Desenho 3






Memórias do elefante


Amei-te desmedidamente. O filho que gerámos tem os olhos vesgos, orelhas de elefante e uma tromba potente, sensível e fina de urso formigueiro. Mas é o nosso filho.
E passámos a vida a olhar embebecidos para o nosso filho, fruto do nosso amor. Quando escurecia, o nosso filho abria os olhos e iluminava dois cantos do quarto em que nos escondíamos do mundo. Ceávamos à meia luz que os seus olhos acendiamm cheios de ternura. Quando nos deitávamos, ele fechava os olhos, embalava-nos empurrando o berço com a sua potente tromba e, nas noites de calor, refrescava-nos com o movimento calmo das orelhas. Quando adormecíamos, ele comia os insectos que ousavam incomodar-nos.

Somos felizes. Mais felizes somos porque te amei desmedidamente várias vezes e temos agora um rancho de filhos que olhamos embebecidos, porque têm os olhos vesgos e muito brilhantes, orelhas de elfantes e trombas potentes, sensíveis e finas de ursos formigueiros.
Quando nos mudámos para esta rua, ela era habitada. Pouco depois de nós chegarmos, os vizinhos começaram a ir-se embora. A última a partir foi uma velhota muito pobre de quem nos despedimos com simpatia. Não percebemos porque é que ela nos perguntou se não tínhamos espelhos.

[pretextos, na antiga Rádio Independente de Aveiro]

Desenho 2 - do delírio







A criação da actualidade
Arsélio Martins

Cada um de nós tem uma vida para esquecer e outra para lembrar. Todos os dias tentamos esquecer o que não nos agrada ou não conseguimos resolver. Só nos interessam problemas que tenham solução à vista e façam da nossa vida uma sucessão de vitórias quotidianas ainda que pequenas. Precisamos disso como pão para a boca. Quando acordamos para fracassos diários, procuramos afogar as nossas mágoas num lago de mágoas, primeiro com a esperança que olhem por nós, depois com a tentação de mergulharmos a vida à volta no absimo dos farrapos que somos. O que é humano não me é estranho, mas nada me custa mais do que não saber o que fazer quando os irmãos se embriagam com o fel da vida corrente. Sem poder esquecer, mas incapaz de devolver uma esperança de vida simples, afogo os necessários gestos e as palavras que não sei. Sinto-me doente.

Mais doente me sinto, porque o país inteiro vive a actualidade de conveniência para iludir as complicações (e também a beleza) da vida real. Os jornais e as estações de televisão fazem de pequenos acontecimentos ou de farrapos de vidinhas o sumo de cada dia. Repetem este ou aquele aspecto de coisa nenhuma, mexem e remexem nesta ou naqulea ferida e evitam lancetar outras que bem precisavam de ser drenadas. Ora se colam aos sofrimentos individuais para não falarem das responsabilidades políticas, ora seguem os passos de um juíz ou o contorcionsimo de modelos que se amam a si mesmos e são cabeças de cartaz por terem cabeça com área mas sem volume. Escondem o drama nacional dos incêndios florestais a tratar pelo governo da nação sob uma soma de dramas individuais a pedirem o tratamento da caridade. Criam o tribunal popular de uns costumes para esconder outros crimes e outros costumes. Por vezes, tenho a sensação que a actualidade é uma ficção que se vai criando nos pormenores mais ou menos sórdidos de umas vidinhas para esconder a realidade que, mesmo quando dói, é mesmo a nossa, aquela que vale a pena conhecer e enfrentar, para nos reconhecermos irmãos do bem e do mal. Fugimos de quê? Fugimos de quem? Quem a vida esquece, na morte apodrece.

A respeito do processo de pedofilia (que voltou embrulhado em justa desconfiança!) li os textos mais tristes da minha vida. Um dos textos que li trata todos os intervenientes pelos nomes próprios — polícias, juízes, procuradores, políticos, … — e de tal forma o faz que me senti como que apanhado na teia de uma aranha divina. Há uma teoria da conspiração que liga acontecimentos e os atribui a uma fonte de poder absoluto A prática da conspiração de hoje reside no poder de decidir o que é a actualidade. O que de facto foi o dia de hoje nunca saberei. O que eu imagino que a realidade seja, já há muito deixou de existir e … fico doente por insistir na vida tal como ela é.
Com a dor a dançar em pontas na minha alma, ligo-me à televisão. E adormeço

[o aveiro, 4/09/2003]

Desenho 1

Vou também tentar recuperar alguns desenhos de reuniões antigas que foram enviados a amigos e inimigos e dos quais não guardei mais do que imagens e sombras. Por exemplo:




Pedras

Tento mostrar pedras de aveiro. A qualidade é pobre para que o tempo não se vire contra elas. Gosto de olhar a fachada do museu pela noite dentro. Do mesmo modo, algumas árvores ganham vida diferente à luz da noite. Foi o que aconteceu à árvore do museu que ficará sempre aqui ao nosso lado.




Um sinal do presente.
Arsélio Martins

Os dias da última semana não se limitam a passar. Carregam sinais de miséria e de terror. Cada dia cai como um murro na boca da alma. Chegam-me do Iraque, da Índia ou da Rússia os dias carregados de terror. Não deixo de me vergar às dores de cada dia. Nenhum dia é longínquo passado, nenhum lugar é longe daqui, nenhuma vítima me é estranha. Acontece tudo de mal agora e são meus vizinhos os que > sofrem.

Mas hoje decidi que não vou por aí. Nem vou desatar gargalhadas de tristeza por conta dos figurões nacionais a quem o ridículo não mata. Eles não estão quietos nem calados, mas eu estou por fora cá por dentro.

Decidi ser feliz e olhar para outros que nem aparecem nos jornais, porque são normais e competentes nos seus afazeres e me dão os sinais que me dizem que, apesar da desgraça das gralhas do poder, o mundo vai em frente.

Estamos numa casa de aldeia do nosso distrito. Na sala ao lado, trabalham operários da construção de uma pequena empresa que constrói e repara casas. Eles arranjam tectos, pintam paredes, limpam destroços. Durante o dia e também pela noite dentro quando o trabalho aperta, um ou dois, raramente três, cumprem planos de trabalho, metodicamente. Quando não há barulho das máquinas, ouvimos a música que ouvem sem interrupção. Não raras vezes, ouvimo-los cantar como outras vozes as canções que se ouvem no rádio, inglesas na sua maioria. Com satisfação, os ouvimos. Por vezes, o mais jovem aplicador de placas recebe visitas. Reparo que não interrompe o seu trabalho, antes requer a ajuda dos amigos visitantes enquanto conversam, no que me é dado ver.

Mas não foi o mais jovem quem me aguçou a curiosidade. Ouço, sem querer ouvir, a conversa entre dois dos mais velhos trabalhadores da reparação. Algumas palavras chamam-me a atenção, parecem-me palavras típicas do quotidiano dos informáticos — algumas são aquelas abreviaturas que toda a gente diz sem saber muito bem o que é: jpeg, mpeg, bit, megabytes, ram, … — mas também ouvi conselhos sobre os cuidados a ter com os discos, desfragmentações, internet, música e filmes no computador.

Entre trabalhadores da construção de há cinco, dez anos, quem imaginaria qualquer conversa de âmbito tecnológico exterior à profissão, superior ao necessário para o exercício da profissão, …para o lazer, para a cultura geral? De uma pequena empresa numa aldeia?

Para mim, cada um destes pequenos sinais é um presente. Podem não querer dizer coisa alguma. São só sinais sobre o presente do futuro.


[o aveiro, 28/8/2003]

depois vieram tambêm cá