danças da manhã
às tantas, as danças da manhã são endireitadas ao ritmo dos sinos de uma madrugada insone de quem não descansa enquanto não puxa pela corda com que badala até ser dia.
danças da manhã
- ela ri de tudo o que acontece
ela ri de tudo o que acontece
quando se aninha no meu corpo
e ele estremece
e, quando na brusca busca do corpo,
o corpo adormece
ela ri de tudo o que não acontece
- quando acordares estás servido
quando acordares estás servido
pela desquímica do teu desejo:
o sumo de laranja, o ovo cozido
o café da manhã , o adeus e o beijo.
quando acordares estás de malas feitas
e em vez da vida escolhes o emprego
vala comum de onde espreitas
a esquina subterrânea e o palco do cego
toma o teu lugar, despe o cheiro,
pendura as palavras que disseste
no teu tempo mais inteiro
mas se não puderes despir a glória
da noite que viveste
queima a farda para aquecer a memória. - com as unhas abre um corredor
com as unhas
abre um corredor de maresia e sémen
nas palmas das mãos
abre os vales de um labirinto para o fio do sangue
de modo a que eu te encontre enquanto te persigo
e antes de acordar
a palidez da vida.
- podes sempre imaginar a arquitectura
podes sempre imaginar a arquitectura
como uma palavrosa e teórica estrutura
que explique como da manhã se faz a tarde
podes sempre imaginar que não és deste mundo
e que buscas a imperfeição que abandonaste em vida
seduzida por um anunciante de produtos para a felicidade
podes sempre imaginar um molde
para as tuas idas e outro para os teus regressos
e uma harmonia para os editais das tuas promessas.
- espero na manhã cinzenta
espero na manhã cinzenta
o sossego do jardim molhado:
uma árvore que estremunhada estique
os ramos e cante
ou que uma ave presa dentro dela cante.
quando
a multidão das aves se calar
uma gota de silêncio caia lentamente para o ar.
-
sábias mãos no corpo da manhã
sábias mãos no corpo da manhã
sábios os dedos quando
entram e abrem – entreabrem
os seus lábios
sábia a língua que fala a língua
do corpo da manhã ao seu baixo ouvido
sábio o sexo que ouve compreende
explode e não se rende
mesmo enquanto sucumbe
assim, a lança
que fende
desvela uma fenda
de luz.
-
e a mãe do actor faz de virgem faz de conta
e a mãe do actor faz de virgem faz de conta
num bordado a ponto de cruz
contracenando com uma madalena barata e tonta
dos braços em volta, os laboriosos dedos
procuram o calor de uma nesga da luz
coada pelos martírios dos medos
foi publicada há muitos anos e eu não me lembrei por ter sido mas por voltar a ser ou a não ser...
© adalmeida
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