a velha que dança

Há alturas em que parece impossível não termos assunto. E sobre os assuntos do dia, há mesmo quem espere que todos falem, mesmo que não saibam do que falam ou digam o mesmo que já foi dito. Ler e reler opiniões que não adiantam coisa alguma ao já dito, torna-se tão cansativo! O assunto do dia sai da ordem do dia para passar a ser da ordem do horrível Quando um dos nossos assuntos se torna assunto do dia e da moda, sobre o qual todos temos de falar, tornamo-nos mudos para a nossa vida. Mudos de espanto, diminuídos e tristes!
Perdidos do nosso assunto, e incapazes para qualquer outro assunto. Sem assunto, pois.
Tentando não ceder à avalanche das mensagens dos que cavalgam a onda dos professores e da educação(?) numa euforia sem limites, começamos a dar atenção às coisas e pessoas em que não reparamos habitualmente.

À minha frente, uma jovem de negro segue calmamente. Penso em acelerar, mas desisto porque a jovem de negro vai de um lado ao outro do passeio e eu não acerto com os melhores momentos para a ultrapassagem. Ou é ela que é imprevisível na sua forma de andar em frente? Pelo sim, pelo não, deixo-me ir atrás dela que não tenho pressa. Depois da passadeira, parece-me que ela se integra num grupo que já circulava por aquele passeio.
E eu continuo o meu caminho sem assunto. Até que olho para o telefone e relógio que começara a vibrar como um alarme a avisar-me para não me atrasar e a mandar-me acelerar para, sem pressas, chegar a tempo ao lugar do trabalho.

Ao alargar a passada, volto a olhar para as costas que seguem à minha frente. Para escolher a melhor abordagem ao passeio estreito, para a ultrapassagem perfeita. E vejo que a jovem de negro, de novo isolada no passeio, dança ao som de uma música só dela. Eu não ouço, mas é como se ouvisse o som da brisa que a faz oscilar como um junco, em pé e arrancado das suas raízes.

Contrariado, decido mesmo ultrapassá-la. Um pé no passeio, outro na estrada, faço uma magnífica manobra de ultrapassagem. Magnífica, mas ridícula. Ao ouvir a gargalhada, olho para trás. E vejo as linhas e rugas das mãos dançando na jovem de negro. E vejo os olhos brilhantes e alegres de um belo rosto, rasgado por rugas.

A velha que dança vai ficando para trás, feliz por ver-me pelas costas.


[o aveiro; 20/03/2008]

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