onde estamos, onde nos afundamos? onde estamos, onde nos afundamos?
aqui fundeamos, soltamos uma âncora
e esperamos que ela encontre quem a prenda
e nos prenda a nós \br nas vagas de um lugar qualquer
ainda que cercados por tubarões
de que sabemos nomes e apelidos.
porque será que preferimos o incerto lugar
e fundamos a esperança neste alto mar?
não desdenhes, se puderes
não me abandones antes de ter encontrado
o silêncio de ouro
que é o que sobra como tesouro
das histórias inteiras que fazem o nosso fado
a guitarra que só depois de ter o visto
e o ouvido vestido
deixa marca escrita no areal do rosto pelo mar varrido
uma mancha das palavras com que eu me visto
para descrever-te o instantâneo a revelação
final numa câmara escura
onde registas o teu sonho de aventura
e eu vejo a tua alegria como redenção
e, se puderes, sussurra-me o segredo
do teu riso
e eu nunca mais volte ao meu perfeito juízo
de onde devia afinal ter saído muito mais cedo
como rilke, fendendo a porcelana da noitinha
Quando a tardinha dá lugar
à noitinha, há praças que tomam
a forma de aquários.
A água suspensa
suspende-nos um pouco acima do chão
e fendemos o tempo lentos entre as gotas
das cortinas de chuva miudinha
que desenham portas na cidade.
Sem ninguém à vista desarmada
respiramos à maneira de quem nada
num voo mariposa.
eu sei que quero
Eu sei que quero tocar nas tuas teclas em carne viva
Na tua pele nas extremidades dos teus nervos mais sensíveis
é aí que procuro o destino das casas improváveis mas possíveis
paredes da clausura para que a minha na tua alma sobreviva
embora
embora vibre
o dourado junco está morto:
à malícia do vento ainda obedece
o dourado vegetal é uma cor de moribundo
que se despede numa falta de ar e ao ar se esquece.
onde os cabelos são juncos e o meu corpo apodrece <br> a água parada transparece
as flores que te enfeitavam
As flores que enfeitavam de cores
o prado do teu cabelo
foram comidas pelos teus piolhos
herbívoros
Os pequenos esquilos que brincavam na floresta
dos teus cabelos
foram comidos pelas tuas pulgas
carnívoras
Os tubarões que nadavam no mar dos teus olhos
sob as franjas do teu cabelo
foram devorados pelas carraças
das tuas mesquinhas ideias
Tens tão pouca graça agora
que eu já nem sei se a gente inda namora.
============================
[escrito antigamente, reencontrado
caridade
a separação
entre a terra e o céu
tem de ser registada em cartório notarial
para valer
a arte entre os dias
se ensinas uma teoria sem teoremas não tens que dominar a arte e a técnica
da demonstração
podes ver que os teus aprendizes crescem contigo
se eles abrem no corpo da tua companhia um postigo por onde coam raios de luz
e por onde disparam
ou certeiras formas baças contra os dias mais calmos
ou rigorosas cores brilhantes para os corações das inquietantes e esguias árvores que se movem por dentro dos dias mais húmidos
ou balas tão perfurantes quanto verdadeiras
que abram uma brecha numa cisterna de sede
os aprendizes nada te exigem: nem demonstração nem resposta
eles são aprendizes e sabem que as tuas respostas vão esvair-se
como se esvai o sangue vermelho da nuvem desfeita em lágrimas
ardentes por dentro da ausência de uma armação sem tela
eles são aprendizes e sabem que para ti as mais intuitivas
de todas as respostas são sobre a cor do vento e a forma do ar
eles são aprendizes e sabem que o espírito deste lugar habita
nesse que mostra e não demonstra
o andar do corpo
se assim fosse o abismo
o que eu vejo quando olho para a rua da varanda
do teu andar
nasce! grita comigo!
nasce outra vez! grita
comigo, engole
todo o ar do meu mundo.
No rio de ar nascido
do teu choro de asfixia
morra eu ao teu primeiro segundo.
faz anos ao domingo
a mulher flamingo
pesca à linha
do horizonte
o sol moribundo
que reanima
num abraço de penas
antes de o devolver
à vida
de afogado.
na cadeira da tua vida
adormeces
bebendo directamente do cachimbo
o ar que respiras.
vi(r)agem
Num dia como os outros
solta-se entre as palavras
um fumo enrolado pelos açores
e o brinde tinto lava uma terra inteira:
como uma trave na arquitectura da casa da calheta
a gargalhada comum voa nos corredores
até se enterrar no sagrado chão
onde o chão não existe
porque uma mansa vaca pasta a nossa passagem
pelo mundo.
Num dia como os outros
desistimos de olhar para longe
olhando para dentro.
brando
vi-te nas telas: nas planícies incendiadas
és o bisonte que desafia com os cornos
a nuvem levantada pelos teus próprios cascos.
a cadeira da casa
entras
e sentas-te nos meus joelhos:
a última cadeira da casa que ainda não espatifei
por cobardia.
o facto preto das cerimónias
finalmente tenho razões
para chorar e rir como só eu sei
há uma procissão de figurões
e no andor vai sant'ana nua feita rei
para deleite da canalha
como um palhaço fazes a pirueta
que te faltava para seres o país da treta
e saltimbancando um pouco mais para a direita
adormeces na cama de visgo onde a canalha se deleita
exílio
eu vou cá para fora lá dentro de mim
deste canto exporto olheiras e maus olhados
e óleo de pavão que é dos mais importados
no país onde ninguém se importa antes do fim.
intervalo
quando me cansa a frase seguinte
do relatório que folheio
venho até aqui como pedinte
pedir esmola às pessoas em passeio ...
uma esmola, duas pepitas de memória
peço por uns instantes a mais de sossego
como se reclamasse o salário do cego
que canta uma lengalenga sem história
outras vezes canto tão alto um fado à janela
aquele que aconteceu ao pintor que assassinou
à facada o auto-retrato da sua última tela
e a esse rio de tinta para onde se atirou.
descendo
descendo pela vereda verde
e estreita
afinal sobes até um calvário
onde, presa em seu sacrário,
a estátua espreita
quem se perde
partida
Eu vou ver o branco dos olhos magoados
as madrugadas onde elas estiverem na preguiça
e em alguns dias dos mais desesperados
cantarei, pela salvação da minh'alma, uma missa
Se alguém sossegar a um canto da minha igreja,
gozando a solidão do fresco da nave lateral,
farei do meu canto um tal silêncio feito em cal
até não ser mais que estátua o que de mim se veja.
transumância
pelo pasto das chamas a dor
ladra avisos até ficar rouca
que já não cabe dentro da boca
a língua de fogo do pastor.
o passeio de domingo
quero ser o passeio
em margens
onde corra como um rio
ou ser preso na casa
de seda
em volta da mulher
e escrever o poema
numa pele de lençóis
da cama por fazer
quero ser o passeio que ela faça
quando errar nas nuvens
quero ser o senhor dos passos
a segunda feira de cor
ando a escolher as cores
que fiquem bem em corredores
e vendo pela oferta mais baixa
o quadro de que se mostram pormenores
neste poema claro
fico à espera do primeiro dedo de um amigo no ar
e se deixar endereço ainda trato do envio e não cobro
nem portes de correio.
também por um preço ainda mais baixo, vendo
a um amigo que não tenha duas caras.
alto do erro
quem vem pelos pirinéus,
tomando o caminho a partir de Orthez
para Pampelune (ou Pamplona ou Iruña?)
passa por casas espantosas a desenhar
contornos a pastagens
(tanto para bestas celestiais como terrenas)
e que nos enganam o olhar.
e possível se torna ver o que é impossível construção.
como pode resistir
um pintor ingénuo à matemática da paisagem
ou um poeta a um lugar nomeado
Alto do Erro?
crime da razão futura
a história não vai falar dos nossos
mártires porque nela entraram carregando
o espanto sobre a pacatez da vida o desmando
do trágico navio que transporta ossos
o futuro só vai contar mártires de dois modos:
entre derrotados ou entre vitoriosos agressores
tenham ficado vivos ou tenham morrido todos
abraçados a uma casa, causa ou seita
só os vivos de um e outro lado sentem as dores
dos mortos que assombram a sua cama estreita
a história espalha o pó fino que sufoca
os gritos e simula na pedra funerária
que todos os outros morreram pela boca
de cena fazendo de actores de vida adversária
tirania
não me digas que as comeste
porque ninguém
a começar pela tua mãe
te avisou que as lâminas
de barbear
não são para comer.
a forma nova
dizem que não há paixões humanas que prestem
e que todos os poemas foram já ditos e escritos
não mais que personagens de um fado bem passado
poetas são ratos de biblioteca a sobreviver
em buracos dos livros que não param de roer
poetas são os que usam formas novas para cozer
em lume brando o poema mastigado e vomitado
até este ficar queimado pegado colado
e parecer que não tem nada a ver
nada para entender
e pouco ou nada para ler
dizem que já não há líricos tísicos nem sanatórios
e que os poemas são incerta forma para citações
ditadas e reeditadas experiências de laboratório
onde não entram nem saem emoções.
e que já nem preciso é sequer manuscrever.
amarei
das patas
da aranha amarei os pêlos na sopa
quando a devolvo à copa
para que a aranha inteira a enriqueça
e eu, enfim, rejuvenesça
até andar de gatas
quando voltamos
já somos outros
mas não sabemos falar disso
porque no final voltamos ao mesmo
porque não fizemos mais que um par de meias voltas
e desatámos os nós da língua para voltarmos a ser mudos como antes
sei lá se sou de lá ou de cá
os outros dedicam-me uma certa piedade compassiva
e isso me basta
nem aceito o risco do meu tempo a seu tempo
que reconheço como sinal e ferrete.
as linhas
quando desenhas as linhas
do meu desgosto
sei que a manhã desperta
as minhas mãos no teu rosto
se na minha face rugosa alinhas
os dedos do carvão que se desfaz
ao vento da janela aberta
volto de asas caídas aonde tu já nem estás
letra a letra
digam-me letra a letra a minha cruz
soletrem-me do calvário o caminho
à volta sem regresso
e esmaguem entre dois dedos uma a uma cada luz
os pontos na espiral em que definho.
é só o que vos peço.
a gola da samarra
que contas tu ó pobre para um fado
em dó maior... do que uma algazarra
de cães que perseguem por todo o lado
o coelho que foi gola da tua samarra
quando a tua avó era viva e tu eras a criança
a querer ser padre da tua freguesia
quando fosses grande e não fugisses para a frança
ah! se tivesses crescido outro galo lhes cantaria
desenho
quem anda com os pés nos bolsos do corpete
e mostra os dentes a quem sua mais que morde
usa um número acima para as câmaras da biciclete
e não sabe que pedala para onde mora a morte.
a demora
espera mais um pouco.
por ti
se fores devagar, talvez possas
fazer-te companhia mais um pouco.
afinal vão ambos para o mesmo lado!
e a viagem é assim mais lenta
quem sou
por entre o lixo do hospício, vagueio como doido
varrido
por uma vassoura de penas minhas.
o dia mais que perfeito
atravessam cedinho
a vila, deste lado ao de lá do monte onde a manhã dá à luz o sol,
os passos ligeiros da mulher mais bela do dia
escolhem maçãs bravas colhidas à árvore da madrugada.
ah! e fosse eu com ela de mãos dadas assim cedinho
onde a blusa abre
onde a blusa transparece
os olhos matam a sede das mãos ansiosas
do alpinista trepando pelas encostas dos seios,
e, na planta riscada sobre a terra lavrada,
esse vale do ventre em que se levanta o desejo da arquitectura
para a possuída casa ancorada em estacas de vento e de ternura,
eu desenhei a vida inteira por viver e por mais nada
deixei cair pelo fio do prumo o olhar a pique
e, ecoando grave, em queda livre, a voz calei
ali onde a blusa começa e se entreabre
uma porta escancarada.
asa delta
a fita que se soltou do teu chapéu
chamou-me pelo nome pronta para voar
e eu hesitei no teu decote o meu olhar
antes de ir com ela para o mais alto céu.
de tão longe ver-te como um ponto final,
quando tanto te desejei em cada pormenor,
não vejo pior
mal
o frio céu
antes neve e gelo em teu banho de espuma
que o frio no céu
da minha boca ...
o engano do jorge
não votei em durão barroso, nem no psd e muito menos no cds,
mas reconhecia o db como primeiro ministro do meu país.
não sendo eleito sequer para governar portugal,
santana lopes pode assinar uma constituição europeia?
pode. por s.jorge!
não, em meu nome
eu só espero que a caneta tenha uma diarreia.
muda a hora
muda a hora. às duas de qual manhã? às duas por três, numa catedral aberta,
visito mortalhas em fila de espera
e só ouço o silêncio frio
de um amigo que ressona
sem saber que morreu uma hora mais cedo.
as ideias
eu sou o meu único tormento
e as tormentas por que passo.
eu sou o navegador
que inventa o cabo e o dobra.
a garça que caminha
a garça tem olhos inquietos e um corpo suspenso
desajeitadamente reequilibrado com o bater das asas
o boi tem olhos conformados ao corpo pachorrento
uma tremura por dentro da pele macia avisa as asas da garça:
podemos caminhar juntos, voar é que não!
chamado
disseram-me que muitos são os chamados
e poucos são os escolhidos
a mim chegava-me ser chamado
nada me custa mais que corrigir provas de amor
Quando te pergunto e tu respondes,
procuro o certo e o errado ou o que escondes?
Eu não quero saber o que é certo ou o que é errado
nem quero virar o ar dos sons para vibrar por outro lado
Sou eu quem se desfaz em tinta vermelha verdadeira
chorando sangue sobre a tua resposta azul certeira
a não esperada
ou a não desejada
ou o contrário de tudo ... que é nada.
se acordar
se a manhã vier beijar-me
como só ela sabe
eu hei-de saber calar-me
no colo em que meu sonho cabe.
se acordar?
sonho acordado.
em saco roto
se eu me levantar e pedir a palavra para dizer
como Novalis disse ...
é porque não sou um saco roto
desenho. logo existe
o luar contigo
é o desenho
de um luar comigo
desencontros tanto acontecem
ao luar contigo
como ao lutar comigo
nenhuma orelha te arde
Nenhuma orelha te arde
por eu me pensar
Contra praga de cobarde
nem precisas de abrigo.
a viola
muitas vezes, como
se soubesse tocar-lhe
abraço-a
assim como
se a embrulhasse
numa canção de embalar
antes de a acordar.
lenda
aos homens disseram:
- pesquem que é um bom desporto!
homens houve que acreditaram e fizeram
o melhor isco de homem morto.
mais tarde disseram
que os peixes não morderam.
os iscos usados na pesca desportiva
de mar salgado passaram pelas brasas
antes de serem petiscados em suas casas
pelas viúvas respectivas.
tarde tocaste
foste a última a tocar o meu pobre coração
mas foi tão tarde
que é o tal fogo, o que arde
sem que o possas ver, o que me consome
e, quem sabe?, talvez me mate à fome.
as portas
assim abandonado e só e arruinado.
ser lugar visitado e visto por uma porta entreaberta
para ser outro
assim no alto
pelos seus dois olhos vazados
a porta não vê
as portas
ao fundo, a casa do alto vento
abriga uma fogueira de caçadores
espreitando o rio, como quem espreita
a serpente que vem da espanha onde nasceu
e onde deixa os ovos
vimos passar as luzidias escamas
do seu dorso a caminho da cabeça,
a nossa, essa que nos envenena cada vez
que nos morde
quando nos beija
com a língua multífida da ibéria.
as portas
enganas-te
para pensares em fugir por aí,
precisas de asas para voar
e isso eu não tenho para ti.
as portas
os meus rebanhos pastam as tuas costas
e bebem-te sem estragar a miragem no espelho:
a uma distância prudente e medrosa pensas que reflectes
estando eu a olhar para ti e para quem não te compreende
na ânsia de seres livre em cada pedra que te prende
e beirando portas pronto a sair
afinal entrando
de um para outro lado
de uma nação a outra.
desenho para passar o tempo
desenho para não olhar quem não quero ver
desenhar é como mudar de passeio.
desenho as linhas das mãos dormentes
desenhar é não veres o que só tu sentes
o que a morte sabe
O que a morte sabe
eu não sei se cabe
na boca suja do inferno
no mais vazio instante do eterno
na biblioteca dos medos
onde guardas mais segredos
é lá que também a morte se deita
e o quase nada de tudo espreita.
a flor das águas
devias deixar-te afundar um dia só para veres o negro
verdadeiro e enfim dares valor a cada raio de luz
não é coisa sem valor uma pepita de luz
devias deixar-te cair com um peso amarrado ao pescoço.
para veres como pesa menos o que te prende ao lugar
de onde queres sair desesperadamente
porque te vai faltar o ar, vais dar real valor a cada bolha de ar
que verás a sair sem regresso da tua boca
e como vais invejar a sua agilidade na pressa da subida
- se tenho medo do escuro, mais medo tenho da falta de ar! -
é o que dizes para esconder a verdade
de apaixonado que estás, sempre estiveste, pela flor das águas
e seu brilho tenso de fronteira instável entre água e ar,
sombra e luz,
a tua vida adiada antes e depois da tua morte anunciada.
fado calado
já decidiste tudo para depois quando
tiveres partido.
o fado da tua morte é só um verso perdido
que a tua vida foi adiando.
e o poema da vida que te coube em sorte
é a história de cordel da tua morte.
já?
já decidiste que não falas por falar,
com quem não falas, a quem não respondes,
quem não queres olhar
de quem te escondes
levanta-te e dança!
um dia o meu pai olhou para mim e disse:
se te levantares saberás o que é andar sem ajuda
e isso, tão pouco!, é a liberdade que em ti tudo muda.
[¿Sabia ele o que lhe diria hoje se o visse?]
e, tendo construído em verga forte duas bengalas
até à altura dos meus sovacos de criança,
levantou-me do cesto onde jazia para dizer: "abram alas!
que é tempo do arsélio vir mostrar como se dança".
torturadas
tanto as amo vestidas de frondosas copas
pelo estio
como as choro assim nuas torturadas
às mãos do frio
a esperança
renasce como uma onda puxada pelo vento
e morre ali refeita suspiro ao chegar
à praia onde como quem mói o pensamento
piso meticulosamente cada bolha de ar.
aqui fundeamos, soltamos uma âncora
e esperamos que ela encontre quem a prenda
e nos prenda a nós \br nas vagas de um lugar qualquer
ainda que cercados por tubarões
de que sabemos nomes e apelidos.
porque será que preferimos o incerto lugar
e fundamos a esperança neste alto mar?
não desdenhes, se puderes
não me abandones antes de ter encontrado
o silêncio de ouro
que é o que sobra como tesouro
das histórias inteiras que fazem o nosso fado
a guitarra que só depois de ter o visto
e o ouvido vestido
deixa marca escrita no areal do rosto pelo mar varrido
uma mancha das palavras com que eu me visto
para descrever-te o instantâneo a revelação
final numa câmara escura
onde registas o teu sonho de aventura
e eu vejo a tua alegria como redenção
e, se puderes, sussurra-me o segredo
do teu riso
e eu nunca mais volte ao meu perfeito juízo
de onde devia afinal ter saído muito mais cedo
como rilke, fendendo a porcelana da noitinha
Quando a tardinha dá lugar
à noitinha, há praças que tomam
a forma de aquários.
A água suspensa
suspende-nos um pouco acima do chão
e fendemos o tempo lentos entre as gotas
das cortinas de chuva miudinha
que desenham portas na cidade.
Sem ninguém à vista desarmada
respiramos à maneira de quem nada
num voo mariposa.
eu sei que quero
Eu sei que quero tocar nas tuas teclas em carne viva
Na tua pele nas extremidades dos teus nervos mais sensíveis
é aí que procuro o destino das casas improváveis mas possíveis
paredes da clausura para que a minha na tua alma sobreviva
embora
embora vibre
o dourado junco está morto:
à malícia do vento ainda obedece
o dourado vegetal é uma cor de moribundo
que se despede numa falta de ar e ao ar se esquece.
onde os cabelos são juncos e o meu corpo apodrece <br> a água parada transparece
as flores que esperança
As flores que enfeitavam de cores
o prado do teu cabelo
foram comidas pelos teus piolhos
herbívoros
Os pequenos esquilos que brincavam na floresta
dos teus cabelos
foram comidos pelas tuas pulgas
carnívoras
Os tubarões que nadavam no mar dos teus olhos
sob as franjas do teu cabelo
foram devorados pelas carraças
das tuas mesquinhas ideias
Tens tão pouca graça agora
que eu já nem sei se a gente inda namora.
============================
[escrito antigamente, reencontrado]
caridade
a separação
entre a terra e o céu
tem de ser registada em cartório notarial
para valer
a arte entre os dias
se ensinas uma teoria sem teoremas não tens que dominar a arte e a técnica
da demonstração
podes ver que os teus aprendizes crescem contigo
se eles abrem no corpo da tua companhia um postigo por onde coam raios de luz
e por onde disparam
ou certeiras formas baças contra os dias mais calmos
ou rigorosas cores brilhantes para os corações das inquietantes e esguias árvores que se movem por dentro dos dias mais húmidos
ou balas tão perfurantes quanto verdadeiras
que abram uma brecha numa cisterna de sede
os aprendizes nada te exigem: nem demonstração nem resposta
eles são aprendizes e sabem que as tuas respostas vão esvair-se
como se esvai o sangue vermelho da nuvem desfeita em lágrimas
ardentes por dentro da ausência de uma armação sem tela
eles são aprendizes e sabem que para ti as mais intuitivas
de todas as respostas são sobre a cor do vento e a forma do ar
eles são aprendizes e sabem que o espírito deste lugar habita
nesse que mostra e não demonstra
o andar do corpo
se assim fosse o abismo
o que eu vejo quando olho para a rua da varanda
do teu andar
nasce! grita comigo!
nasce outra vez! grita
comigo, engole
todo o ar do meu mundo.
No rio de ar nascido
do teu choro de asfixia
morra eu ao teu primeiro segundo.
faz anos ao domingo
a mulher flamingo
pesca à linha
do horizonte
o sol moribundo
que reanima
num abraço de penas
antes de o devolver
à vida
de afogado.
na cadeira da tua vida
adormeces
bebendo directamente do cachimbo
o ar que respiras.
vi(r)agem
Num dia como os outros
solta-se entre as palavras
um fumo enrolado pelos açores \
e o brinde tinto lava uma terra inteira:
como uma trave na arquitectura da casa da calheta
a gargalhada comum voa nos corredores
até se enterrar no sagrado chão
onde o chão não existe
porque uma mansa vaca pasta a nossa passagem
pelo mundo.
Num dia como os outros
desistimos de olhar para longe
olhando para dentro.
brando
vi-te nas telas: nas planícies incendiadas
és o bisonte que desafia com os cornos
a nuvem levantada pelos teus próprios cascos.
a cadeira da casa
entras
e sentas-te nos meus joelhos:
a última cadeira da casa que ainda não espatifei
por cobardia.
o facto preto das cerimónias
finalmente tenho razões
para chorar e rir como só eu sei
há uma procissão de figurões
e no andor vai sant'ana nua feita rei
para deleite da canalha
como um palhaço fazes a pirueta
que te faltava para seres o país da treta
e saltimbancando um pouco mais para a direita
adormeces na cama de visgo onde a canalha se deleita
exílio
eu vou cá para fora lá dentro de mim
deste canto exporto olheiras e maus olhados
e óleo de pavão que é dos mais importados
no país onde ninguém se importa antes do fim.
intervalo
quando me cansa a frase seguinte
do relatório que folheio
venho até aqui como pedinte
pedir esmola às pessoas em passeio ...
uma esmola, duas pepitas de memória
peço por uns instantes a mais de sossego
como se reclamasse o salário do cego
que canta uma lengalenga sem história
outras vezes canto tão alto um fado à janela
aquele que aconteceu ao pintor que assassinou
à facada o auto-retrato da sua última tela
e a esse rio de tinta para onde se atirou.
descendo
descendo pela vereda verde
e estreita
afinal sobes até um calvário
onde, presa em seu sacrário,
a estátua espreita
quem se perde
partida
Eu vou ver o branco dos olhos magoados
as madrugadas onde elas estiverem na preguiça
e em alguns dias dos mais desesperados
cantarei, pela salvação da minh'alma, uma missa
Se alguém sossegar a um canto da minha igreja,
gozando a solidão do fresco da nave lateral,
farei do meu canto um tal silêncio feito em cal
até não ser mais que estátua o que de mim se veja.
transumância
pelo pasto das chamas a dor
ladra avisos até ficar rouca
que já não cabe dentro da boca
a língua de fogo do pastor.
o passeio de domingo
quero ser o passeio
em margens
onde corra como um rio
ou ser preso na casa
de seda
em volta da mulher
e escrever o poema
numa pele de lençóis
da cama por fazer
quero ser o passeio que ela faça
quando errar nas nuvens
quero ser o senhor dos passos
a segunda feira de cor
ando a escolher as cores
que fiquem bem em corredores
e vendo pela oferta mais baixa
o quadro de que se mostram pormenores
neste poema claro
fico à espera do primeiro dedo de um amigo no ar
e se deixar endereço ainda trato do envio e não cobro
nem portes de correio.
também por um preço ainda mais baixo, vendo
a um amigo que não tenha duas caras.
alto do erro
quem vem pelos pirinéus,
tomando o caminho a partir de Orthez
para Pampelune (ou Pamplona ou Iruña?)
passa por casas espantosas a desenhar
contornos a pastagens
(tanto para bestas celestiais como terrenas)
e que nos enganam o olhar.
e possível se torna ver o que é impossível construção.
como pode resistir
um pintor ingénuo à matemática da paisagem
ou um poeta a um lugar nomeado
Alto do Erro?
crime da razão futura
a história não vai falar dos nossos
mártires porque nela entraram carregando
o espanto sobre a pacatez da vida o desmando
do trágico navio que transporta ossos
o futuro só vai contar mártires de dois modos:
entre derrotados ou entre vitoriosos agressores
tenham ficado vivos ou tenham morrido todos
abraçados a uma casa, causa ou seita
só os vivos de um e outro lado sentem as dores
dos mortos que assombram a sua cama estreita
a história espalha o pó fino que sufoca
os gritos e simula na pedra funerária
que todos os outros morreram pela boca
de cena fazendo de actores de vida adversária
tirania
não me digas que as comeste
porque ninguém
a começar pela tua mãe
te avisou que as lâminas
de barbear
não são para comer.
a forma nova
dizem que não há paixões humanas que prestem
e que todos os poemas foram já ditos e escritos
não mais que personagens de um fado bem passado
poetas são ratos de biblioteca a sobreviver
em buracos dos livros que não param de roer
poetas são os que usam formas novas para cozer
em lume brando o poema mastigado e vomitado
até este ficar queimado pegado colado
e parecer que não tem nada a ver
nada para entender
e pouco ou nada para ler
dizem que já não há líricos tísicos nem sanatórios
e que os poemas são incerta forma para citações
ditadas e reeditadas experiências de laboratório
onde não entram nem saem emoções.
e que já nem preciso é sequer manuscrever.
amarei
das patas
da aranha amarei os pêlos na sopa
quando a devolvo à copa
para que a aranha inteira a enriqueça
e eu, enfim, rejuvenesça
até andar de gatas
quando voltamos
já somos outros
mas não sabemos falar disso
porque no final voltamos ao mesmo
porque não fizemos mais que um par de meias voltas
e desatámos os nós da língua para voltarmos a ser mudos como antes
sei lá se sou de lá ou de cá
os outros dedicam-me uma certa piedade compassiva
e isso me basta
nem aceito o risco do meu tempo a seu tempo
que reconheço como sinal e ferrete.
as linhas
quando desenhas as linhas
do meu desgosto
sei que a manhã desperta
as minhas mãos no teu rosto
se na minha face rugosa alinhas
os dedos do carvão que se desfaz
ao vento da janela aberta
volto de asas caídas aonde tu já nem estás
letra a letra
digam-me letra a letra a minha cruz
soletrem-me do calvário o caminho
à volta sem regresso
e esmaguem entre dois dedos uma a uma cada luz
os pontos na espiral em que definho.
é só o que vos peço.
a gola da samarra
que contas tu ó pobre para um fado
em dó maior... do que uma algazarra
de cães que perseguem por todo o lado
o coelho que foi gola da tua samarra
quando a tua avó era viva e tu eras a criança
a querer ser padre da tua freguesia
quando fosses grande e não fugisses para a frança
ah! se tivesses crescido outro galo lhes cantaria
desenho
quem anda com os pés nos bolsos do corpete
e mostra os dentes a quem sua mais que morde
usa um número acima para as câmaras da biciclete
e não sabe que pedala para onde mora a morte.
a demora
espera mais um pouco.
por ti
se fores devagar, talvez possas
fazer-te companhia mais um pouco.
afinal vão ambos para o mesmo lado!
e a viagem é assim mais lenta
\it quem sou
por entre o lixo do hospício, vagueio como doido
varrido
por uma vassoura de penas minhas.
\it o dia mais que perfeito
atravessam cedinho
a vila, deste lado ao de lá do monte onde a manhã dá à luz o sol,
os passos ligeiros da mulher mais bela do dia
escolhem maçãs bravas colhidas à árvore da madrugada.
ah! e fosse eu com ela de mãos dadas assim cedinho
\it onde a blusa abre
onde a blusa transparece
os olhos matam a sede das mãos ansiosas
do alpinista trepando pelas encostas dos seios,
e, na planta riscada sobre a terra lavrada,
esse vale do ventre em que se levanta o desejo da arquitectura
para a possuída casa ancorada em estacas de vento e de ternura,
eu desenhei a vida inteira por viver e por mais nada
deixei cair pelo fio do prumo o olhar a pique
e, ecoando grave, em queda livre, a voz calei
ali onde a blusa começa e se entreabre
uma porta escancarada.
\it asa delta
a fita que se soltou do teu chapéu
chamou-me pelo nome pronta para voar
e eu hesitei no teu decote o meu olhar
antes de ir com ela para o mais alto céu.
de tão longe ver-te como um ponto final,
quando tanto te desejei em cada pormenor,
não vejo pior
mal
o frio céu
antes neve e gelo em teu banho de espuma
que o frio no céu
da minha boca ...
\it o engano do jorge
não votei em durão barroso, nem no psd e muito menos no cds,
mas reconhecia o db como primeiro ministro do meu país.
não sendo eleito sequer para governar portugal,
santana lopes pode assinar uma constituição europeia?
pode. por s.jorge!
não, em meu nome
eu só espero que a caneta tenha uma diarreia.
\it muda a hora
muda a hora. às duas de qual manhã? às duas por três, numa catedral aberta,
visito mortalhas em fila de espera
e só ouço o silêncio frio
de um amigo que ressona
sem saber que morreu uma hora mais cedo.
\it as ideias
eu sou o meu único tormento
e as tormentas por que passo.
eu sou o navegador
que inventa o cabo e o dobra.
\it a garça que caminha
a garça tem olhos inquietos e um corpo suspenso
desajeitadamente reequilibrado com o bater das asas
o boi tem olhos conformados ao corpo pachorrento
uma tremura por dentro da pele macia avisa as asas da garça:
podemos caminhar juntos, voar é que não!
\it chamado
disseram-me que muitos são os chamados
e poucos são os escolhidos
a mim chegava-me ser chamado
\it nada me custa mais que corrigir provas de amor
Quando te pergunto e tu respondes,
procuro o certo e o errado ou o que escondes?
Eu não quero saber o que é certo ou o que é errado
nem quero virar o ar dos sons para vibrar por outro lado
Sou eu quem se desfaz em tinta vermelha verdadeira
chorando sangue sobre a tua resposta azul certeira
a não esperada
ou a não desejada
ou o contrário de tudo ... que é nada.
\it se acordar
se a manhã vier beijar-me
como só ela sabe
eu hei-de saber calar-me
no colo em que meu sonho cabe.
se acordar?
sonho acordado.
\it em saco roto
se eu me levantar e pedir a palavra para dizer
como Novalis disse ...
é porque não sou um saco roto
\it desenho. logo existe
o luar contigo
é o desenho
de um luar comigo
desencontros tanto acontecem
ao luar contigo
como ao lutar comigo
\it nenhuma orelha te arde
Nenhuma orelha te arde
por eu me pensar
Contra praga de cobarde
nem precisas de abrigo.
\it a viola
muitas vezes, como
se soubesse tocar-lhe
abraço-a
assim como
se a embrulhasse
numa canção de embalar
antes de a acordar.
\it lenda
aos homens disseram:
- pesquem que é um bom desporto!
homens houve que acreditaram e fizeram
o melhor isco de homem morto.
mais tarde disseram
que os peixes não morderam.
os iscos usados na pesca desportiva
de mar salgado passaram pelas brasas
antes de serem petiscados em suas casas
pelas viúvas respectivas.
\it tarde tocaste
foste a última a tocar o meu pobre coração
mas foi tão tarde
que é o tal fogo, o que arde
sem que o possas ver, o que me consome
e, quem sabe?, talvez me mate à fome.
\it as portas
assim abandonado e só e arruinado.
ser lugar visitado e visto por uma porta entreaberta
para ser outro
assim no alto
pelos seus dois olhos vazados
a porta não vê
\it as portas
ao fundo, a casa do alto vento
abriga uma fogueira de caçadores
espreitando o rio, como quem espreita
a serpente que vem da espanha onde nasceu
e onde deixa os ovos
vimos passar as luzidias escamas
do seu dorso a caminho da cabeça,
a nossa, essa que nos envenena cada vez
que nos morde
quando nos beija
com a língua multífida da ibéria.
\it as portas
enganas-te
para pensares em fugir por aí,
precisas de asas para voar
e isso eu não tenho para ti.
\it as portas
os meus rebanhos pastam as tuas costas
e bebem-te sem estragar a miragem no espelho:
a uma distância prudente e medrosa pensas que reflectes
estando eu a olhar para ti e para quem não te compreende
na ânsia de seres livre em cada pedra que te prende
e beirando portas pronto a sair
afinal entrando
de um para outro lado
de uma nação a outra.
\it desenho para passar o tempo
desenho para não olhar quem não quero ver
desenhar é como mudar de passeio.
desenho as linhas das mãos dormentes
desenhar é não veres o que só tu sentes
\it o que a morte sabe
O que a morte sabe
eu não sei se cabe
na boca suja do inferno
no mais vazio instante do eterno
na biblioteca dos medos
onde guardas mais segredos
é lá que também a morte se deita
e o quase nada de tudo espreita.
\it a flor das águas
devias deixar-te afundar um dia só para veres o negro
verdadeiro e enfim dares valor a cada raio de luz
não é coisa sem valor uma pepita de luz
devias deixar-te cair com um peso amarrado ao pescoço.
para veres como pesa menos o que te prende ao lugar
de onde queres sair desesperadamente
porque te vai faltar o ar, vais dar real valor a cada bolha de ar
que verás a sair sem regresso da tua boca
e como vais invejar a sua agilidade na pressa da subida
- se tenho medo do escuro, mais medo tenho da falta de ar! -
é o que dizes para esconder a verdade
de apaixonado que estás, sempre estiveste, pela flor das águas
e seu brilho tenso de fronteira instável entre água e ar,
sombra e luz,
a tua vida adiada antes e depois da tua morte anunciada.
\it fado calado
já decidiste tudo para depois quando
tiveres partido.
o fado da tua morte é só um verso perdido
que a tua vida foi adiando.
e o poema da vida que te coube em sorte
é a história de cordel da tua morte.
\it já?
já decidiste que não falas por falar,
com quem não falas, a quem não respondes,
quem não queres olhar
de quem te escondes
\it levanta-te e dança!
um dia o meu pai olhou para mim e disse:
se te levantares saberás o que é andar sem ajuda
e isso, tão pouco!, é a liberdade que em ti tudo muda.
[¿Sabia ele o que lhe diria hoje se o visse?]
e, tendo construído em verga forte duas bengalas
até à altura dos meus sovacos de criança,
levantou-me do cesto onde jazia para dizer: "abram alas!
que é tempo do arsélio vir mostrar como se dança".
\it torturadas
tanto as amo vestidas de frondosas copas
pelo estio
como as choro assim nuas torturadas
às mãos do frio
\it a esperança
renasce como uma onda puxada pelo vento
e morre ali refeita suspiro ao chegar
à praia onde como quem mói o pensamento
piso meticulosamente cada bolha de ar.
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