexer-me e as aves tudo levaram.
Quando me levantei tarde demais, persegui cambaleante as últimas aves do meu pesadelo. Adivinhei os seus ninhos pelos cheiro do tabaco e fiquei emboscado a ganhar forças.
Deixei passar os dias. Não me mexia. Seguia fascinado os voos e maravilhava-me com os saques das aves. Partiam e regressavam aos ninhos, sempre em construção, com pequenas partículas nos bicos. Não interrompia a construção. A partir de certa altura, habituadas à minha presença rígida, as aves começaram a debicar por perto e algumas vezes chegavam a poisar nos meus ombros.
Um dia não contive o grito horrível. E as aves esvoaçaram para fora dos seus ninhos. Entretanto, eu, com mil cuidados, subi as traves.
Quando alcancei o primeiro ninho, enchi o cachimbo e, deliciado, fumei o ninho.
pretextos. 1993. arsélio martins
Estava deitado, com a cabeça enterrada na areia, enquanto as sentia debicar o meu mundo todo espalhado. Não podia mexer-me e as aves tudo levaram.
Quando me levantei tarde demais, persegui cambaleante as últimas aves do meu pesadelo. Adivinhei os seus ninhos pelos cheiro do tabaco e fiquei emboscado a ganhar forças.
Deixei passar os dias. Não me mexia. Seguia fascinado os voos e maravilhava-me com os saques das aves. Partiam e regressavam aos ninhos, sempre em construção, com pequenas partículas nos bicos. Não interrompia a construção. A partir de certa altura, habituadas à minha presença rígida, as aves começaram a debicar por perto e algumas vezes chegavam a poisar nos meus ombros.
Um dia não contive o grito horrível. E as aves esvoaçaram para fora dos seus ninhos. Entretanto, eu, com mil cuidados, subi as traves.
Quando alcancei o primeiro ninho, enchi o cachimbo e, deliciado, fumei o ninho.
pretextos. 1993. arsélio martins
dois dedos de conversa
Dai-me dois dedos de conversa - lamuriava o pobre numa das esquinas da praça. Algumas pessoas que passavam, sem perceber o que lhe pediam, deitavam moedas para os ouvidos do pobre.
Dai-me dois dedos de conversa - clamava o pobre. Uma beata, ao passar, com a alma cheia de compreensão pelo seu papel neste mundo, parou para falar com o pobre. Os olhos dele brilharam.
E disse, de novo: Dai-me dois dedos de conversa! A beata começou por lhe perguntar pela família, se não tinha filhos que o cuidassem, se não tinha mulher, se não tinha trabalho, se não tinha vontade de rezar e agradecer a deus, se não tinha tinha, se não tinha cartão de assistência, se não tinha ido à sopa dos pobres, se não tinha ido à cáritas, se não tinha ido à missa, se não encontrava na oração o refrigério para as suas penas, se não tinha ido confessar-se, se não tinha ido comungar.
O pobre virou os olhos para o céu e disse: Pai, porque me abandonaste? A beata ganhou alento e continuou com as perguntas a que o pobre não respondia. Mas agora mais impaciente. Queria respostas e não aquela ladaínha: Dai-me dois dedos de conversa que o pobre teimava em repetir, enquanto ela falava com ele. E finalmente ela desistiu, dizendo, sem perguntar: Você ou é estúpido ou é surdo. Para o ouvir responder: Muito Obrigado.
Ela partiu intrigada, voltando para o confessionário.
O pobre saiu do seu sítio, depois de se ter limpado de todas as perguntas e de todas as moedas. No bolso, embrulhadas no seu lenço,só guardara as únicas cinco palavras que lhe tinham dado: estúpido, é, ou, surdo, você.
pretexos. 1993, arsélio martins
Dai-me dois dedos de conversa - clamava o pobre. Uma beata, ao passar, com a alma cheia de compreensão pelo seu papel neste mundo, parou para falar com o pobre. Os olhos dele brilharam.
E disse, de novo: Dai-me dois dedos de conversa! A beata começou por lhe perguntar pela família, se não tinha filhos que o cuidassem, se não tinha mulher, se não tinha trabalho, se não tinha vontade de rezar e agradecer a deus, se não tinha tinha, se não tinha cartão de assistência, se não tinha ido à sopa dos pobres, se não tinha ido à cáritas, se não tinha ido à missa, se não encontrava na oração o refrigério para as suas penas, se não tinha ido confessar-se, se não tinha ido comungar.
O pobre virou os olhos para o céu e disse: Pai, porque me abandonaste? A beata ganhou alento e continuou com as perguntas a que o pobre não respondia. Mas agora mais impaciente. Queria respostas e não aquela ladaínha: Dai-me dois dedos de conversa que o pobre teimava em repetir, enquanto ela falava com ele. E finalmente ela desistiu, dizendo, sem perguntar: Você ou é estúpido ou é surdo. Para o ouvir responder: Muito Obrigado.
Ela partiu intrigada, voltando para o confessionário.
O pobre saiu do seu sítio, depois de se ter limpado de todas as perguntas e de todas as moedas. No bolso, embrulhadas no seu lenço,só guardara as únicas cinco palavras que lhe tinham dado: estúpido, é, ou, surdo, você.
pretexos. 1993, arsélio martins
Subscrever:
Mensagens (Atom)
-
Nenhum de nós sabe quanto custa um abraço. Com gosto, pagamos todos os abraços solidários sem contarmos os tostões. Não regateamos o preço d...
-
eu bem me disse que estava a ser parvo por pensar que só com os meus dentes chegavam para morder até o futuro e n...