o descanso

Pareceu-me poder dizer que, em certas alturas da vida do homem que ando a perseguir, ele traz a cabeça pousada no ombro como se quisesse ver quem o persegue até eu ter a certeza que ele me está a ver. Ele quer que eu veja cada pormenor dos seus pequenos actos desinteressantes até me ver compor o quadro completo de tudo o que lhe tinha reprovado de forma desabrida.

O homem, que eu persigo pertinaz, não se deixa ficar num dos lados da sua vida na esperança que me aborreça e adormeça. Ele mostra-me mesmo nos mais obscuros pensamentos e deixa que eu veja o que ele não sabe. De certo modo, deixa-me ver o seu obscuro modo de fazer ou o seu modo de pensar e até o seu modo de falar nas reuniões. Olho para ele vendo como ele olha os textos. Ele deixa-me ver os acordos e desacordos das primeiras leituras. E deixa-me ver como cada opinião o influencia. Ele deixa-me ver como hesita demasiado até soltar uma tentativa de acordo numa dúvida que deve pairar ou numa sugestão que toma o lugar da dúvida. Ele deixa-me ver como toma o lugar do outro até perceber que mais vale ler como ele, na esperança que todos leiam desse modo esse mal o menos.

De vez em quando, o homem solta-se e deixa que o discurso se solte em alta voz como quem procura respostas nos olhares e nos esgares de quem ouve. De vez em quando, o homem deixa-me ver uma pergunta que se destaca do discurso como se fora uma faca afiada ou uma gargalhada inesperada surgida da dobra onde guarda as memórias detalhadas dos outros, essas que não são para usar. Tenho a certeza que ele dá por mim, que o persigo todos os minutos da sua vida para ganhar a vida, e começo a pensar que ele me dá tudo quanto eu preciso de saber para que eu não me canse. Há detalhes que nem me lembrava de apontar se não fosse a importância que ele lhes dá ao sublinhá-los.

Quando escrevo os meus relatórios, tenho de me controlar para não descrever detalhes que pareçam impossíveis pela observação que eu posso fazer a uma distância que não me denuncie. Tudo me é dado ver e saber sobre o homem que persigo e já sei que só durmo quando ele dorme, sem precisar de pensar nisso.

Eu sou o homem que persigo. Cada vez que um determinado quadro pode ser exposto, descanso. A crítica ao quadro exposto, ainda que errada, é uma crítica sobre o quadro que se pode ver. Porque haverá tanta gente a criticar o que não sabe e nem existe?

[o aveiro; 10/07/2008]

Sem comentários:

somos, fomos, somos, seremos