as duas pastas

Trago sempre duas pastas dentífricas dentro da pasta onde guardo também alguma roupa interior e lenços de assoar. Nunca me foram úteis as pastas dentífricas porque sempre me esqueci das escovas, que embrulho antes de sair de casa para esquecer. Mas a pasta sempre me foi útil para guardar os pequeníssimos sabões e as toucas dos quartos dos hotéis que me perseguem há mais anos que os pequenos frascos de compota que o avião me fez cair no regaço. Hoje, ao partir, verifiquei as duas pastas dentífricas na pasta de cabedal e verifiquei também, tarde demais embora, que me esqueci dos bilhetes para a ópera, porque também me esqueci dos dentes dentro do seu copo de água nocturno, onde costumam rir-se de mim enquanto eu bebo a água que respiram por suas guelras mordentes. ------------------------- * risos de há muitos anos

despudor claro






quero não me levantar ou antes  não levantar os ohos  para ver lá fora  
e ainda não tinha olhos que não chorassem comigo  
pela seguinte curva pedida pelo pé do dedo que se curvou e
se calou para o dia restante



de Arsélio Martins, mesmo quando não parece
.

somos, fomos, somos, seremos

Aqui me apresento como fui

Será que lá chego? diz o miúdo
Talvez chegues à minha idade? digo eu
O miúdo replica logo: Não posso chegar à tua idade.
E eu, o homem calo-me.

Acho estranho ele dizer que poderá fazer
o que eu ainda não fiz por saber o que ele sabe
depois de me ver por me ser difícil ver
e o que ele escreveu no papel que eu escrevi
e o que ele copiou do que eu escrevi

23, raramente

raramente escrevo sobre algum assunto que desperte
o interese de muita gente
nem o interesse de pouca gente que seja importante
nem sirva para alimentar algum diz que disse
que valha a pena seguir nos dias imediatos a ter sido escrito.

também raramente escrevo sobre os assuntos importantes
ou ajudo à discussão de assuntos importantes
com as frases importantes para a circunstância
dos assuntos importantes e fico sempre nas margens daimportância

de facto, eu gostava de ser o verso em branco de uma página
com uma linha que me tivesse marcado e a mais ninguém até ao ficar
convertido a ser a página seguinte do verso irredutível
mas desconhecido por todos
os anos do resto da minha vida.

raramente penso na minha vida como a página em branco que ela é
para continuar a ser uma oportunidade perdida
por mim e por ter escolhido uma forma de ser feliz
não sendo coisa alguma mais que os olhos capazes de ver o invisível
ar quando ele passa por perto
e se ri com aquelas gargalhadas que nem eu ouço.

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