danças da manhã

  1. ela ri de tudo o que acontece


    ela ri de tudo o que acontece

    quando se aninha no meu corpo
    e ele estremece

    e, quando na brusca busca do corpo,
    o corpo adormece

    ela ri de tudo o que não acontece




  2. quando acordares estás servido


    quando acordares estás servido
    pela desquímica do teu desejo:
    o sumo de laranja, o ovo cozido
    o café da manhã , o adeus e o beijo.


    quando acordares estás de malas feitas
    e em vez da vida escolhes o emprego
    vala comum de onde espreitas
    a esquina subterrânea e o palco do cego


    toma o teu lugar, despe o cheiro,
    pendura as palavras que disseste
    no teu tempo mais inteiro


    mas se não puderes despir a glória
    da noite que viveste
    queima a farda para aquecer a memória.



  3. com as unhas abre um corredor


    com as unhas
    abre um corredor de maresia e sémen


    nas palmas das mãos
    abre os vales de um labirinto para o fio do sangue
    de modo a que eu te encontre enquanto te persigo
    e antes de acordar
    a palidez da vida.



  4. podes sempre imaginar a arquitectura


    podes sempre imaginar a arquitectura

    como uma palavrosa e teórica estrutura
    que explique como da manhã se faz a tarde

    podes sempre imaginar que não és deste mundo
    e que buscas a imperfeição que abandonaste em vida

    seduzida por um anunciante de produtos para a felicidade

    podes sempre imaginar um molde
    para as tuas idas e outro para os teus regressos

    e uma harmonia para os editais das tuas promessas.



  5. espero na manhã cinzenta


    espero na manhã cinzenta
    o sossego do jardim molhado:
    uma árvore que estremunhada estique
    os ramos e cante
    ou que uma ave presa dentro dela cante.


    quando
    a multidão das aves se calar
    uma gota de silêncio caia lentamente para o ar.



  6. sábias mãos no corpo da manhã


    sábias mãos no corpo da manhã
    sábios os dedos quando
    entram e abrem – entreabrem
    os seus lábios


    sábia a língua que fala a língua
    do corpo da manhã ao seu baixo ouvido
    sábio o sexo que ouve compreende
    explode e não se rende
    mesmo enquanto sucumbe

    assim, a lança
    que fende
    desvela uma fenda
    de luz.



  7. e a mãe do actor faz de virgem faz de conta


    e a mãe do actor faz de virgem faz de conta
    num bordado a ponto de cruz
    contracenando com uma madalena barata e tonta

    dos braços em volta, os laboriosos dedos
    procuram o calor de uma nesga da luz
    coada pelos martírios dos medos


foi publicada há muitos anos e eu não me lembrei por ter sido mas por voltar a ser ou a não ser...
© adalmeida

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pelos olhos dos dedos

já não sei há quantos anos estava eu em Elvas e aceitei mais um que fui