a vida lida depois: os livros da universidade?
Sem razão que valha a pena lembrar, depois de chumbar nos exames médicos de ingresso na escola náutica e de passar na admissão à universidade da matemática entrei num mundo de poucos livros e muitos ouvidos.Ainda guardo os laboriosos cadernos feitos pelas mãos de quem ouvia. E memória de alguns livros, e de poucos e bons amigos, perdidos na distância da circunstância e nunca perdidos na memória. Lembro-me em detalhe, das falas, dos risos, dos abraços. O que aprendi de matemática foi ouvido em aulas e laboriosas transcrições. Não comprei sebentas e comprei um ou outro livro de álgebra e lógica editados pela da Gulbenkian.Quem me conhecesse nessa época e não soubesse o que eu estudava, sabia com certeza que eu lia livros de poesia e escrevia cadernos de poesia e matemática. E falava e escrevia como "associativo" antifascista. Comprei muitos livros de poesia moderna, demais para as minhas posses. A minha irmã que me perdoe que era ela e o marido quem os pagava.Mesmo em termos de política, tenho de confessar que poucos livros de política lia. Ouvia os meus amigos e lia o necessário para explicar alguns pontos de vista. Para a matemática, ouvir e escrever era um exercício diário. Cada uma das coisas a que me dedicava tornava quase clandestina outra a que me dedicasse simultaneamente.Aprendi pelos livros?
Desde a infância vivi cercado por livros, apesar da pobreza dos camponeses. O meu pai mandou do brasil uma arca cheia de livros e alguns desses li, antes e depois de serem parte da estrumeira que prolongava o alpendre da casa. Mas que livros eram esses? Não eram livros escolares. Desses não me lembro, devo confessar, excepção feita à selecta literária (colectânea de textos de José Pereira Tavares) de que decorei uma parte muito significativa.
Penso que já percebi porque é que me sai aquela parte dos meus discursos sobre "livros que não havia". São os livros de que não tive ou de que não há memória.
Desde a infância vivi cercado por livros, apesar da pobreza dos camponeses. O meu pai mandou do brasil uma arca cheia de livros e alguns desses li, antes e depois de serem parte da estrumeira que prolongava o alpendre da casa. Mas que livros eram esses? Não eram livros escolares. Desses não me lembro, devo confessar, excepção feita à selecta literária (colectânea de textos de José Pereira Tavares) de que decorei uma parte muito significativa.
Penso que já percebi porque é que me sai aquela parte dos meus discursos sobre "livros que não havia". São os livros de que não tive ou de que não há memória.
a vida lida depois: os livros do liceu
Depois fui mandado para o liceu de Aveiro, acompanhando a minha irmã mais velha que estava mesmo no fim do seu curso liceal e em vias de ir para Coimbra. Voltei à solidão com desacerto. Fora de mim ou da minha gente, como é que aprendia? Pelos livros, talvez. Porque me lembro da selecta literária. E dou por mim a não me lembrar de professores e a reconhecer poucos colegas desse tempo e dos locais - Coimbra, Anadia, e Sintra - por onde fui pass(e)ando.Lembro-me vagamente de mais pessoas fora do liceu e das escolas e, particularmente, me lembro do sapateiro da rua ao pé de casa lá por Sintra. Se não me lembro dos livros, o pouco que terei aprendido veio dos livros?
A vida lida depois: os livros ouvidos?
Tenho de confessar que não me lembro de como usava os livros escolares. Tinha poucos, mas tinha. E havia muitos outros livros pelas casas onde fui morando. Mas da primeira para a segunda classe, não me lembro de ter lido. Ao fundo da sala, separado dos outros todo o primeiro ano e parte do segundo, não me lembro de ser questionado nem de receber ordens para fazer fosse o que fosse, lembro-me de ouvir. E lembro-me de um dia, na segunda classe, cansado de ouvir a mesma explicação sobre a divisão, ter falado sobre isso e de tal modo que, vindo do fundo da sala, expliquei como se dividiam números com tal sucesso que todos, colegas e professores, passaram a olhar-me com olhos que me custaram os olhos da cara. Descobriram o que eu sabia de ter aprendido de ouvido e sem obrigação. E, então, a minha prestação passou a ser escrutinada sistematicamente. O nível de exigência não parou de aumentar, na exacta medida de algumas explicações e opiniões que formulava. No fim da segunda classe fui mostrado ao povo como o menino que operava com números fraccionários e escrevia e lia com jeito e facilidade. E na quarta classe, tomava conta e ensinava os colegas nas manhãs em que a professora saía da escola para ensinar os meninos que iam fazer a admissão aos liceus. E, desde a segunda classe, passei a apanhar pancada por cada erro cometido. Também dava explicações sobre assuntos de todas as áreas. De ouvir falar a minha irmã mais velha? De curiosamente ler os livros dela? Não tenho memória disso. Só tenho ideia que a minha vida passou a ser exigida por outros.
a vida lida depois: a rezar é que a gente aprende e se entende?
Não aprendi as orações a ler. Aprendi a ouvir - isso posso estabelecer como facto. Não me lembro de ter lido as orações e também não me lembro de as ter escrito. As orações vieram antes da escrita e da leitura? Sim e não. O que é certo é que as orações e as canções que perduraram na minha memória são falas impressivas ditas para uma multidão e repetidas pela multidão enquanto aprendia a ser mais um na multidão. E tenho de confessar que não era o sentido ou significado das frases ouvidas e depois ditas que me mobilizaram para saber e repetir, ou seja, para rezar. De certo modo eu aprendi a forma, o molde para ser comum, um entre outros como parte de alguma multidão munida de uma fé que não pede compreensão individual e consegue adesão, ... fisicamente tanto quanto me lembro. Que razão me movia? Não procurava razão para estar entre a minha gente.
Isto serve para várias outras aprendizagens e práticas que posso identificar em épocas diversas da vida.
Isto serve para várias outras aprendizagens e práticas que posso identificar em épocas diversas da vida.
a vida lida depois
A minha filha revelou-me o que eu ando a dizer sem pensar, chamando-me a atenção para uma gravação de há uns meses atrás. Ouvi-me com alguma atenção e uma certa perplexidade. Uma das questões que mais me impressiona reside no facto de eu insistir que tudo o que aprendi foi por ouvir e escrever sobre o que ouvia e não pelos livros, chegando mesmo a dizer que livros não havia à mão. Incomoda-me o que possam pensar disso as pessoas que me conhecem rodeado de livros e papéis por todos os lados? Não, não é isso. Só quero perceber porque é que digo sem pensar que não aprendi pelos livros. Na tentativa para me compreender, descobri algumas coisas sobre mim em que nunca tinha pensado e são elas que me orientam quando falo das minhas aprendizagens e das minhas dificuldades.
Tenho de agradecer a revelação à minha filha e aos jovens que gravaram o que disse. Sem pensar? Pensei bastante no que queria transmitir, mas as articulações do discurso são inconscientes ou, ... certo é que se estivesse a escrever não as teria escrito (a não ser por provocação).
Tenho de agradecer a revelação à minha filha e aos jovens que gravaram o que disse. Sem pensar? Pensei bastante no que queria transmitir, mas as articulações do discurso são inconscientes ou, ... certo é que se estivesse a escrever não as teria escrito (a não ser por provocação).
não te levo a sério
não te levo a sério
que eu quero é brincar contigo
rodopiar como um pião rodopia
até ficar tonto como a alegria
de um beijo a curar um castigo
que eu quero é brincar contigo
rodopiar como um pião rodopia
até ficar tonto como a alegria
de um beijo a curar um castigo
se assim fosse
vem pela porta da frente quem tropeça e me abraça
pão seco e cobarde incapaz das lágrimas de desejo
com abraços te desfaças bebendo o sal beijo a beijo
ai que eu há tanto tempo espero quem me desfaça
Deolinda: um caso muito sério!
(...)
Naquela sala do Coliseu de Lisboa, a vocalista dos Deolinda, do alto dos seus 33 anos, anunciou que a última canção era nova e que era "dura" de ouvir. Chama-se "Que parva que eu sou" e diz assim: "Sou da geração sem remuneração e não me incomoda esta condição. Que parva que eu sou! Porque isto está mal e vai continuar, já é uma sorte eu poder estagiar. Que parva que eu sou! E fico a pensar, que mundo tão parvo onde para ser escravo é preciso estudar..."
Entre as brumas da Memória: Um caso muito sério - Os Deolinda, Joana Lopes citando Maria de Lurdes Vale no DN
Naquela sala do Coliseu de Lisboa, a vocalista dos Deolinda, do alto dos seus 33 anos, anunciou que a última canção era nova e que era "dura" de ouvir. Chama-se "Que parva que eu sou" e diz assim: "Sou da geração sem remuneração e não me incomoda esta condição. Que parva que eu sou! Porque isto está mal e vai continuar, já é uma sorte eu poder estagiar. Que parva que eu sou! E fico a pensar, que mundo tão parvo onde para ser escravo é preciso estudar..."
Entre as brumas da Memória: Um caso muito sério - Os Deolinda, Joana Lopes citando Maria de Lurdes Vale no DN
Quanto mais poético, mais verdadeiro
Declaro que, no próximo domingo, votarei em Manuel Alegre.
Amanhã, sexta, vou ao Pavilhão Académico onde não entro há muitos anos. Há pelo menos dois comícios que me fazem lembrar o Pavilhão Académico da Costa Cabral e ambos foram comícios infelizes que eu bem queria que não tivessem acontecido: um contra o assassinato do Padre Max e da minha ex-aluna Maria de Lurdes e outro contra o assassinato de dirigentes comunistas do Brasil. Em ambos participei activamente, engolindo em seco as palavras que me senti obrigado a escrever e a dizer, porque não há palavras que nos devolvam a vida que nos tiram. Foram manifestações exaltantes de unidade de homens e mulheres de esquerda que se recusam a aceitar crimes, de um modo geral, e muito especialmente aqueles que são praticados contra a liberdade das ideias e a coragem de as defender. Lembro-me de poetas, músicos e cantores. Lembro-me de José Mário Branco que então acompanhei enquanto fazia germinar - O sangue em flor - como hino contra a repressão no Brasil de então. Não tenho saudades do sofrimento. Só tenho saudades de amigos, sendo eles o que quiseram ser depois. Esses comícios lembram-me também Ruy Luis Gomes, Eugénio de Andrade e um professor brasileiro, Bayard Boiteaux (isso ou parecido) que então conheci, porque me lembro da bondade com que aceitaram conviver com um jovem esquerdista, então professor estagiário. E lembro-me de como se envelhece bruscamente.
Espero do comício de hoje outra forma de participar na vida política: a comunhão simples de pessoas livres. Uma verdadeira festa. Que bem merecemos. Eu também mereço a festa que me faz falta, e a eleição de um poeta pode ser a festa que me falta, aquela que eu quis esperar.
Arsélio Martins, professor de Matemática.
Amanhã, sexta, vou ao Pavilhão Académico onde não entro há muitos anos. Há pelo menos dois comícios que me fazem lembrar o Pavilhão Académico da Costa Cabral e ambos foram comícios infelizes que eu bem queria que não tivessem acontecido: um contra o assassinato do Padre Max e da minha ex-aluna Maria de Lurdes e outro contra o assassinato de dirigentes comunistas do Brasil. Em ambos participei activamente, engolindo em seco as palavras que me senti obrigado a escrever e a dizer, porque não há palavras que nos devolvam a vida que nos tiram. Foram manifestações exaltantes de unidade de homens e mulheres de esquerda que se recusam a aceitar crimes, de um modo geral, e muito especialmente aqueles que são praticados contra a liberdade das ideias e a coragem de as defender. Lembro-me de poetas, músicos e cantores. Lembro-me de José Mário Branco que então acompanhei enquanto fazia germinar - O sangue em flor - como hino contra a repressão no Brasil de então. Não tenho saudades do sofrimento. Só tenho saudades de amigos, sendo eles o que quiseram ser depois. Esses comícios lembram-me também Ruy Luis Gomes, Eugénio de Andrade e um professor brasileiro, Bayard Boiteaux (isso ou parecido) que então conheci, porque me lembro da bondade com que aceitaram conviver com um jovem esquerdista, então professor estagiário. E lembro-me de como se envelhece bruscamente.
Espero do comício de hoje outra forma de participar na vida política: a comunhão simples de pessoas livres. Uma verdadeira festa. Que bem merecemos. Eu também mereço a festa que me faz falta, e a eleição de um poeta pode ser a festa que me falta, aquela que eu quis esperar.
Arsélio Martins, professor de Matemática.
em boas palavras, pois
vou votar em palavras, pois.
querendo chamar os matreiros
bois
pelos nomes de financeiros
e pegá-los pelos cornos
ainda que levados em ombros
entre os escombros
se icem como sombras os seus contornos
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