1995' Pintor João Pires


1.

O alimento dos animais e das plantas~e ainda a nuvem que cai do alto sobre o cristal destapado pelos cascos do vento  indomado. Num fio de água, de metal e vapor, a raíz mineral abraça a pedra. Do cerne viscoso da pedra um caule de vida vegetal brota …  para a luz uma fonte vira o seu olhar azul.

O pintor recolhe as marcas dos cascos do vento.

2.

Uma árvore está plantada onde o lago começa. O poeta disse que a árvore ore bebe a tensão do espelho em que o sol reflecte a sua vaidade, que não bebe a água e que, ao contrário dos pensamento dos pintores, é a folhagem que bate e expulsa o vento. O poeta sabe que é o sol quem vagarosamente bebe o vapor de água.  O pintor recorta com todo o cuidado um quadro dessa neblina da manhã.

O pintor atira a pedra rente à superfície das águas e conta as vezes que a pedra salta antes de se afundar na tela do lago.

3.

Porque te hei-de mentir em cada movimento.   Que me custava obedecer-te.  Estas. são as dúvidas da máo do pintor que treme.

Ateia o fogo à cabeleira do pincel e deixa'o contorcer-se  de dor sobre a tela … este é o conselho do poeta amargurado que habita a oficina do pintor.

Antes de pendurar as folhas brancas e suadas, para que corem expostas à vergasta do sol e à malícia humana, o pintor espreita a todas as portas iguais que todas as telas sâo.

O pintor tenta ficar sossegado, apesar do que vê quando se espreita.

4.

Homens devoraram uma aldeia e dela resta uma inóspita terra de cegos e as visões obstinadas de uma imortal bruxa.

Os pintores são cegos ew vivem na aldeia da bruxa das visões. Nuns casos, são eles que pintam a partir da descrição que ela fala. Noutros casos, eles só fornecem as cores e é ela que, em transe, devolve-se as paisagens e a loucura dos evidentes.

Os pintores contam o que sabem a ninguém.


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Aveiro, 1995

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