com a idade

Ao contrário do que dizem que acontece, é o meu lado direito que desaparece (ou cai lá para o fundo) enquanto ando para velho.

Onde é que fica a França?

Na televisão de segunda, ouvi um comentador falar da situação em França quando chamava a atenção para dois aspectos das actuais movimentações.

Do lado dos trabalhadores e dos sindicatos, o movimento está a ser dirigido pelos católicos e suas organizações, tradicionalmente consideradas próximas das políticas dos governos e disponíveis para assinar acordos. Claro que ele não acusava o erro fundamental do governo que quer libertar os patrões de qualquer explicação, justificação ou responsabilidade quando despedem um jovem durante os seus primeiros dois anos de trabalho e criam, por essa via, um a bolsa de mão de obra sem direitos disponível como pau para toda a obra. A sua atenção ficava presa a eventuais falhas na comunicação e de concertação do governo francês com os parceiros sociais.

Do lado dos estudantes, o movimento está a ser dirigido pela esquerda estudantil. Chamava a atenção para o aumento do abandono escolar e, em particular, para os números a provar que os últimos anos de governação tinham feito descer e muito a percentagem de estudantes oriundos das classes trabalhadoras nas grandes escolas superiores francesas. Ao referir estes números, não falava do erro que é o empobrecimento das políticas sociais que, ao contrário do que alguns analistas afirmam, são responsáveis a longo prazo (e não só no curto prazo) pelo agravamento das desigualdades sociais, pelo abandono escolar, pela exclusão social. E apontava medidas correctivas de pequena política para a política do grande erro.

Uma analista de um jornal de domingo também vinha alertar estes jovens (manifestantes a desempregar) que mais vale aceitarem já o destino tal qual lhes é proposto antes que falte tudo para toda a gente. Acusava a geração anterior (de Maio de 68) de ter delapidado tudo o que havia, a seu favor, esquecendo estes seus vindouros filhos e netos. Diga-se que, em boa verdade, os manifestantes e grevistas franceses não passam de maus exemplos para os portugueses. Não disputam, por enquanto, os diamantes lapidados e as frases lapidares destes analistas lusitanos presos pela barriga à mesa do banquete.

Mas já inseguros, os analistas pedirão mais dinheiro para mais polícia ou para uma rede de capoeira que os separe dos excluídos, esses que teimam em invadir as confortáveis salas de estar destes analistas de bem-estar, bem-pensar e cacarejar.

O canto das sereias portuguesas é uma seca mas é rico do ponto de vista nutritivo e deve ser tomado pelas orelhas. Para os trabalhadores são bem-aventurança dormideira, ópio do povo.

Há outros que dizem para quem os quer ouvir: Até os comemos! a pensar nos rabos de peixe ... das sereias portuguesas.

[o aveiro; 23/03/2006]

vais no vento

vais no vento -
ainda que presa, como bandeira
no mastro improvisado da bateira,
soltas-te ao vento

e eu, -
ainda que em pés de afogado,
pé ante pé, vou ao teu lado
subindo ao céu

quem morreu?
por quem toca o sino?
alguém sabe? homem ou menino?

e já foi minh'alma quem respondeu:
fui eu! fui eu!

que mais queres tu de mim?

Tu aprendes-me e eu aprendo-te. Tu ensinas-me o que eu te ensino. Há um elástico invisível a esticar-se entre os nossos corpos. Quanto mais o esticamos mais ele nos atrai um até ao outro.
Tu falas e eu falo. Eu ouço-te e tu ouves-me. Penduradas nas cordas da nossa roupa, as palavras oscilam ao vento. Antes de me atingirem, as palavras passam pelos lugares da tua roupa. Visto-te, enquanto me dispo. Puxo a corda da roupa para o meu lado, para nela pendurar as palavras que vestia. Estico a corda. Puxas a corda. Despes-te enquanto me vestes.

Apareces. Puxas o lençol para o lado em que o colchão guarda o molde do teu corpo, o meu lado esquerdo. Acordo com frio e percebo que vieste. Não te chamo. Deixo-me deslizar até ao lugar do teu corpo para não morrer de frio. Empurras-me para eu adormecer no meu lugar. E assim sei quem sou.
Se desapareces, vejo-te mais nitidamente.

Se eu desapareço e podes deixar de ver-me, que mais te posso dar?
Que mais queres tu de mim?

em teu nome

todos os dias digo
que bom vir a ler-te
ainda antes de cegar

escreve-me no teu verso

antes que esqueça
em teu nome
o meu nome.

desenho, logo existe




Vencido pelos votos, votos de vencido.

A boa educação na nossa democracia representativa tem obrigado o vencedor a declarar que vai representar apoiantes e adversários de igual modo. Os vencidos bem educados declaram aceitar a derrota e endereçam parabéns e votos de bom exercício aos vencedores, rogando a estes que cumpram o que prometeram e defenderam durante a campanha eleitoral, mesmo quando acham que eles defendiam o errado e o prejudicial. Para o bem de Portugal de aquém e de além, continente e ilhas. Assim tem sido.

Desta vez, Cavaco Silva não disse que ia ser o presidente de todos os portugueses como ditava a moda iniciada com a magistratura de Soares. E, em vez disso, declarou que ia ser presidente de Portugal inteiro. E está bem assim. Eu gosto mais assim.

É verdade que eu tenho o direito de exigir a Cavaco Silva que defenda a Constituição da República já que jurou defendê-la tal como ela é, por muito que isso lhe seque a boca. Eu tenho o direito de exigir que, como Chefe do Estado, represente o melhor que souber o meu país, que nos afirme como nação independente, que seja chefe supremo das forças armadas sem as amarrar a guerras decididas por outras potências, sem deixar de as associar a missões decididas por concerto na sociedade das nações. Na Europa. E no mundo. E tenho o direito e o dever de lhe rogar que olhe para e por cada um dos portugueses tal como cada português olhou e olha por ele livrando-o do desemprego. Como garante dos direitos dos cidadãos de Portugal inteiro e não especialmente dos financeiros, banqueiros e demais parceiros privilegiados.

Cavaco Silva é o legítimo Presidente da República. Procurará pôr em prática as suas ideias políticas e eu não deixarei de estar em desacordo com todas as suas decisões que, do meu ponto de vista, são prejudiciais. E não deixarei de desejar que fracasse nos seus intentos em tudo quanto não concordo. Ao mesmo tempo que espero os maiores êxitos para o meu país, mesmo quando ele estiver a ser representado pelo Presidente Cavaco Silva do Portugal inteiro.

Enfim, na altura da sua tomada de posse, aqui deixo os meus melhores votos de vencido. Sem hipocrisia alguma, os melhores votos.

[o aveiro; 15/03/2006]

Passo d'addio

Amor, hoje teu nome
a meus lábios escapou
como ao pé o último degrau...

Espalhou-se a água da vida
e toda a longa escada
é para recomeçar.

Desbaratei-te, amor, com palavras.

Escuro mel que cheiras
nos diáfanos vasos
sob mil e seiscentos anos de lava -

Hei-de reconhecer-te pelo imortal
silêncio.


Cristina Campo; O Passo do Adeus

a namoradinha de organdi

Como na dança ritual dos patos colhereiros se te amei
foi a cem por cento da minha capacidade metafórica
mas copiado de livros onde o herói sempre enviuvava

cruzei imensas vezes sob a tua varanda com glicícinas
pensando numa cena infeliz à moda do harold

eu sonhava contigo?
                                       eu assoava-me ao pijama!

Fernando Assis Pacheco; Variações em Sousa

Cifra

A imagem é o clarão
Emprestado à negrura.
Serve passivamente
A noite que ilumina.

Raio que não fulmina
A vida que atravessa,
A sua luz termina
Onde outra luz começa...


Miguel Torga; Câmara Ardente

E eu voltei para onde


E eu voltei para onde? Ao rio amargurado
prenderam-no entre as barrragens
de picote a miranda e entre as altas margens.

Pelas escarpas a pulso subi até ter asas aragem e voar
até ser incapaz de mergulhar e ficar preso ao céu aberto




depois vieram tambêm cá