a conta calada

José Sócrates vestiu o (ul)traje da solidão obcessiva. Como se um partido pudesse deixar-se substituir por uma pessoa. Identifica-se e determina-se por oposição, rejeita-se por oposição. Cego e surdo vive num deserto. Há uma multidão de mãos de apoiantes sem cabeça e ideias a erguerem-se para ele como esperança no poder, parece que o levantam aos céus de um filme épico, não sendo eles mais que migalhas ou grãos de uma areia movediça que tudo consome. Há uma multidão que o rejeita como solução e ele não vê mais que uma campanha de rostos encapuçados por negros presságios de desgraça. Todos os dias recebe os mesmos avisos por altifalantes estrangeiros como ecos dos avisos que cá dentro compoem uma paisagem assim não, e ele afasta com gestos impacientes esses sinais voadores e a mosca que não se deixa apanhar e zumbe em vários comprimentos de onda. Já não discrimina o que cada um dos outros diz e tudo reduz a uma mancha sonora de desaprovação insensata. Prega no deserto a maioria absoluta como a criança espeta pregos na areia da praia, só que a criança sabe que prego que se espeta é prego que se desprega para recomeçar sempre do mesmo modo, até que o regresso a casa limpe o rasto do jogo. Mesmo que venha a obter uma maioria absoluta de mãos que pregam como ecos dele, ela só servirá para o reduzir a si mesmo ou a nada. O poder ensurdece e cega. A partir de certa altura, passeará de uma sala para outra por sombrios corredores do poder, movido a ar comprimido numa atmosfera de ar condicionado. O pior que lhe pode acontecer é ser cercado por criaturas de ar resignado que colhem os votos populares como se fossem um só: ele. Ele verbaliza uma razão trágica quando declara que governa, não quem representa, antes, quem é escolhido ou ungido, e, por isso, pede uma maioria absoluta para ser ele o primeiro ministro. E nós já sentimos como isso é verdade.

Por amor das pessoas, de Sócrates, da cidade e dos cidadãos, elevamos a voz contra a resignação e em apelo ao julgamento crítico. Em modo de oração democrática, humildemente, declaramos a nossa esperança nos que tudo ouvem, discutem e levam em conta para criar opinião própria e, em consequência, agir livremente em votações, livres e não condicionadas por fantasmas que confundem a saída da crise com a porta da casa do poder atravessar paredes...

[o aveiro; 6/03/2009]

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pelos olhos dos dedos

já não sei há quantos anos estava eu em Elvas e aceitei mais um que fui