água na água

um dia poderás falar com exaltação
do amor sem sombra e sem mágoa

e dirás para quem ouvir o teu coração
que te sentiste a água que cai na água

a meia rasa

Só não fui para padre, porque era muito pequeno e seria motivo de risota em qualquer paróquia quando tivesse de pegar na minha meia rasa para chegar ao altar. A meia rasa era uma caixa rectangular que servia para medir cereais e, no meu caso, podia servir-me de degrau para o trabalho no altar ou para que, a ser pregador, fosse visto por cima da balaustrada do púlpito.

Uma meia rasa supriria a minha dificuldade de baixote. Ninguém punha em causa que a criança tímida pudesse aprender a essência da doutrina da igreja para a recitar ao povo dos fiéis ou até argumentar para alumiar alguma comunidade cristã com a chama da fé que me sobrava, ao que me lembro.

Embora os rapazes da minha aldeia (que me lembro de ver partir para estudar as segundas letras) tivessem ido para o seminário, eu não saí da aldeia por essa rua estreita. Nem pela outra que era vir para o sal finda a terceira classe ou, passados uns anos no sol a sol do campo, para a distância das Amercas ou dos Brasis para onde perdêramos de vista o meu pai e outros homens com valia para vingar longe da nossa miséria.

Alguém me empurrou para fora do berço e da aldeia, caí em escolas várias em busca da verdade. Nunca me fez falta a meia rasa para erguer a voz quando comecei a cantar. E aprendendo a ver, ouvir e ler dei por mim a vacilar. Mudei as vezes necessárias para continuar no essencial o mesmo. Gritei e argumentei uma boa parte da minha vida. Fracas armas as palavras nuas de quem não pode oferecer mais que a esperança da justiça e a luta pela liberdade. A democracia vale a pena como o mais rico regime em diversidade de ideias, como construção complexa. Chegámos a pensar que as nossas ideias não valiam. Mas, gloriosamente, renascíamos sempre que nos ouvíamos a falar por cima do silêncio opressivo de quem nos calava e se calava. Mais gloriosamente ainda renascemos quando resistimos à tentação da censura, à tentação da pressa.

A maioria absoluta na Câmara e na Assembleia explica pouco, torna-se rápida e obtém, por via dos votos, a aprovação das suas propostas. Com decoro, a maioria ouve os mínimos da oposição. Feito de regras, formalidades e pouco mais, o debate torna-se pobre e insuficiente. A maioria fez-se surda depois de se ter mostrado pouco menos que muda. Falta-lhe mais que meia rasa para oficiar no altar da democracia.

[o aveiro; 5/01/2005]

a ternura



o fim do ano aproximava-se e os quatro idosos davam
uma volta ao estádio municipal; na praça deserta
a passada, a conversa e as sombras lentas vão à frente

há melhor festa? quatro amigos
tanto tropeçam em pedras,
nas próprias sombras,
como na ternura.

puxam de uma gargalhada
e disparam contra a noite
até fazer dela a alvorada
do ano, manhã de amanhã.

a pele que se despe

1
tantos dias uma mágoa, uma vaga dor sempre presente
clama por ti de quem a memória lembra um bater de asas
de tantos dias numa mágoa, um oco guardado e tu ausente
em viagem feita adeus de ave migrante

quando voltas nem vens sozinha nem vestes túnica de fogo
que aqueça a noite e a lua espelhadas na gelada água
da talha que é meu corpo tolhido em tantos dias desta mágoa
de frio deserto de falha entre tu e eu de mim

2
morreremos separados sem que saibas o nome
desta mágoa, da falta de ar que é a tua ausência sufocante
e ainda menos lembres as marcas nas cartas do nosso jogo

3
desisto de um momento teu e em vez do instante que consome
animo as tuas asas de vidro e, sem olhar a memórias, chamo o fim,
esse fiel animal de sombra sempre pronto a disparar
e a ir comigo de qualquer um para outro lugar.

demonstração de força

Tenho passado os últimos  dias da minha vida a tentar responder, de uma forma construtiva, a uma exigência genérica que é feita a todo o ensino secundário. Trata-se de saber como é que os jovens aprendem a raciocinar e, em particular, como é que se chega lá - à  verdade aceite universalmente (?).
Todas as disciplinas organizam discursos sobre a sua metodologia para garantir a veracidade de uma afirmação dentro de apropriados quadros de referência. Em geral, o conjunto das disciplinas cooperam para o desenvolvimento das competências necessárias à boa argumentação (identificadas com  a capacidade de reconhecer as formas erróneas de argumentar e  de criticar argumentos que suportam alguma  tese).  Se isto é verdade para tudo quanto seja comunicação, é primordial no ensino das ciências, da matemática. Entre os que precisam de estabelecer definitivamente alguma coisa como verdade inquestionável numa comunidade de interesses,  não são raros os que se servem de referência matemática como  censura autoritária. 
Relacionada com todas  as disciplinas experimentais às quais fornece modelos e sistemas de controle dos resultados da actividade experimental, a matemática (e os seus professores) é cerne da exigência sobre a correcção dos raciocínios dos jovens e sobre a noção de prova e demonstração rigorosa. Os professores de matemática variam entre facilitadores da aprendizagem experimental  em que se reconhecem alguns modelos  matemáticos e magistrais pregadores a apresentar conceitos  matemáticos independentes de que recomendam o reconhecimento de alguma aplicação ainda que surreal. Os programas oficiais nunca determinaram o fim do ensino da matemática e suas aplicações nem o fim da aprendizagem baseada na experiência  e das conexões  entre os  diversos ramos do saber. As transformações operadas na sociedade e as mutantes  correntes educativas e culturais sobre o que seja o crescimento em graça e sabedoria também moldam (e mudam pouco)  o ensino da matemática.
Os actuais programas do ensino secundário de matemática, a  diversos  níveis de exigência, aceitam que aos professores de matemática é atribuída a responsabilidade de desenvolver diversos tipos de raciocínio, de raciocínios demonstrativos hipotético-dedutivos (com referências explícitas a oportunidades). Não inibem qualquer tipo de actividade lectiva que possa ser desenvolvida  com esse fim e permitem que os professores escolham as oportunidades mais adequadas para as condições  em que exercem  a sua actividade.
Porque é que há então tanta pressão de denúncia (na comunidade académica, em especial) sobre não restarem quaisquer vestígios de actividades demonstrativas do ensino secundário?  Os professores não cumprem os programas? Desvalorizam todas as referências ao raciocínio demonstrativo? Não  exigem, na argumentação oral e escrita, as regras de rigor e de procura  decente da verdade? Os professores de matemática tendem a dizer que o seu trabalho é vão, por não ser acompanhado de igual rigor no ensino das restantes disciplinas científicas ou das que exploram as funções da linguagem e da comunicação humanas. Não sabemos. Assumimos sim que há dificuldades intrínsecas à matemática actual na actualidade dos valores culturais e hábitos ligados às disciplinas do pensamento. Sofre da mesma erosão que sofrem todas as disciplinas que aparecem contraditórias com as práticas sociais dominantes (educação ambiental versus práticas,  por exemplo; onde estão entre os que mandam e falam, os que foram educados para pensar correctamente e falar respeitando nexos lógicos?.. ) e que são contestadas no domínio das ferramentas tecnológicas disponíveis no quotidiano e interditas na escola...
Para que o ano 2006 seja melhor, propomos construções de geometria clássica que, com recurso a ferramentas computacionais de uso livre e generalizado, podem motivar os estudantes a desenvolver o raciocínio. Os estudantes reconhecem o  princípio, definem etapas sequenciais sem subentendidos, cada uma com a matemática e as ferramentas apropriadas, para atingir um FIM.

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geometriAGON
lugar geométrico



[a página da educação; 01/2006]

Volto sozinha

Torno sola
tra due sonni laggiù, vedo l'ulivo
roseo sugli orci colmi d'acqua e luna
del lungo inverno. Torno a te geli

nella mia lieve tunica di fuoco.

Cristina Campo; Passo d'addio

filiação

quando me perguntam a filiação, o que querem saber?

depois, a piedade

De repente, um relance ocasional mostrou as fundas rugas vincadas nos cantos da boca. Tinha acabado de falar como se tivesse soltado um grito. Assustou-me e quando um animal nos assusta ou evitamos o olhar ou o fixamos hipnotizados e horrorizados. Foi por medo que vi as fundas rugas que lhe cavam os cantos dos olhos.

A piedade que lhe sobra chega para construir uma casa. Depois, a piedade levanta-se e muda de casa.

Agora o que foi e depois o que vai ser?