O nosso anjo mais sisudo está sentado no banco central. Nós olhamos para ele e sabemos que ali acontece o milagre. Não há melhor que ele no jogo do sério: mesmo nos momentos mais hilariantes, para o seu ponto de vista de rico menino, ele não se desmancha. Para o jogo do sério, ele é o ídolo popular. Nem as cócegas na consciência, que a miséria do povo é, o tiram do sério.
Quando ele se arma em nosso anjo da guarda e desata as contas do nosso rosário de tudo querermos para tudo perdermos, eu rendo-me e saio para a rua pregando a má velha e a boa nova:
“Pedintes, pobres de pedir, pobres de espírito, verdadeiros pobres, só pobres, pobres no desemprego e no emprego, pobres sem abrigo, pobres ao abrigo da caridade alheia, escutem a voz da razão, do deve e do haver. Concentrem-se em frente das televisões, aguardem a sua chegada e, repetindo em voz baixa as sensatas palavras e os piedosos conselhos do nosso anjo mais papudo, afastem para todo o sempre e para bem longe de vós toda a ganância, toda a inveja, toda a luxúria, toda a arrogância e toda a preguiça. Trabalhem mesmo que a fome aperte, mesmo que não recebam tostão, mesmo que reconheçam a mão que vos rouba, mesmo que a vossa vida fuja com outro. Sede ao menos uma vez sinceros e reconhecei que o anjo sisudo merece cada um dos tostões do seu salário, por seu sábio acompanhamento cego seguido de salvação do esquema de fraude geral até este patamar de crise global, soma esquecida das suas parcelas locais, a acabar no conselho avisado: invista-se tudo em ajuda aos cotados em bolsa e inventariem-se sacrifícios para os os coitados sem bolsa, de cotão no bolso cheio de côdea nenhuma!”
Habituados a todos os trampolins, os anjos papudos treinam-se para voar, se possível. para lá do fulgor caseiro . A estes anjos não foi a divindade a dar-lhes asas. As asas, que eles usam afiveladas, foram oferecidas por uma geração de peralvilhos, a de todos nós. Eles têm a escola toda e vergonha nenhuma. A sua indiferença foi ensaiada frente aos nossos espelhos de lata e é lata mesmo!
Cegos pelo brilho do sol na lata, louvamos os anjos que nos anunciam os seus termos e condições. E damos graças por arder no lume brando português.
[o aveiro; 08/01/2009]
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