A CABEÇa perdida

à uma 

 arnaldo virou-se para a mulher e disse: tire os olhos do pato! e não se debruce tanto!
a mulher tinha nome e disse-o, em voz demasiado alta: chamo-me eunice de brito e tenho nove anos.
arnaldo pendurou o enfado nos olhos e bocejou: aahahahmanhã vai choooover mais do que hoooooje.
não se sabe porquê, mas o homem que acabava de chegar dirigia-se à mesa ao lado da raínha da prússia, sentou-se ao colo do conde de alenquer e gritou para o garçon que pairava acima das conversas e sempre atento aos desejos dos comensais: traga-me o lagostim mais suado.
o garçon não respondeu. então o conde, sem deixar de cofiar o bigode com a perna da lagosta, endireitou ligeiramente o olhar e, mal alvejou o garçon com os seus olhos aguados e frios, disse secamente: o menino quer lagostim mais suado.
o garçon não ligou e abandonou a cena a caminho do hospital em que agoniza a sua amante marquesa de fonte seca que lhe vai deixar o título e uma carta de recomendação para o regente.
há-de dizer-lhe com a voz moribunda que não houve dias suficientes para pensar nisso antes da febre que a prostrou e que a invenção da bicicleta foi a sua morte. o garçon gritou-lhe para o ouvido: tenho nome, chamo-me alexandre da macedónia e soube hoje que sou seu filho.
o médico chamou o cangalheiro e recomendou, em voz baixa, que não aplicasse a cruz no caixão daquela infeliz que tinha dormido com o próprio filho.
disse o cangalheiro: que mal tem? também eu dormi com os meus filhos até à idade de irem para a tropa.
o médico deu de ombros e foi tratar da menina mercedes que se hospeda em sua casa nos dias feriados, para ser tratada do melhor de tudo.
o menino do conde saltou do colo e, depois de beijar a raínha da prússia, correu em direcção à retrete. arnaldo pegou na mão de eunice e perguntou-lhe se ela se importava de tomar conhecimento da sua relação com o conde. disse ela: antes pelo contrário, meu marido é bem atraente e faz-lhe bem mudar de par.
arnaldo espantou-se: mas você é de brito, como pode ser de alenquer?
ela resmungou: alenquer é a terra do avô do meu marido. ele não sabe onde é, mas eu sei que já lá dormi com um chaufeur russo, de nome miucha.
eu conheço-o - lembrou-se arnaldo, - era meu meio-irmão por parte do meu avô. como pode ser? - perguntou eunice, muito corada.
pode, mas isso já não interessa, ontem matei a minha família toda, não quero mais ouvir falar dela - disse o arnaldo e olhou para o conde. este, absorto, mergulhava os olhos numa pequena bacia de água. o menino do conde aproximou-se da bacia, pegou nos olhos,limpou-os a um guardanapo cuidadosamente e guardou-os no bolso.
ouviu-se: a luz voltou!
com o dedo, o conde limpava os buracos dos olhos, como quem limpa o nariz.


às duas 



as crianças foram deitar-se.
afinal quem é você? - perguntou eunice.
eu era camponês em abravezes, mas perdi as terras. disseram-me que iam construir uma escola na terra que eu tinha passado a vida a estrumar. fiquei marcado para o resto da vida. quer ver? mesmo aqui ao lado do mamilo direito. está a ver? - arnaldo falava sem parar - abandonei tudo e vim enriquecer para a cidade dos prazeres.
eunice teve tempo de dizer qualquer coisa como fez bem antes de arnaldo continuar a sua história. agora já não acredito em nada. antes de vir para a cidade ainda acreditava em alguma coisa - peregrinei por santuários, escrevi versos a nossa senhora e estive até em frente de um rio que de mim corria, decidido a afogar a minha alma para que ela não perdesse a fé. tudo isto se passou em rio de moínhos quando eu caiava as paredes em grossas gotas.
acreditava nas pessoas?- atreveu-se eunice a perguntar.
arnaldo sem parecer ouvi-la continuou: eu não acredito, simplesmente não acredito, para mim as pessoas valem pelo que fazem e eu vejo fazer, pelo que dizem quando as ouço dizer, pelo que procuram com o olhar e eu vejo olhar. não sei para que servem os ideais. ser feliz é ter as mãos atadas enquanto contamos a nossa história e ela nos vai desatando, não acha? eu nem sei se a história que contam de mim é aquela que quero ouvir. de qualquer modo não podem iludir o que contam de mim, que matei a minha família, que não quis lutar para conservar o meu pedaço de terra, que busquei a paz onde ela existia. que mal tem procurar a beleza entre as ruínas da beleza? que mal pode ter roer as unhas depois de ter limpado o esterco dos porcos? toda a vida antes desta vida me deram ordens sem sentido, como podiam esperar que eu me defendesse e lutasse? ainda não percebi porque é que o meu irmão pegou na forquilha e foi ver as tripas do presidente do município. diga-me eunice que beleza podia esperar ele nesse gesto? sabe que dizem que ele as lavou, muito bem lavadas, as pôs em vinho e alho e estava a comê-las bem refogadas quando a polícia veio buscar-nos? e eu a pensar que eram do porco da comadre etelvina. devo confessar que ainda agorinha senti o cheirinho desse tempo. para onde eu não quero voltar.
você fala demais - disse o homem de bata branca que se aproximava, brandindo o que parecia um bistúri
.
eunice levantou-se e disse gostava de ter uma bata branca como a sua.
meninos, está a acabar o recreio - ouviu-se ao longe. corriam, em fila, como um regato evitando as pedras.
passado algum tempo, entrou uma imagem de cera com a cabeça a arder e os lavradores e o arnaldo, presentes na acção de formação, entoaram em coro o hino da lavoura. 



às três

ainda me lembro disso. não era nada natural a maneira como ela pegava no gato. arnaldo comentava a antiga atitude de atirar os gatos ao poço. ninguém ligava e continuava toda a gente a beber água daqueles poços cheios de gatos podres. o menino puxou de duas pequenas pedras bem redondas que trazia no bolso e atirou-as, primeiro uma, depois outra para o poço. viam-se as circunferências concêntricas se repetindo à superfície da água e lá no fundo dois olhos brilhantes e fixos como estrelas. voltámos as costas a todas as imagens e caminhámos para aqui, onde nada se reftecte. concluiu arnaldo a sua narração sombria. todos se calaram. eunice desaparecera já há um bocado. voltava agora com arnaldo pela mão. este tinha perdido a cabeça. tropeçava por isso em todos os móveis. eunice, ao passar pela mesa do conde, poisou a cabeça perdida de arnaldo e disse: tem nome, chama-se arnaldo e não dá por outro nome. não te esqueças.
o conde disse: eu sei.

escrito para  revista "decotes 1 "   
projecto já

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pelos olhos dos dedos

já não sei há quantos anos estava eu em Elvas e aceitei mais um que fui