Morreu Isabel Alves Costa
Nascida a 30 de Julho de 1946 no Porto, Isabel Alves Costa, que recebeu em 2006 a distinção "Cavaleiro das Artes e das Letras" do Estado francês, faleceu hoje, dias depois de ter completado os 63 anos. Conceituada figura do meio artístico do Porto, Isabel Alves Costa era, actualmente, directora do Museu da Marioneta após, durante 13 anos, ter sido directora artística do Teatro Rivoli. Isabel Alves Costa doutorou-se em Estudos Teatrais pela Universidade de Sorbonne (Paris, França),em 1997, tendo obtido cinco anos antes o diploma de Estudos Aprofundados no Instituto de Estudos Teatrais daquela Universidade. Isabel Alves Costa fazia parte da bolsa de Júris de Selecção do ICA.
Transcrevo para agora e aqui, um texto que escrevi, há mais de 20 anos, inspirado num incidente que fez da professora contratada Isabel uma professora desempregada. Soube disso por Manuela Ferreira, então educadora num lugar de Castelo de Paiva. Conhecia a Isabel há muitos anos, encontrei-a muitas vezes, mas nunca falámos disso. No texto escrito é tudo ficção (ou quase). Real é a solidariedade de então e a memória de hoje. Trago-a à minha memória como professora contratada.... no seu movimento e drama, como a vida é.
Movimento e Drama
Quando ela entrava na sala, eles já lá estavam sentados pelo chão. E já tinham arrumado para os lados as mesas e as cadeiras. Ao meio da sala tinham deixado a mesma velha cadeira de sempre.
Ela trazia pelos ombros uma manta exótica, a tiracolo uma saca de pano, duas rugas cavadas perto dos olhos, o cabelo atado por um elástico de notas e um sorriso tímido deformando-lhe a boca.
Amélia da Fonte Seca pousa o saco na mesa mais perto da porta, despia pela cabeça a manta que a fazia parecer grande e forte que ia fazer monte por cima do saco. Sobrava sua figura magra e pequena moldada pelas calças pretas coçadas e pela camisola preta de gola alta.
Eles já se tinham preparado e, por isso, o mundo era a sala com o seu espesso silêncio, o de habitantes que esqueceram tudo o que não é a respiração que se ouve.
Neste mundo não corre a mais leve aragem.
Amélia conhce-os bem. Demorou-os nos primeiros exercícios de relaxamento, de apagar as marcas das inibições do uso do corpo em relação consigo e com os outros corpos, nos exercícios do mais profundo acordo e desacordo “consigo mesmo”. Sabe que estão preparados para, a partir de nada, criar outra realidade e vivê-la.
E é como se tivesse crescido o corpo da Amélia, quando se ouviu a sua própria voz:
Filipe! Estás a ouvir o vento? Começou mesmo agora a soprar. E é tão bom neste dia de calor. Primeiro suavemente e depois cada vez mais forte.
O Filipe e os outros olharam-se e começaram a ver. Parecia que o cabelo da Amélia se tinha soltado ao vento e ondulava. E o sorriso dela era deliciado e era como se os dedos abertos dela estivessem a ser refrescados e que o vento estivesse limpando o suor. Todos, incluindo a Mariana que não vai em cantigas, sentiam o vento cada vez mais forte e começaram a ver o mar a desdobrar-se onde antes o soalho não era mais que um tapete coçado. E viram-na desenhar no ar ondas que no ar ficavam bem visíveis.
Apagou a luz. Fechou as cortinas e disse:
Hoje vamos ver os gatos e os ratos. Os seus movimentos para um drama. Olhem para os meus olhos. São amarelos e brilham.
E a Mariana viu que havia naquela escuridão os olhos de um gato. Amarelos e brilhantes.
Quando a Amélia fechou os olhos e os voltou a abrir nada se via. Disse:
Os meus olhos de rato são pretos e baços. O gato não me vê e eu vejo-o e ando por perto. O meu corpo é cinzento e baço. Quando o gato me cheiram, os olhos brilham-lhe (e viram-se os olhos do gato Filipe brilhando), mas eu escorro por baixo das mesas e pelos buracos (e sentiu-se a Mariana correndo para baixo da mesa do fundo).
A voz da Amélia, depois a voz do tímido Joaquim de Albergaria, criaram uma tempestade. E viu-se a faísca que o Joaquim criou e viu-se a trajectória dos olhos amarelos do Filipe que saltava para abraçar com as suas garras o rato Mariana, descoberto pelo flash do relâmpago. Sentiram que a Mariana estava morta e era arrastada para o canto mais tranquilo onde o gato Filipe despedaçava as suas presas.
Amélia acendeu a luz, abriu as cortinas. E disse que tinha sido bom.
Vestiu a manta, pegou no saco, verificou se tinha o passe para regressar ao Porto e lembrou o ensaio de 6ª.
Foi assim e diferente a vida da Amélia. Tinha abandonado tudo ao tempo da pura euforia para pegar e largar futuros professores do ensino primário, capazes do movimento e do drama.
Trabalhou. Recebeu o seu magro salário de contratada a prazo. Feliz uns dias. Cansada sempre. Mas das suas aulas criadoras de vento, ficaram sulcos indeléveis nas aulas de gerações de professores. Alguns, regressados à terra, por lá andam criando tempestades e inventando o drama do gato e do rato e mudando a face do mundo.
Mas Amélia da Fonte Seca não tinha uma ciência exacta para dar, nem tinha procurado licenciatura para se segurar e segurar outros contratos melhores. E um dia o Ministério descobriu que tinha de eliminar uma despesa. Procurou a despesa como um gato atrás do rato. Uma faísca iluminou o canto do Magistéio emq eu Amélia se escondia. As garras de tinta vermelha dispensaram para o canto dos desempregados a Amélia da Fonte Seca.
Não é pura coincidência se esta história lembrar alguma realidade que não é das criadas pela Amélia. Talvez a Amélia exista e exista este movimento e este drama.
O Filipe e a Mariana dizem que o Joaquim de Albergaria já não distinguia os dois mundos e, por isso, partiu para lá onde decretou que nada disto pode acontecer. Perturbador é viver deste lado do espelho. •
dedo no ar.4, 1ª série, 24/01/1986, rádio independente de aveiro, pela vo de josé antónio moreira
1 comentário:
Arrepiante o texto. Real a imagética para onde somos convidados e que se cheira a cada palavra. Lindíssima a homenagem a uma grande Senhora! Parabéns! comovidos.
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