do que não existe como detonador

Pelos nossos jornais, ficamos a saber que um furacão devastou a Birmânia e sabemos que ninguém sabe a dimensão da tragédia, quantos são os milhares de mortos ou os milhares de desaparecidos. Pensamos mesmo que não houve quem, a mando da ditadura militar, se tenha dado ao trabalho de contar. Qualquer número serve. Se formos a um mapa deste tempo, nem encontramos a Birmânia. As pessoas do meu tempo lembram-se da palavra e é por isso que os jornais portugueses falam da Birmânia e não de Myanmar. Algumas pessoas podem ter ouvido falar de uma frágil mulher birmanesa que lidera a resistência contra o regime militar. Se o país que já nem é o mesmo nome, não tem birmaneses que possam ser vítimas de um furacão. Como chamaremos hoje aos que nomeávamos como birmaneses? Não sei. Onde fica Rangum? O que pode ter sobrado como desolação? Quem, sendo de longe, viu de perto o que aconteceu, disse que nem bombeiros, nem exército, nem quaisquer autoridades apareceram para socorrer quem pediu socorro, como se houvesse a ausência de estado a somar à desolação. Que podemos esperar de uma ditadura militar omnipresente para a opressão?

Um outro furacão está a varrer o planeta, todo o planeta. A subida dos preços no sector da alimentação mundial é o furacão, a maior tempestade. A subida dos preços do petróleo tornou apetecíveis (lucrativos, diga-se) muitos produtos alimentares tornados matérias primas para a produção de combustíveis. E todos demoram eternidade a decidir se os estados devem intervir na regulação forçada do mercado ou se devem deixar o mercado dos especuladores funcionar, que é o mesmo que espalhar a fome a nível mundial, a devastar florestas, a acelerar mudanças na produção agro-alimentar que já não alimenta bocas humanas e se tornou em mais uma prova da voracidade da besta que não hesita em devorar a humanidade. A besta está a devorar florestas e a assistir às marchas de esfomeados e desempregados com a satisfação de quem vê entrar homens nas bolsas de disponíveis para o trabalho escravo, em troca da côdea, sem lhes ver o crispado coração, o punho cerrado.

Cada um dos constituintes da besta garante que não é parte da besta. Ninguém é o que parece. Estamos em Maio, mês do furacão. Aos poderosos, recomendamos uma visita de estudo ao museu de história natural das devastações. Saibam que tão temíveis são os que nem existem como os que resistem.

[o aveiro; 08/05/2008]

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