caminhos do deserto

mais um ataque de tosse e acordei
para um duche de manhã solarenga
antes de vestir um fato cinzento
domesticado para passar por um funeral

mais um ataque de tosse e levantei-me da cadeira
para sair a caminho da igreja onde as pessoas velam
uma ausência

ataquei o cachimbo com gestos precisos
para seguir a caminho da biblioteca mais perto

e desistir da igreja onde não faço falta à ausente
nem a mim enquanto penso num sonho interrompido
pela memória de quem é já vento e viagem de fumo

desfeita por um novo ataque de tosse que bate à porta
de capa dura do livro  dos mortos em vigília

Os doentes...

... esperam na sala de espera antes de serem examinados e internados. Raros são os doentes mentais a quem se recomenda como terapia algum tempo num governo.

mumumummmmmm

eu sei que mostras olhos de boi manso

mas quem atenta no pescoço dobrado para a frente
enquanto velas ameaças
sabe de que maldade és feito animal

Assombração


Ontem compareci à chamada, na Associação Comercial de Aveiro,  para mais uma sessão plenária (plena de gente daqui) sobre o canal central e a ponte pedonal, promovida pelo Diário de Aveiro. Antes de lá chegar, sempre fui tirando fotografias ao canal para memória futura ou para me lembrar o que eu gosto de ver (pela alvorada, durante o dia, à noitinha ou alta noite de murmúrios). De pés no chão e olhos na água, caminho  pelas margens muitas vezes - canal de s. roque, canal das pirâmides, canal central, ...  Vejo as casas refletidas nas águas e chego a querer morar em casas ao espelho. Gosto de pontes, claro. Uma ou outra para me deixar levar de uma margem à outra. Mas gosto principalmente da vista da água e de quem por  lá anda. E gosto da água do canal central,  onde se espelham barcos, casas, árvores, ...  e o céu que as cobre. Há troços de água sombria, pontes entre résteas de céu escondidas na sombra das pontes. Ainda há céus sobre as águas: fonte nova e abençoado canal central que me mostra a água do céu mergulhado num espelho sem sombra.
Uma ponte ali? Só como assombração!

Ferreira Fernandes:
Não leia, isto é velho de 75 anos

(enviado por Diana Andringa)

A agência de rating Moody's baixa a nota da Grécia; as taxas de juro explodem; o país declara falência; a população revolta-se; o exército toma o poder, declara-se o estado de urgência e um general é entronizado ditador; a Moody's, arrependida pelas consequências, pede desculpa... "Alto!", grita-me um leitor, que prossegue: "Então, você começa por dizer que vai recapitular e, depois de duas patacoadas que todos conhecemos, lança-se para um futuro de ficção científica?!" Perdão, volto a escrever: então, recapitulemos. Só estou a falar de passado e vou repetir-me, agora com pormenores. A Moody's, fundada em 1909, não viu chegar a crise bolsista de 1929. Admoestada pelo Tesouro americano por essa falta de atenção, decidiu mostrar serviço e deu nota negativa à Grécia, em 1931. A moeda nacional (dracma) desfez-se, os capitais fugiram, as taxas de juros subiram em flecha, o povo, com a corda na garganta, saiu à rua, o Governo de Elefthérios Venizelos (nada a ver com o Venizelos, atual ministro das Finanças) caiu, a República, também, o país tornou-se ingovernável e, em 1936, o general Metaxas fechou o Parlamento e declarou um Estado fascista. Perante a sua linda obra, a Moody's declarou, nesse ano, que ia deixar de dar nota às dívidas públicas. Mais tarde voltou a dar, mas eu hoje só vim aqui para dizer que nem sempre as tragédias se repetem em farsa, como dizia o outro. Às vezes, repetem-se simplesmente.

Passos

quando falas do zero absoluto como se neutro fosse o que é absorvente
as pessoas adivinham-te cornos onde tiveste caninos

A ponte

Na ultima sessão pública da Câmara, muitos mais aveirenses do que o costume compareceram para discutir a ponte pedonal do Rossio para o Alboi. Muito bom o trabalho de grupos de cidadãos atentos e capazes de discutir verdadeiramente a cidade. E correspondido, como se viu.
A ponte pedonal foi defendida pelo presidente da Câmara com vários argumentos. Um deles é m argumento habitual - facto consumado que se aceita discutir; o povo pode discutir, mas não pode mudar uma decisão errada ou, pelo menos, mal informada e mal debatida.
O outro é a declaração de amor pela mobilidade dos peões. No regresso a casa, verifiquei que ainda existem as ruas com passadeiras sem rampas, com rampa de um só lado da rua, sem passeios ou com passeio interrompido por muro, com charcos de água para regar peões à passagem dos carros, com obras a interromper passeios sem qualquer cuidado digno desse nome que é o mesmo que dizer sem qualquer inspeção camarária. Ainda existem. Passei por elas. Sei que o amor da Câmara pelos direitos dos peões é mentira para os peões verdadeiros que também andam a pé pelas ruas quando vão das suas casas para o trabalho. Talvez seja verdade para os presidentes de câmaras que vão de carro para a câmara ou vão de carro até aos lugares feitos para peões atletas. O enquadramento da ponte numa estratégia que pretende afastar os carros do centro da cidade significa o quê para quem vive pelo seu pé? Uma estratégia boa, dizemos todos. Um argumento oportunista, paleio politicamente correto por quem mantém uma prática quotidiana de desprezo pelos peões e desprezo pelo debate sério com consequências e mantém o hábito ordinário de não responder aos cidadãos com problemas concretos enquanto mantém o ambiente de diálogo para conversas da treta.

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