experimental envio de coisas escritas por Arsélio que foram ditas e perdidas em radio, jornal, etc esperando que me digam se quiserem...... obrigado só eu

 

A minha vontade naquele dia de inverno era fugir. Mas a minha mãe é quem decide quando é que as foicinhas precisam de ser afiadas no ferreiro. E para mandar um filho a casa do ferreiro são precisas palavras cortantes. De modo a que se vá até lá num pé e se volte noutro. De modo a que se voe. De modo a que a bicicleta vá tão depressa como se se evaporasse e voasse como a poeira voa quando se solta, partícula a partícula, sob os cascos das bestas aladas. Ela disse quase meigamente: Vai lá! O gado pode esperar.
Só me lembro de  ter trepado para a encosta da  bicicleta e, com um impulso vigoroso do pé no pedal,  arrancar dali para o lameiro, seguido pelo aplauso das poeiras estremunhadas.


Ainda hoje me pergunto o que terá acontecido. Mas esqueci-me de todas as chaves que abrem a porta da aldeia.
Outras vezes, a memória é assaltada pelas pedras da forja. Vejo-as  a bater asas incandescentes  e a voar porta fora. E ouço ainda o uivo negro, o silvo do sopro mineral sobrevoando o largo do ferreiro, quando se molda o malho do guerreiro e se amolam as navalhas  para o combate que sangra o campo de batalha esventrado por uma mágoa que cresce até ser mais que dor.
Vejo nitidamente os olhos criminosos  que brilham na escuridão e nem em sonhos quero saber de quem são, raiados de golfadas de sangue. Há  mortos frescos a dormir na minha infância. Talvez antigos animais domésticos.





À chuva e ao vento, a vida corre numa estrumeira nevoenta que a criação debica, infatigável, como se fosse algodão doce este nevoeiro sólido.
Na casa do ferreiro  o pátio é um poço fundo  e escuro, as paredes negras de carvão.
A luz é ateada pelo vento.  Dirás que é  réstea solar um resto da labareda da  fogueira  avivada pelo fole ofegante na tentativa vã de moldar e soldar a  asa de cobre nas costas do santo,  de costas em seu nicho de glória. Polida até dar luz;  a asa de cobre cega o santo e a  senha e abre uma nesga.
Uma filha asmática busca ali o consolo de ver o ar suspenso em suas gotículas de luz.



Eu vi como a  família do ferreiro adora todos os seus bichos, quase todos aleijados ou com maleita que não podem esconder.
Mais que todas, a família do ferreiro adora os seus animais domésticos. Como noutras casas, também a prole do ferreiro cata  pulgas e piolhos, limpa e escova. Acaricia mansamente os animais tão docemente como os mata para a festa canibal.  Matam a fome das crianças sem memória com a carne dos amigos.


Em casa do ferreiro, as bestas são mais  úteis e, por isso, mais amadas. Nelas, o ferreiro  experimenta a eficácia das ferramentas: Aguilhões supliciais que sangram nos costados domésticos como bandarilhas na arena da casa. Aquelas facas curvas de poda que desbastam os cascos até que cada pegada na estrumeira se encha de sangue.
Cheio de medo e repugnância, vejo a gratidão animalesca nos olhos postos na manjedoura que cheira a milho verde e a sal grosso.



Eu vi a pá de bicos aguçados da forquilha marcada na barriga de uma cadela meio cega como ordem de expulsão de uma estrangeira. Em casa do ferreiro.
Não tínhamos ensinado o horror e ter piedade e compaixão é coisa que não se ensina. Bastará compreender, com medo, o pavor que vai nos olhos da besta?
Uivando e batendo  pés em roda a família cega lapida em vida um céu de pó. Muito tempo passado e no chão  sangrado ainda sobra um lombo de sangue seco. Entretanto, os bravos guerreiros voltaram a zurzir os tambores de cobre martelado.




Se tapamos  os olhos às vacas é para que não enjoem. Nunca disputamos a distracção das vacas na dança de roda. A vaca em volta do poço,  faz rodar um eixo vertical que, chumbado no engenho, por sua vez,  transmite a sua rotação roda contra roda dentada  até, alcatruz após alcatruz,  inundar a caleira e matar a sede ao ar seco.
Esse é o engenho do ferreiro. O meu engenho é outro, criou raízes em pés da criança nómada que  deslizam no rodado de poeira finíssima, dentro da tempestade  de areia dos cascos  que dançam.
Os meus braços esticados, cintilantes de suor,  acrescentam-me como cauda  à vaca cega.


Os cômoros rasgam-se para que a poeira venha encaminhada pelas estreitas regueiras caudalosas.


Quando o meu avô voltou nem nome tinha por ter sido americano até  se ter esquecido do tempo em que tinha sido português. E vagueava pelos caminhos sem saber porque voltara para ali e sem cuidar de saber quem tinha na aldeia. Ele queria ser o que se mostra, o que se apresenta. Só que a  aldeia não aceita quem se mostra como é  e  foi preciso que a minha avó o crismasse como o homem do seu passado apesar de ele já não ser o ferro em brasa, a queimadura  na sua juventude de nove sementeiras.
Ela rasgou a blusa para mostrar as marcas e ele a reconhecer longínqua.



Lembro-me de gritar às vacas e aos bois, de os picar com os aguilhões que eram braços, longas varas afiadas  em vez dos meus braços que arrastavam  pelo cabeçalho  os caminhos e o mundo. Ao contrário dos meus, os braços do meu avô eram raminhos para  afagar as vacas e sacudir moscas e sem as matar.  Era o que diziam os vizinhos  a rir-se de mim e do ferreiro que era  afinal  quem aguçava todas as pontas das armas da aldeia em armas, em alerta.
O meu avô não era daquele lugar. Pelo menos, tornara-se um espantalho pregado num caminho pedregoso,  os olhos vazados virados  às armas silvestres.





O ferro vermelho, depois de batido na bigorna, era temperado  a negro pelas águas da dorna vertidas na celha do velho Calças do Lameiro.  E era esse ferro que procurava a primeira maçã  de adão, a mais saliente, para colher, do  porco do vizinho, a vida, o sangue, o sangue. O curto guincho estridente do dia do juízo insuportável é um ferro que entra no coração da gente, vindo do pescoço.
Com um ramo de louro,  batemos a  tona do sangue, o sal, o vinagre e o cobre. O estertor ainda se sente e já o sangue vai a cozer. Um alguidar fica como que abandonado por ali a receber os pingos da morte.

a casa do ferreiro  da mãe do pai do avô do pai da avó da irmãe dos irmãos dos etc



O cobre martelado ouve-se bem quando canta a forma que toma na bigorna. E brilha reflexos de ouro, na paz do dia para que te preparaste: as tuas bodas.
O ataque de coração que temias demais, acontece como acontece um toque a rebate, a finados. Vem lembrar-nos, no bronze do alto sino, quem fomos no nosso tempo, os homem que viram as suas máquinas bombeando veneno em seu movimento sem-fim, perpétuo, sístole-diástole-sístole,...,  fim.
Dizem-te que até o fim é efémero.



As mulheres da minha aldeia dispensam as lâminas das facas quando separam o bordado rendado, a teia de gordura, a elástica estrutura na nave das tripas cheias.  E para  fazer as partilhas comunais do sangue talhado ou para  desmanchar o corpo que o pino enxugou.
São  as unhas que cavam  fronteiras  entre as peças como se sentissem linhas de soldadura, prontas a ceder à carícia de uma mão assassina.
A feminina lascívia  vai solta em seu passeio  pela carne.


Morres um pouco cada dia de vidro que é cada noite das brilhantes meninas dos olhos ou das meninas do ferreiro do espeto de pau.
Na casa da eira sofrias as ausências  entre os sacos, enquanto ouvias moer o  milho  e a verdade até ser farinha.
O ciúme era um fio de ferro ao rubro dentro da tua cabeça, de uma orelha à outra.
Voa ainda hoje pelos capilares do corpo, subindo até à alma, o ciúme. E é por isso que finges não ter alma essa  e assim sofrer menos.





Pelo menos  é isso que mostras. É isso que parece. É assim que parece. Que apareces.




Quanto pau tem uma faca a mais que ferro? Ou a roda  de um carro ou a gadanha da morte? Ou a foicinha ou a enxada que abre a regueira?
No lagoaceiro e guia a água até se sumir no leve areal onde o milho não sobrevive e a abóbora raquítica e bêbeda da tua água boleca te serve de desculpa  para veres as pernas das cachopas  passando, com seus carregos de  feijão arrancado pelo pé.
Mal se endireitam as cachopas  na voz e é para murmurar coitado do rapaz!  Tão mordido pelas leituras que nem sabe que fazer do entrepernas!
Por onde quer que passes o beijo verás. Nas esquinas das casas, a argola que amarra as bestas e  o cano da fonte, na praça, tudo são marcas da oficina do ferreiro.
Que raiva! Quando a  filha do ferreiro desinfectava a agulha da seringa no álcool ardente e  te distraíam até que,  em teu delírio,  perdesses  a vergonha antes que te perdesses  na dor.
Na ideia absurda, mas verdadeira, que atazanava os teus cornos de aço, a razão era a tua. A tua razão não tinha que ser razão para toda a gente.



O meu avô sentava-se na berma da 109. Lia o jornal do dia e dormitava  livros americanos acenando a quem passava.  Pouco falava. Se me lembro de coisas que ele fez?
Uma guitarra e piões em madeira. Bustos de mulher em pedra de ançã de antigas lápides  do cemitério,
Melhor me lembro como  a minha avó as desfez a golpes certeiros do machado afiado para o outono da lenha do inverno e de todo o ano.
Antes fosse bêbedo meu avô sem  arte, sem literatura e  sem mistério. Assim ninguém o via quando ele vagueava no seu modo translúcido de uma garrafa para outra de aniz escarchado depois de já ter bebido toda a genebra que havia na aldeia, todo gin e todo o whisky.
Por via dele  tinham entrado no comércio local. Por via da minha avó tinham saído, que as proibia à medida que se esgotavam os stocks.

Escondido entre pinheiros e incêndios, masturbaste a tua aldeia. Ou foi outra aldeia qualquer? Ou foi mulher que o desejasse e não te desejasse em mais que à tua mão decepada na guerra colonial e logo substituída por um toco de madeira verde para depois ser puída pela tua vida. És uma carícia de pau envernizada. Honesta caricatura de carícia, mas não mais que isso. 
Antes assim que peso morto em contentor de chumbo! — dizias tu para quem te queria ouvir. Não sei se acreditavas nisso que dizias. Eu acreditava.




De que me hei-de lembrar? Se a aldeia tal como a conheci nem existe já e as pessoas fugiram a sete pés de lá para fugir dos seus mortos que não páram de as atazanar com as promessas por cumprir e a inveja da vida que levam antes da morte que as leve. A aldeia é a cobrança coerciva de uma dívida que nunca existiu senão como sentimento de culpa pelos gatos que se afogaram cumprindo ordens ou outras maldições menores tais como pecados mortais que não matavam, da cobiça da mulher alheia, da inveja e da preguiça. Os outros nomes dos pecados nem sabíamos o que queriam dizer. Como podíamos cometê-los? Devo dizer que ninguém cobiçava a mulher alheia que para ali estava como se não estivesse neste mundo. Nós só pensávamos que era maldade da parte de Deus não a ter levado quando era um anjo leve e não aquele peso que a aldeia inteira não conseguiu carregar aos ombros nem ninguém consegue contar o que a aldeia fez para a levar até à cova. Estavam lá todos e ninguém se lembra. Não é estranho?



Discurso das águas (Arsélio Martins)
E a ti, que foste o companheiro do companheiro, apontarei o poente do infinito, ou apenas a luz da tarde em que brilham a rosa e o ouro, ou apenas a solidão junto ao mar, ou apenas a notícia do amor entre as pequeníssimas folhas dos choupos.
A ti, que foste companheiro do companheiro, apontarei o dia seguinte, um nascente vermelho, uma nascente, ou apenas o cheiro da água corrente, ou apenas o lugar do novo primeiro e original encontro para outra sagração da primavera, outro início de luta.
A ti, que foste companheiro do companheiro, lerei a sina. Do passado ao futuro, acácia batida pelo vento ou rasto de fragrância de louro colhido, vai devagar, para que, o menino que também és, te possa seguir.
Isto não é um discurso, mas eu sou aquele que fala. Olhem para mim. se puderem, vejam como eu estou aqui entre outros, um entre outros.
Não vim fazer um discurso, mas dar palavra às águas que nos atravessam, quando a emoção galga das nuvens do peito para se sumirem como as ondas se somem nos areais ressequidos em que nos esculpiram os rostos.
Não vim fazer um discurso. Vim dar a um mar de palavras de água e são as líquidas palavras por dizer que não me deixam calar.
Amanhã, o nosso rio retoma o seu curso e, com ele, partem as palavras em que nos afogámos hoje.
Um homem com consciência, que abandonou este nosso mundo para abraçar a loucura, colecciona palavras na foz deste rio. Ele guarda-as porque guarda a areia em que foram escritas pelos dedos da água nos bolsos do seu passado sem futuro.
E eu vim aqui para defender a felicidade sem futuro: a felicidade de hoje.
Quem tudo faz em nome da felicidade do futuro, sacrifica a felicidade de cada momento. Em nome da felicidade do futuro, se forjam todas as tiranias do presente que tentam ser tiranias de todos os hojes daqui até ao futuro.
Apresentam-nos a felicidade como uma linha do horizonte e a linha do horizonte afasta-se à medida que dela nos aproximamos.
Eu vim aqui para defender que a nossa felicidade de hoje é uma parte imprescindível da felicidade do futuro. 
Pode não ser, mas a escola em cada dia de hoje deve ser escola de pessoas felizes e (que) é essa a escola que pode construir algum futuro que importe. Uma escola que se faz em nome do futuro sem ter um presente, que valha a pena lembrar, é uma velha tirana a estragar o presente em nome do futuro que está a envenenar com um presente envenenado.
Eu quero viajar de hoje até amanhã voando. A linha do meu voo é uma estaladura que atravessa a chávena. Como um morcego fendendo a porcelana da noitinha, assim eu quero sair do seio, do ninho de hoje.
Quem é que assim nos virou, de tal forma que, em tudo o que façamos, estamos sempre na atitude de alguém que parte?
Eu quero viajar pela noite entre os dias, sentindo o ar como quem atravessa as águas, modulando todos os lados do corpo. como o peixe fusiforme atravessa desde profundidade até à luz.
Sabemos das tuas partidas, mas não sabemos que partido tomas: nem és peixe nem és carne, dizem-me. Professor ou aluno? De que lado da vida te perdes? 
Eu sou peixe e sou carne! Sou a carne do peixe e sei que vivo para ser comido. Não há angústia nisto, é o que vos digo. Quem é que me quer pescar?
Minha mãe pescou-me das suas águas, olhou as minhas escamas brilhantes ao sol, limpou-me cuidadosamente e educou-me para o ar. Só por isso não voltei para as águas, neblinas do limbo. Foi a minha fraqueza que me inibiu as asas para os vôos que ela planeou para mim.
Não usem anzóis afiados!
Podem usar palavras afiadas, na escola (e não será assim nas outras?).
As pessoas usam as palavras, sussuram palavras, segredam palavras, disparam palavras. Há palavras para amar, para animar, para repreender, para replicar, para censurar; há palavras para abraçar e há palavras para esmurrar; para esfaquear o vento, as ondas mais altas, o mar. Há palavras para explicar as cores, os odores.
A escola é, antes de mais, a galáxia das palavras e das imagens que as palavras desbotam. Usam-se palavras como calhaus afiados. Há navalhas e palavras para ferir. Há quem as dispare dos bolsos, onde as teve sempre escondidas.
Eu uso as palavras nas palmas das mãos abertas, como calhaus rolados pelas águas de mil marés vivas, palavras lavadas pela água, expostas para corar, ao sol destas luzes.
É a água do mar que escorre pelas linhas da minha mão ou do rosto ou do corpo. Pela linha da vida, pela linha da morte, pela linha do coração correm e morrem as águas que galgaram as margens dos olhos.
E eu? Que faço eu?
Na escola, como peixe na água, deixem-me respirar esta água, este ar!
Por estas águas troquei o meu passado e o meu presente anunciado na palma da mão de minha mãe nos gestos de me educar para o ar!
Onde estão os meus amigos? Quase como sombras longínquas, postais de Lisboa e Porto, escritos apressadamente com tinta de água
Como vais?, que é feito de ti?
Que resposta tenho para este passado?
Mãe! Minha Mãe, que quero eu senão voltar ao princípio para que tudo recomece e possa acariciar os meus sonhos, os meus amigos que se perderam e são uma sombra espelhada nestas águas em que me movo em vez de tudo o resto?
Mas os caminhos de regresso estão todos fechados e é por isso que a escola é um mundo em que me tenho de reconstruir e reconstruir os catelos no ar! Nem que sejam outros os arquitectos, outros os alcaides, outros os actores.
Os estudantes que brilham no escuro e me reflectem no que vale a pena ou valeu a pena, é aqui, Mãe, entre as ruínas deste presente que, das águas desta escola, pescamos os filhos da escola, os educamos para o ar e, que nos dera, Mãe, que lhes pudéssemos dar as asas!
Está descansada, Mãe! Já ninguém se ri do teu filho, porque ele envelheceu demais no discurso das águas e porque ele deixou, por momentos, de ser quem era
o outro, aquele que não está no espectáculo. Olham para ele e não o vêem, as palavras que ele disse eram água pelos dedos abertos.
Amanhã, à luz do dia, não haverá lembrança deste gesto insensato e todos viverão, como antes, em nome do futuro!

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